Marcelino Freire
Entrevista conduzida por Sarah Teófilo, publicada no Jornal Opção (Goiânia) de 02/02/2015
Como o sr. define a forma como escreve?
Eu costumo dizer que eu escrevo vexames. Eu dou vexame na hora que eu estou escrevendo. Então, quando eu dou aquelas paradinhas, é para deixar as frases um pouco mais tomadas de agonia, de fôlego, e para não ficarem comportadas. Percebo que, em algum momento, eu tenho que parar a frase para não ficar mais gramatical do que artístico. Eu procuro sempre escrever a pulsação artística daquela frase. Por isso, você não vê frases tão longas, com muitas conjunções. É muito difícil eu usar uma conjunção. Raramente uso um advérbio. Eu escrevo tentando encontrar a pulsação da palavra. E muitas vezes, quando eu paro, é porque percebo que a palavra precisa ser tomada por mais agonia. Aperreio, desespero. Eu escrevo dando vexame. Você percebe que meus personagens falam muito pelos cotovelos. As almas dos meus personagens falam pelos cotovelos. Eu escrevo agoniado. Escrevo porque não me contenho, não me aguento.
O sr. não pensa para escrever?
Vou pensando conforme as palavras vão me socorrendo. Nunca começo sabendo qual história eu vou contar. As palavras que começam a contar para mim. Por isso, quando eu escrevo, sempre é um mote; uma palavra que eu ouço na rua, ou uma frase que eu gosto e vou escrevendo as outras frases para descobrir que história aquelas palavras estão pedindo.
Sou muito movido por essa sonoridade, musicalidade das frases, cantoria, improviso nordestino. Um escritor não conta uma história, ele compõe. Por isso as pessoas, quando leem, pensam: “Poxa, parece que tem uma sonoridade; quando vejo tô lendo como se tivesse tomado por aquele ritmo.” Isso é muito próprio da literatura nordestina, do improviso, da cantoria, da ladainha. Eu não gosto de frases muito comportadas, muito certinhas. Por isso dou um vexame na literatura; sacudo um pouco as estruturas. Escrevo muito aperreado, querendo entender porque aquelas pessoas [personagens] estão gritando; aí eu grito com elas.
Então, o sr. começa um texto sem saber quem é que está falando… E descobre isso quando?
Tem um conto meu que chama “Belinha”; está no livro “Angu de Sangue”. Nesse conto, descobri que era um velho que estava falando quando eu comecei a primeira frase. A gente costuma dizer: “Ah, sempre falta uma palavra.” Por mais que a gente goste, que queira dizer algo, que sinta saudade de alguém, sempre falta uma palavra para falar daquela saudade, daquele amor que a gente sente. Eu comecei: “Dizem que sempre falta uma palavra, e é verdade. Nesses anos todos, eu sei que sim, que sempre falta uma palavra, é verdade. Verdade. Pois procurei por Belinha, depois de 50 anos, 50 anos, para dizer para ela essa palavra. Sempre falta uma palavra, verdade verdadeira. E fui para dizer para Belinha essa palavra”. Descobri que era um velho falando, porque velho fala repetindo. Um velho, muito velho, fala repetindo, porque já está cansado das palavras. Um velho diz assim: eu vou ali à farmácia, eu vou ali à farmácia comprar um remédio; à farmácia comprar um remédio eu vou. [risos] Ele já está cansado das palavras. Já se falou tudo. Então, quando eu comecei a escrever esse conto, “sempre falta uma palavra e é verdade, nesses anos todos eu sempre soube que falta uma palavra, é verdade, verdade. Pios eu procurei por Belinha depois de 50 anos para dizer para ela essa palavra. Sinto falta, é verdade”, eu digo: É um velho! Ele vai atrás de uma mulher que amou, mas teve que renunciar esse amor para dizer a ela uma palavra que ficou engasgada durante muitos anos. Eu descubro meus personagens por meio das palavras. Descubro se é um travesti, um padre ou se é um menino de rua, a partir da articulação dessas palavras.
Mas de onde vêm essas palavras? O sr. sabe o que está escrevendo?
Eu procuro saber quando estou escrevendo. Eu não vou muito perdido não. Eu tenho que encontrar por onde é que aquelas palavras estão caminhando. Então eu descubro, por meio das primeiras palavras. Da primeira, segunda, terceira frase. As palavras vão me apontando o caminho do texto, dificilmente eu tenho uma história prévia. Quando eu tenho algo prévio, um enredo, eu preciso da primeira palavra. Eu preciso de uma primeira frase que me encante; que me instigue continuar o texto.
O sr. tem um conto preferido?
Eu gosto muito de “Belinha”, mas tem um que foi muito sintomático para mim como escritor. Foi um conto que eu escrevi ainda morando no Recife. Eu devia ter uns 19 anos, e eu queria muito escrever um conto que se passasse no lixão da cidade, chamado “Muribeca”. Muitas narrativas já se passaram em lixão, né? Eu dizia: “Nossa, porque nunca ninguém falou no lixo?”. Fiquei pensando para escrever o texto, e então escrevi esse conto sobre o lixão que fica no bairro da Muribeca, mas que também pode ser o nome da personagem. E esse texto foi o conto que um crítico literário chamado João Alexandre Barbosa, um importante crítico literário pernambucano, me ouviu lendo e me indicou para essa editora. Eu mesmo publicava meus livros antes da indicação do crítico. Então, esse conto foi também a porta de entrada para uma editora, para publicar um livro, e é um conto que já foi muito adaptado para teatro; está também em muitas gramáticas para questão de estudo do meio ambiente, e também foi interpretado na televisão pela Beatriz Seagal, em um especial da TV Cultura. Observe só: eu não sabia bem que história eu ia contar nesse lixão, mas é uma mulher, e o conto começa assim: “Lixo. Lixo serve para tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira para pôr uns pregos e ajeitar. Sentar. Lixo para poder ter sofá costurado, cama, colchão, até televisão. É a vida da gente o lixão. E por que agora querem tirar ele da gente? O que eu vou dizer para as crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho, e o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas e sem as caixas? Vai perambular pela rua? Roubar para comer? E o que eu vou cozinhar agora? Com que dinheiro? Vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa.” Então, a partir dessa articulação, eu entendi que era uma mulher defendendo o lixão; que o lixão ia ser desativado.
E o lixão ia ser mesmo desativado?
Não, eu inventei tudo isso. Muitos anos depois, vários trabalhos sociais foram feitos nesse lixão da Muribeca, e esse meu conto foi trabalhado com os catadores de lixo. E fiquei muito feliz, porque foi uma ONG lá, apresentou o conto para eles, eles discutiam o conto e tal. Recentemente, há mais ou menos cinco anos, o lixão ia ser completamente desapropriado. O que aconteceu? Aconteceu o que meu conto falava. As pessoas não queriam de jeito nenhum sair do lixão. Tem um documentário, Estamira; muita gente que lê meu conto fala desse filme. Mas, na verdade, meu conto veio antes. Foi publicado no ano 2000, vai fazer 15 anos agora. A edição comemorativa vai sair esse ano. E o Estamira foi lançado em 2005. Por sinal, é um ótimo documentário, sobre uma mulher que defende um lixão. Meu conto não tem relação nenhuma com Estamira. Lixões existem em todo mundo, né? E artistas com um olhar voltado para essas questões existem aí aos montes.
Falando de artistas aos montes que retratam questões sociais, eu lhe pergunto: é por isso que escreve, Marcelino? Para retratar questões sociais?
Olha, eu escrevo para me vingar. Eu escrevo porque sou um covarde. Eu não tenho forças para pegar em armas. Sou péssimo, não sei atirar. Adoraria, em alguns momentos, tocar fogo em meu próprio corpo. Eu entendo uma pessoa que está tão revoltada que taca fogo no próprio corpo e sai correndo na rua. Eu tenho muito medo. Como sou muito covarde, eu escrevo. Eu escrevo para não me sentir tão bundão. Para me vingar do governo, de algo que não vai bem, para entender os absurdos à minha volta. Não é nem para denunciar. Quem sou eu para denunciar, para apontar dedo para alguém. Eu não escrevo para julgar nada. Eu escrevo como alguém que fotografa uma cena, e deixa que o leitor compactue e veja, tire suas próprias conclusões, impressões, pulsações daquilo. Escrevo movido por isso. Algo que, mesmo quando eu, por exemplo, perco um amigo querido, como perdi recentemente uma amiga extraordinária, então eu vou escrever para tentar entender a ausência daquela pessoa na minha vida. Aí eu escrevo e as palavras vão lá e me socorrem, começam a me indicar um pouco da compreensão do vazio que aquela pessoa me deixou, ou da injustiça que está acontecendo no Brasil.
Eu estou aqui caminhando por Goiânia, aí alguém fala algo que me chama a atenção. Então, eu guardo aquela palavra ou aquela frase. Não sei o que vai acontecer, mas aquilo pode chegar a algum personagem, alguma casa, dar conta de alguma forma de algum abandono que aquela palavra, sem que eu saiba, está gritando. Quando eu guardo uma frase, às vezes eu a desmembro, e vejo que aquela frase tem um núcleo de dor, núcleo de vexame, de aperreio, que eu só guardei porque aquela frase estava doendo. Dói, eu escrevo. Às vezes, aquilo me encanta profundamente, e eu escrevo para entender esse sentimento muito amplo como dor e amor. Às vezes, uma frase é tão extremamente dolorida, ou amorosa, que eu vou escrevo para afunilar, entender o que aquele sentimento tão amplo tem de particular. Essa frase que eu ouço é uma espécie de porta de entrada, porta de percepção do mundo. Eu entro por aquela frase.
Já que estamos falando de dor e do que te move na hora de escrever esses contos, tem um texto específico que eu acho muito interessante, o “Acompanhante”, que é…
Meu pai. Esse aí foi por causa de meu pai. Meu pai morreu completamente caduco, debilitado. Era um homem muito forte, sertanejo, nunca foi ao hospital; um homem guerreiro. No final da vida, ele estava débil. Ficava nu na sala, tinha uma empregada que tinha que cuidar dele senão ele saía pelado na rua. Ele estava débil. Eu estava de férias, visitando meu pai — moro em são Paulo há 23 anos —, quando cheguei minha mãe estava entrevistando umas empregadas para poder cuidar dele. Ela falava: “Olhe, ele come isso, ele está doente disso, vai precisar de cuidado, você tem que pegar isso. Veja, olhe como ele era. Era um homem muito bom”, e mostrava fotos dele quando era jovem. E eu gostei de uma frase. Uma mulher que estava querendo o cargo perguntou: “E ele vai ao banheiro sozinho?”, e ela respondeu: “Olha, ao banheiro sozinho ele não vai, mas você ajeita isso, faz isso aqui.” Então, a partir dessa frase eu construí outra história. Não é mais meu pai, mas a articulação da frase da minha mãe misturada com a decrepitude de meu pai. Olhe, eu sempre acredito que as coisas podem ser piores do que são. Esse conto é mais ou menos isso. Essa história fica ainda pior. Você acha que não pode ficar pior, mas fica. É por onde caminha esse conto. E por onde caminham outros contos.
“O vestido longo”, no [livro] “Amar é crime”, é um conto que eu ouvi na televisão um documentário sobre umas meninas muito novinhas que se prostituem nas estradas do Brasil. Muito novinhas, com 12, 10 anos. Então, era uma matéria que aparecia o rosto de uma menina fora de foco e o repórter dizia: “Mas por que você faz isso?”, e ela, quase sem roupa nenhuma, dizia mais ou menos assim: “Não sei porque ficam enchendo o saco da gente se eu sempre vivi assim, nuazinha mesmo.” Então, construí o conto a partir disso.
Existe alguma intenção de dar visibilidade a certas pessoas em seus textos?
Não, não. Existem, inclusive, alguns estudos sobre os meus textos que dizem que eu dou voz àqueles que não têm voz. Não, eles têm voz sim. Meu trabalho é escutar. “Quer ver? Escuta.” Esse versinho pequenininho é de um poeta mineiro que vive em Brasília, Francisco Alvim. Eu escuto, e procuro ver, compactuar. Não posso julgar que eu seja alguém que estou cima, elegendo alguns para dar voz. Outros dizem que eu escrevo para melhorar, salvar as pessoas. Não, não posso prometer nada disso. Porque quem promete isso é a Igreja. Salvação eterna, melhores dias. Não sou igreja, não posso prometer isso para ninguém. O que eu faço é registrar uma coisa que me inquieta. Se essa minha vingança particular, quando o leitor lê um conto meu, torna ele mais consciente, eu não. Não sei o que ele vai fazer do meu conto. Se ele vai transformar dessa minha vingança particular uma vingança coletiva, não sei, mas está lá. Quando Graciliano Ramos escreveu “Vidas Secas”, por exemplo, ele não quis resolver o problema da seca. Não é Graciliano que tem que revolver o problema da seca. É o governo, é o dinheiro, é planejamento, é vergonha na cara. Ele apenas registrou aquela família ali — o marido, a mulher, os dois filhos, a cachorra e o papagaio — caminhando. Pode se passar 400 anos, você vai abrir o livro e aquela família vai continuar lá, caminhando naquela seca. Você vai ver uma história de injustiça, de desigualdade social, e em algum momento você vai se lembrar de que no Brasil houve esse absurdo de gente morrendo por falta d’água. Resolveram o problema da seca? Não. É uma pena que uma obra dessa continue tão atual. Muito modestamente, acho que sou um escritor do meu tempo, não sou alheio ao mundo a minha volta. Vejo algo, vou lá e escrevo para tentar entender. E acabo deixando um testemunho.
O sr. escreve para si mesmo?
Escrevo a partir de mim. Tudo é a partir de mim, porque o escritor inaugura um olhar às coisas. Então, eu escrevo a partir de uma visão de mundo que eu tenho — limitada, muitas vezes, mas a partir de mim. Esse a partir de mim é como uma nascente de um rio. Nasce de mim, com todo o meu sotaque, musicalidade, repertório, oralidade, influência da minha mão, de outros autores que eu li. No caminho, essa nascente vai derramando coisas pelo caminho, né? Vai sendo influenciado por isso, por aquilo, o rio dobra, pega umas sujeiras ali nas beiradas. Não sou eu, mas esse rio nasce a partir de mim. As pessoas fazem essa confusão também de achar que tudo que escrevo é retrato de minha vida. Eu escrevi meu primeiro romance, o “Nossos Ossos”, e todo mundo disse: “Nossa, tem muita semelhança com a sua história. Você foi morar em São Paulo também.” Lógico que eu faço esses simulacros, essas confusões intencionais, mas não sou eu. É a partir de mim.
Por que foi para São Paulo?
1991, aos 24 anos. Porque eu me apaixonei. Estava apaixonadíssimo por uma pessoa. E aí eu queria ir para lá. Me fodi. [risos] Sabe o que é interessante no amor? O amor nunca vai dar certo. Mas ele melhora o próximo amor. Você vive um momento bom, de amor, e, quando não dá mais certo, você vai para o próximo amor melhorado. E assim vai indo — sai enriquecido do amor, e vai enriquecendo os próximos. Não deu certo, mas deu muito certo, porque melhorou os outros (risos). A gente não pode se desesperar. Os contos, por exemplo, nunca vão ser do jeito que a gente queria. Mas vão ser o que foi possível. É muito difícil, por exemplo, traduzir a dor de uma mãe que perde o filho. Mas eu posso, dentro de um conjunto de palavras, chegar próximo a essa dor. O conto vira um conto possível, não exato. A mulher de “Muribeca”, por exemplo — as pessoas ficam horrorizadas com algumas coisas que ela diz. Mas o lixão mesmo é muito pior. Eu digo que ela encontrou uma aliança. “Minha filha já vestiu um vestido de noiva, até a aliança a gente encontrou aqui, num corpo. Vem parar muito bicho morto. Muito homem, muito criminoso. A gente já tá acostumado. Até o camburão da polícia deixa seu lixo aqui, depositado. Balas, revólver 38. A gente não tem medo, moço. A gente é só ficar calado.” As pessoas ficam horrorizadas. Não tem no meu conto, mas no lixão real as pessoas encontram coisas muito piores. Feto, bebês, placentas, lixo hospitalar. Césio — você sabe muito bem disso. A gente faz o possível para entender os absurdos à nossa volta.
Por que resolveu começar a escrever?
Eu não sei fazer mais nada. Nunca tive saúde para fazer outra coisa. Atleta, zero. Adoraria ser jogador de futebol, cantor de rock, dançarino. O máximo que me aproximei de um desejo foi ser ator. Mas descobri que tinha muito pudor. Iria ser um ator limitado. Se o diretor dissesse “Tire a roupa” eu não conseguiria. Aí eu desisti. Como escritor eu não tenho pudor nenhum. Posso ser tudo o que quiser.
Quando começou a escrever?
As primeiras poesias que fiz foi aos 10 anos, imitando Manoel Bandeiras. Foi o primeiro poeta que li na minha vida. Enquanto meus irmãos andavam de bicicleta, eu estava imitando o Manoel Bandeira, movido pela sua melancolia. Eu queria muito ser tuberculoso como ele. Ficava querendo as doenças para mim. Eu não tinha saúde para dar para ninguém. Não sabia jogar bola. Mas aí eu descobri que era muito importante na minha casa. Eu escrevia as cartas. Gostava muito de ler, então lia a Bíblia para minha mãe, as bulas de remédio. Eu tinha uma utilidade na minha casa, e era muito respeitado por isso. O primeiro lugar que fui respeitado como escritor foi em casa.
E o sr. se interessou por leitura por si só ou teve algum incentivo?
Minha mãe dizia, quando a gente saiu de Sertânia, “estude, estude, estude para ser gente”. E a gente começou querendo estudar tudo. A gente estudava bastante. Eu e os três mais novos, fomos os que conseguiram estudar. Os mais velhos não terminaram o primário nem nada. Minha mãe saiu com os nove filhos para Paulo Afonso, na Bahia. Saiu por causa da seca. As coisas não estavam muito boas lá também, aí fomos para Recife. Cheguei no Recife com oito anos. Depois, sai de lá com 24 anos para São Paulo.
Era difícil a vida?
Muito difícil, não tinha muitas facilidades não. Imagine, cuidar de nove filhos. Dar de comer, roupa para vestir. Não foi fácil. Mas a gente começou a trabalhar, estudar, íamos ajudando. E essa insistência de que eu estudasse deu à minha mãe um final feliz. No final da vida, quem cuidou dela foram dois amigos meus escritores que são médicos. Wilson Freire, médico e escritor, Ronaldo Correa de Brito, escritor e médico. Eles cuidaram da minha mãe, e eu os conheci — mesmo o Wilson sendo meu primo — por causa da literatura. E eu só escrevi meus livros porque a minha mãe foi a primeira que fez esse êxodo, essa saída rumo à mudança. Ela teve um final de vida tranquilo, bem tratada em um hospital. E quem deu isso à ela foi a literatura. E quem deu a mim a literatura foi a minha mãe.
Quando o sr. fala dela, parece que era uma mulher muito forte.
E era, muito forte. Todas as falas dos meus personagens são calcadas na fala dela. E também esse trajeto teimoso que ela fez, para sair com os filhos de lá, de Sertânia.
Existe uma voz feminina muito presente nos seus textos. Por quê? Vem de sua mãe?
Vem… Acho que a presença da mulher nordestina também. Já falaram uma vez que a fala é o falo da mulher. Meu pai era silêncio, minha mãe era aperreio, vexame. Muito dessa presença feminina vem disso — da fala, do gesto, do grito, dessa figura sertaneja. Já no meu primeiro romance, nossos ossos, eu me aproximei do silêncio do meu pai, porque eu já havia gritado muito nos meus contos. Aí eu lembrei do silêncio do meu pai e me dediquei a ele. Porque para escrever um romance eu tive que acalmar um pouco o tom.
Para finalizar, uma pergunta: escrever é um dom ou aprendizado?
É uma vontade. E essa vontade precisa de treino. Tem vontade de correr? Treine. Tem vontade de cantar? Treine. Esse desejo é a faísca inicial. Para manter o fogo aceso tem que estudar, treinar, ler. Existe escritor que quer escrever, mas não quer ler. Existe escritor que quer publicar, mas não quer escrever. Então, acho que tem vontade, vá à luta. Tudo é aprendizado, tudo é trabalho para manter essa faísca e transformá-la em fogo constante.
Marcelino Freire
Entrevista publicada no site http://www.vacatussa.com/entrevista-marcelino-freire/ em 17/07/2014
THIAGO CORRÊA – Sua estreia literária se deu com o livro de contos Eme Saiu do Vermelho, publicado pela Fundarpe em 1991. Em seguida você publicou acRústico. Queria que você falasse desses livros, que quase nunca são lembrados. Neles já é possível observar sinais do que a gente conhece da literatura de Marcelino Freire, como o tema urbano e o estilo de rimas e oralidade? Qual a importânciadeles para você chegar a esse formato? Há chance de eles serem reeditados?
MARCELINO FREIRE - Só uma reparação, Thiago. O livro Eme Saiu do Vermelho nunca foi publicado. Ele ganhou Menção Honrosa no concurso da Fundarpe. Dava direito à publicação, mas nunca foi publicado pela Fundarpe. Ainda bem. Porque o título é péssimo. Parece alguém que pagou as contas e teve seu nome limpo do Serasa. acRústico, sim, foi publicado por conta própria, eu já morando em São Paulo. O título também é ruim, mas ele já traz essas brincadeiras meio gráficas que eu uso em meus títulos – algo que o amigo Luiz Bras, antigo Nelson de Oliveira, chama de Concretismo do Agreste. Aliás, em acRústico há contos do Eme que eu reaproveitei. Alguns contos do acRústico eu reaproveitei em livros como Contos Negreiros. Sim, meu estilo cantado, cordelizado, gritado, já estava nesses dois livros primeiros. Eu só fui, com o tempo, maturando o ritmo, a pegada… Esses dois livros foram importantes para eu tirar os contos da gaveta, apostar, aos poucos, na minha voz. Mas é só. Não quero que eles sejam reeditados. Eu mesmo já os fui reeditando em livros posteriores.
TC – Assim como Ronaldo Correia de Brito, Raimundo Carrero e mesmo Xico Sá, você também nasceu no Sertão e se estabeleceu no Recife. Mas ao contrário deles, sua obra já começa no ambiente urbano e não se apresenta com um saudosismo. A que se deve isso? Há algo do rural na sua obra?
MF - Você pulou o eraOdito, Thiago. Você não gosta do livro? O eraOdito é o meu livro mais concretista do Agreste. Aliás, em todos os meus livros eu faço a brincadeira que fiz no eraOdito, essa coisa de deslocar as frases, reinventar os lugares-comuns, etc. Sem contar que o eraOdito foi quem deu nome ao meu primeiro blog. Adoro esse livro. Mas vamos ao Angu de Sangue. Vamos à pergunta acima. A minha vinda para São Paulo foi determinante para o que há de urbano e caótico no que eu escrevo. São Paulo poluiu os meus parágrafos. Foi uma experiência traumática, essa de eu sair de minha terra e enfrentar uma cidade diferente, fria, grandiosa. Aqui, em São Paulo, eu tive que reafirmar as minhas origens. Todo mundo me perguntava de onde eu era e eu dizia: “de Sertânia”. E isso foi uma afirmação importantíssima para mim. Reconhecer as minhas origens adormecidas. Essa origem foi, no entanto, acordada pela buzina de um carro. Acordei, eu já estava em São Paulo. Renasci em São Paulo. Talvez venha daí o meu jeito de escrever, de ver, de avistar, de longe-perto, a minha terra pernambucana…
TC – A temática urbana na literatura brasileira geralmente vem vinculada a uma linguagem realista (no sentido de mostrar de forma crua e mais próxima da realidade). Embora você trilhe por esse tema da violência urbana e da desigualdade social, seus contos se diferenciam pelo uso de uma oralidade, um gosto pela rima e pelo ritmo que, de certa forma, descola a linguagem do mundo, tornando seu texto mais literatura do que um relato. Queria que você falasse um pouco sobre esse efeito. Por que você preferiu se desvincular de um caminho já estabelecido por autores como Rubem Fonseca e Marçal Aquino?
MF - Eu não preferi me desvincular de Rubem Fonseca, nem do querido amigo Marçal Aquino. Só vim conhecer o trabalho do Marçal, e o Marçal, aqui, pessoalmente em São Paulo. Sobre o Fonseca, eu digo mais que eu sou mais Graciliano Ramos. O que há de telegráfico no que eu faço vem da economia do Graciliano. O que de violência, também, vem do Graciliano. A violência mais psicológica, digamos. Mais implícita e, em mim, explícita, enfim… Encontrei o meu caminho escrevendo, compactuando com a fala da minha mãe. Minha mãe me influenciou mais do que os grandes autores. A fala da minha mãe, a ladainha dela, as dores dela contaminaram, impregnaram a minha escrita. Uma escrita teatral, tragicômica, etc. Carreguei os gritos dela no ouvido. E ainda carrego. Durma e se acorde com um barulho desses.
TC – Logo no seu primeiro livro por uma editora nacional você já foi adaptado para o teatro pelo Coletivo Angu. Como você avalia a importância do espetáculo Angu de Sangue para o andamento da sua carreira?
MF - Eu amo teatro. Eu comecei escrevendo para teatro aí no Recife. Participei de um grupo chamado Haja Teatro. Fui aluno da lendária e saudosa atriz Ilza Cavalcanti. O ator Paulinho Mafe, que criou o grupo Haja Teatro, também foi muito importante para esse meu começo artístico, digamos. Aos 14 anos, eu já tinha peça minha montada no Recife. Era uma alegria infantil. Era um estímulo único. Daí, quando eu escrevo meus contos, até hoje, eu escrevo pensando em teatro. Nesse melodrama materno. Assim que lancei o Angu de Sangue, no ano 2000, o produtor e ator recifense André Brasileiro me procurou. Reconheceu em meu livro esse apelo para os palcos. Veio, com isso, a adaptação homônima que eles fizeram. E que adaptação! E que atores! E que grupo! Agradeço sempiternamente a todos eles. Eles levaram meus contos e gritos pelo Brasil. Se hoje minha literatura é lida, de alguma forma o Coletivo Angu de Teatro tem uma participação decisiva nisso. Eles trouxeram de volta meu antigo sonho para os palcos. Eles me deram corpo, voz, sangue. Eu me emociono quando falo sobre eles, sobre o grupo, sobre teatro. Quando falo, eu volto a ser o menino, cariado, cheio de sonhos e vontades, lá da Escola Professor Alfredo Freyre, no bairro de Água Fria.
TC – Um tema recorrente no livro BaléRalé são as relações familiares, que aparece em contos como Darluz, Vovô, Mãe que é mãe, Phoder e Balé. Como você vê o efeito da desigualdade, da injustiça sobre a família? A decadência da família, no caso, seria uma causa ou consequência?
MF - Eu acho que eu matei toda a família ao escrever. Eu escrevo para matar a família. Lembro-me que, quando eu li, por exemplo, o livro A Metamorfose, de Kafka, nunca vi a minha família do mesmo jeito. E eu digo a instituição familiar. O que está nas entrelinhas, debaixo das mesas de jantar. Quando escrevo, eu vou atrás desse desconcerto, sei lá. E não falta assunto para escrever, sobretudo sendo eu filho de uma família de imigrantes sertanejos. De uma família católica, religiosa. De uma família teimosa, lutadora. Preconceituosa, até. Eu, posso dizer, que servi, de alguma forma, para educar a minha família em alguns aspectos. Como, por exemplo, no respeito às diferenças. Embora minha mãe fosse uma pessoa bem aberta e generosa. Mas eu digo, tipo, na compreensão em direção ao outro. Aos meus amigos gays, que faziam teatro comigo. Aos amigos gays de meu irmão, Luís Freire, que era carnavalesco. A gente nem precisava falar sobre esses assuntos em casa, mas ficava notória a nossa militância, em qual lado a gente estava…
TC – No conto A volta de Carmem Miranda, o personagem critica a militância gay que existe hoje, numa visão nostálgica da época em que se fazia tudo escondido. Visto que o tema da homossexualidade aparece em contos como Homo Erectus, Minha flor e Mulheres trabalhando; qual o limite para se escrever sobre o tema sem cair numa militância?
MF - É assunto, sim, que sempre esteve presente e sempre estará no que eu escrevo. Este sou eu. É a partir de mim que eu escrevo. Procurando, é claro, não ser panfletário. Mas me comprometendo a entender o que está dentro de mim e à minha volta. O livro BaléRalé é o livro em que mais existem contos com esse temática da diversidade. Mas eu digo sempre que o Balé é, principalmente, um livro sobre preconceito, escolhas. É um livro sobre o afeto. Aliás, você citou o conto A volta de Carmem Miranda. É um dos meus contos preferidos. Porque, na verdade, é uma história de amor. Ali, a partir da fala-monólogo de um gay nostálgico. Conto bastante baseado em frase que eu li do escritor cubano Reinaldo Arenas. Ele, sentindo saudades do tempo em que ele vivia sua homossexualidade em Cuba. Havia muito mais poesia ser homossexual em Cuba, dizia ele, mesmo tendo de lutar contra o regime. Enfim. Eu procurei entrar no coração de Arenas para escrever aquele conto. Assim, o meu coração bateu junto com o dele, entende? O livro BaléRalé é um livro fraterno nesse sentido. Eu escrevo, no fundo, é isto, livros fraternos.
TC – Com Contos Negreiros você venceu o Prêmio Jabuti, na categoria de contos. Você percebeu mudanças na sua carreira por conta do prêmio?
MF - Eu viajei mais. Fui para a Feira do Livro de Lisboa, por exemplo. Eu sempre brinco. Acho que deram o Jabuti para o Contos Negreiros porque estava na hora de premiar Castro Alves. Vivem confundindo Contos Negreiros com Navio Negreiro. Brincadeirinhas à parte, eu te digo que eu não fiz e nem faço concessão alguma para escrever o que eu escrevo. Se o prêmio vem, não pedi para vir. O que eu não posso é me sentir um Jabuti. Tenho de escrever. Tenho sempre de lembrar que eu sou um autor contemporâneo em um país em que se lê muito pouco. A gente precisa batalhar eternamente. Daí o fato de eu correr mais do que um Jabuti, entende? Se há uma coisa que mudou depois do Jabuti, foi isso. Eu corri mais e mais. O Jabuti já ficou lá atrás.
TC – O conto Solar dos príncipes é construído em cima da técnica da inversão. Quando todo mundo direcionava os olhares para as favelas devido ao sucesso de Cidade de Deus, você propõe um olhar de volta, numa espécie de espelho a partir de uma visão periférica. Técnica que você volta a repetir em É só isso o meu baião e no conto Da Paz, em Rasif. Você pode explicar essa técnica e os seus efeitos?
MF - Eu sou o escritor dos deslocamentos. Acho que tem a ver com a minha trajetória de imigrante. Tudo não está no lugar que parece. Nem as palavras que eu uso têm um significado apenas. Elas estão sempre dançando, gingando, caindo fora. Nesse sentido, adoro pensar em contos que desvirtuam a visão das coisas, tiram os objetos (e os sujeitos) do lugar. Adoro esses avessos. Eu sou feito desses avessos. Quando faço isso, tento entender o outro lado, os outros lados. Mais uma vez aquela questão “fraterna” de que te falei, acho. Eu procuro não ter juízo de valor para nada. Até eu ganho com isso. Quando escrevo, eu me ensino a ser mais compreensivo, mais justo, aumento a minha lente de entendimento do mundo. Se há técnica é essa, a de abrir os olhos, o peito, a alma, sempre.
TC – Em 2008, você lançou o conto É só isso o meu baião pelo selo digital Mojo Books. Como surgiu essa ideia? Como você avalia essa experiência?
MF - Pensando agora sobre esse livro digital que publiquei pela Mojo Books, reconheço que é ele a minha primeira novelinha, mesmo antes de o Nossos Ossos. É um conto longo para o meu padrão até então. Mas ele ainda é muito escravo do mesmo estilo rápido, imediato. Ele é mais gritado do que o “Ossos”. Adorei, à época, a experiência de aumentar o meu alcance sonoro, vocal… Pensei muito nos rappers ao escrevê-lo. Queria dar à Bossa Nova uma pegada rap, e também, sim, repentista.
TC – O livro foi lançado durante as comemorações pelos 50 anos da Bossa Nova, mas em vez de elogios, ele tece críticas ao mundo de sal, sol e sul do ritmo de João Gilberto, contrapondo-se às paisagens naturais do Rio de Janeiro, ao canto do amor e a exaltação da mulher. Era sua intenção colocar em discussão a ideia de identidade nacional?
MF - Não, nem me toquei, confesso, que estávamos, àquela data, comemorando o cinquentenário da Bossa Nova. Na verdade, escolhi o disco de João Gilberto porque amo aquele disco que ele gravou com o Stan Getz. E escolhi como mote a música É só isso o meu baião, até para fazer uma referência ao meu, nosso Luiz Gonzaga. E, é claro, daí ambientei a história no Rio de Janeiro, mas pensando, na verdade, em Pernambuco. No sentido, digamos, de improviso ali, na escrita. A mistura de que falei: rap, repente. E, sim, misturei também o pobre, o rico, o favelado, o marginal, o prédio, a favela, etc. Preciso, até, reler esse livrinho. Mereceria uma publicação em papel, quem sabe?
CRISTHIANO AGUIAR – O primeiro e o último texto de Rasif sempre me chamaram atenção, porque eles não chegam a ser contos no sentido tradicionais, e sim crônicas poéticas. O primeiro texto – Para Iemanjá – é cheio de desespero; o segundo – O futuro que me espera – mais otimista. Por que começar o livro com o pessimismo e finalizar com a saudade?
MF - Cristhiano, adorei a ponte que você fez entre os dois contos – o primeiro e o último do Rasif. Na verdade, o primeiro, o Para Iemanjá, eu o considero uma oração, uma permissão que eu pedi para entrar no mundo dela, o da Rainha do Mar. E, sim, o Rasif é um livro que eu fiz para dar um testemunho sobre a saudade que eu sinto de minha terra. Ao final do livro, com o texto O futuro que me espera, eu volto para ela. Um acerto de contas afetivo, sei lá. Um testamento à la Manuel Bandeira. Cheio de esperanças em minha terra primeira…
CA – Os dois contos que mais me chamam atenção são Junior, protagonizado por uma travesti, e I-no-cen-te, um monólogo de um personagem preso por pedofilia. Queria que você comentasse um pouco os dois contos: o que o levou a escrevê-los, como chegou aos temas de ambos e aos personagens que os protagonizam.
MF - O conto Junior veio de uma primeira frase que eu tinha no juízo. Era a seguinte: “Vamos lá em casa tomar um café, disse meu pai para o travesti”. Eu escrevi para saber mais desses personagens, quem era o narrador, que filho era este. E, sobretudo, escrevi para tomar um café com o travesti. Gosto muito desse conto. É um conto que fala de solidariedade, amizade, cumplicidade. O conto I-no-cen-te faz parte daqueles avessos de que gosto de escrever. Para entender o outro lado. Para provocar o olhar do leitor, enfim. Também nele eu só tinha a primeira e a segunda frases: “Pois não sabe a peste que é. Esta criança”. Fui atrás de construir a história, de saber quem era essa criança, esse narrador. Vem primeiro a poesia da frase, digamos, depois é que vem a pedofilia, tomando a frase para si, se apresentando…
HUGO VIANA – Amar é crime foi seu primeiro livro lançado pela Edith, selo que você ajudou a criar. Veio depois de publicar Contos negreiros e Rasif pela Record. Quais as diferenças entre lançar por uma grande ou pequena editora? O mercado independente, a ideia de construir algo artesanal, lhe atrai?
MF - Amigo Hugo, eu adoro perder no jogo. Edith é um coletivo do qual faço parte. A gente até ganhou, no ano passado, o Jabuti de Melhor Livro de Poesia. Ademir Assunção publicou pela Edith o livro vencedor, o A Voz do Ventríloquo. Não somos, assim, uma editora. Somos um selo de autofomentação. Vanderley Mendonça, grande editor, está conosco nessa empreitada. E não é fácil, assim, ir furando o cerco. A gente faz porque gosta de provocar uma cena, de não ficar de braços cruzados. A proposta da Edith inspirou a criação de outros coletivos e selos. Era natural que eu publicasse pela Edith. E ainda publicarei livros meus por lá. Gosto disto. Mas é bem diferente, sim, de publicar por uma editora como a Record, que tem mais estrutura, é profissional, distribui e faz circular melhor o livro. Mas olhe: tanto na Edith, quanto na Record, eu sempre digo: quem faz o livro é o autor. É preciso colocar a obra debaixo do braço e ir à batalha. O que não pode é ficar parado, esperando, acreditando em milagres.
HV – Os pequenos enredos de Amar é crime apresentam situações limite: morte, dor, partida; personagens que lidam com a perda e o desespero. Prefere a urgência do drama, de instantes decisivos como ambientação para sua ficção?
MF - O Amar é crime é um livro sobre perdas, o drama do fim, sim. Eu havia, um ano antes, perdido a minha mãe, falecida em 2010. O livro todo traz essa dor. E também traz, sei lá, um certo recomeço. O fato de ele ter sido publicado pelo coletivo Edith já foi um sintoma disto, desse novo caminho a ser trilhado. Eu tive que provocar em mim um desafio, um sentido outro. No livro, os personagens estão meio assim: saindo de um relacionamento, entrando em outras fogueiras, digamos. Pondo à prova os seus desejos, brigando com o mundo para mantê-los, etc. Aliás, há um conto lá chamado União Civil que foi a semente decisiva para eu escrever o romance Nossos Ossos. Algo também nasceu dali, fecundou daquele drama de amor mais adiante.
HV – Como foi a construção desses personagens? Você parece interessado em pessoas à margem, criar vozes para pessoas geralmente sem força política.
MF - Eu sempre digo que pessoas bem-sucedidas não me interessam. Eu não escrevo livros empresarias. Não concordo quando dizem, no entanto, que eu escrevo “para dar voz aos que não têm voz”. Eles têm, sim. Eu colo o ouvido na rua e ouço. E compactuo. E vou construindo a minha vingança junto com eles.
HV – Gostaria que falasse um pouco sobre o estilo de sua escrita neste livro; em especial a preferência por ritmo e rimas. Teve (ou tem) receio de que a reincidência dessas marcas em seus livros (e postagens na Internet) impliquem numa espécie de catalogação prévia por parte do leitor?
MF - Eu sempre digo que eu não escrevo com rimas. Prefiro dizer que escrevo com “ímãs”. Eu trabalho com regiões magnéticas. Eu escrevo procurando sempre companhia para as palavras. Uma conversando com a outra. Isso, claro, é o que me guia. Foi a voz que eu construí. A voz que eu descobri, assim, dentro de mim, ouvida. É difícil abandonar um jeito de ser, entende? Escrever é encontrar essa personalidade, o seu estar no mundo. Se o leitor identifica como meu esse texto, é sinal de que só eu posso escrevê-lo. E escrevo. Claro que quero estender essas possibilidades, mas sempre dentro e a partir deste meu DNA. Não tem como largá-lo. Já estou encalacrado dele. O leitor cansou de mim? Ainda bem que existem outros escritores e outras línguas sonoras para a gente ouvir.
HV – Você escreveu seu primeiro romance depois de seis livros de contos. Ano passado, outros contistas, como Veronica Stigger e Xico Sá (este, quando veio ao Recife, comentou que escreveu um romance para “provar que poderia escrever um romance”), também publicaram seus primeiros romances. A ideia recorrente que as editoras se interessam mais pela narrativa longa de alguma forma influenciou essa decisão? Ou características do mercado não interferem em seu processo criativo?
MF - Eu queria escrever esse romance. Não foi nenhuma editora nem mercado que quis por mim. Eu já abandonei vários projetos de romance no buraco negro de meu computador. Faz tempo que eu já queria me aventurar em um novo fôlego. Depois de cinco livros de contos, fui ficando acomodado, digamos. Quis sacudir o verbo para mais adiante. Acho que encontrei o jeito no Nossos ossos. Adorei ter vencido, de alguma forma, o desafio. Pode notar que o livro não é longo. Eu roubo muito no jogo. Mas a sensação que eu tive, ao final, foi o de ter atravessado o Rio Capibaribe a nado. O Rio Capibaribe e aquele lodo todo.
CA – Este livro é para mim aquele que possui uma voz mais autobiográfica, mas não tanto em relação à coincidência da sua trajetória com a do personagem Heleno, e sim a um tom muito pessoal, principalmente no desfecho. Você poderia comentar essa impressão?
MF - Concordo com você, Cristhiano. É um livro que vem mais com a minha voz. Distancia-se da voz da minha mãe, por exemplo. Eu, na verdade, tive que me cercar de mim, até autobiograficamente, para não perder o romance. Como disse, já perdi vários. Porque eu chegava neles sem um chão, assim, planejado. Para escrever o Nossos ossos eu tive de montar um esqueleto mínimo para não perder a história. E esse esqueleto, sim, passa por mim, por minha voz, repito, por minha chegada a São Paulo, pelo Recife de minha adolescência, pelo teatro que fiz em Água Fria, pelos abandonos que sofri nessa trajetória toda, enfim. Posso dizer que apelei, eu apelei a mim para construir um outro eu, um quase alter-ego, digamos, que é o meu irmão do peito Heleno de Gusmão.
CA – Existe a linha narrativa relacionada ao cadáver do michê, assim como há uma segunda, na qual conhecemos um pouco das memórias do narrador Heleno. As duas linhas narrativas se alternam. Como você chegou a esta estrutura final do seu romance?
MF - Eu, ao escrever o romance, percebi que estava escrevendo um livro “arqueológico”. O leitor, durante a leitura, vai montando o corpo da história. Por isso os curtos capítulos têm nomes de estruturas ósseas. Por isso, em cada parágrafo, só temos a vírgula como pontuação. Nos parágrafos não há interrogações, travessões, exclamações, etc. O leitor, a cada parágrafo idem, vai montando o corpo das falas. Como fazem os meninos no livro, o protagonista na infância: passam o dia catando e caçando e criando ossos. Esses “Ossos” são “Nossos”, eu queria dizer isto. Eu queria o leitor compactuando comigo, rezando pelo “Boy morto”, pelo “boi morto” também. Uma reza só, indo e vindo, migrando, viajando. Para lá, para além. Em cortejo único, todo mundo, amém.
Marcelino Freire
Entrevista realizada por Aloisio Milani e Sergio Cohn em 02/05/2010 e publicada no site www.producaocultural.org.br
Quando o escritor Marcelino Freire encontrou o poema O Bicho na gramática do irmão mais velho, descobriu que queria ser poeta. “O bicho, meu Deus, era um homem”, escreveu Manuel Bandeira. “Descobri que Bandeira era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe.” Nascido no ano de 1967, em Sertânia (PE), Marcelino é de família grande e pobre. Estudou e chegou ao curso de letras. Largou o trabalho de bancário para se dedicar a conhecer escritores pernambucanos. “Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro”, afirma. Em São Paulo, a carreira literária de Marcelino foi impulsionada pela mesma inquietação. Reuniu novos escritores para trocar ideias, incentivar pequenas editoras, publicar livros e organizar antologias. Por esse caminho, acabou por afirmar a existência de uma nova geração literária. Entre seus livros publicados estão Angu de Sangue (2000), Contos Negreiros (2005) e Rasif: mar que arrebenta (2008). Há cinco anos organiza a Balada Literária em São Paulo, evento que reúne dezenas de escritores nacionais e internacionais. “Digo sempre que enquanto outros fazem eventos com um milhão, eu faço com ‘hum-milhação’”, brinca. Sobre política cultural, defende a adoção de intercâmbios, residências artísticas, bolsas de criação e circulação de escritores nas universidades.
- Como a literatura chegou até você no interior de Pernambuco?
Eu nasci em Sertânia, no sertão de Pernambuco. Sou o caçula de uma família de nove filhos. Uma família que não tinha biblioteca em casa, não tinha livro, não tinha água. Então, como é que eu me interessei por literatura? Como eu tive vontade de ser escritor em uma casa que não estava cercada disso, que não era movida por isso? Foi quando eu li um poema do Manuel Bandeira em um livro da escola do meu irmão mais velho. Eu estava com nove para 10 anos de idade, li um poema chamado O Bicho [“Vi ontem um bicho / Na imundice do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa; / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem” (1947)]. Pensei que queria fazer o que aquele cara fazia, queria ser poeta. Descobri que ele era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, Rua da União, Rua da Aurora, falava do Rio Capibaribe. Ele não queria ser engenheiro, pedia desculpas ao pai por ser um poeta menor. Eu queria ser esse poeta menor. Minha família era sertaneja e queria que seus filhos estudassem, mas para ser engenheiro, médico, advogado. Nunca vi uma mãe dizer que queria que o filho fosse poeta. De certa forma, Manuel Bandeira me ajudou a não ser econômico, no sentido de pensar minha vida economicamente. Comecei escrevendo alguns poemas, imitando o Bandeira, querendo ser doente como o Bandeira, tuberculoso, comecei até a ensaiar umas tosses. Juro! Quando tinha mais ou menos 10, 11 anos, descobri que tinha sopro no coração. Isso foi minha glória literária! Ia pelos hospitais, pelos corredores. Bandeira abriu essa porta, me deu a vontade de ser escritor.
- É meio ficcional essa tuberculose do Bandeira. Que tuberculoso fuma dois maços de cigarro por dia e sobe ladeira em Santa Teresa (risos)?
Tem um crítico literário que encontrou Manuel Bandeira um dia na rua e disse: “Você é uma fraude! Desde muito tempo você disse que ia morrer e não morre nunca!”. Eu gostava muito dessa figura. Meus irmãos iam jogar bola, andar de bicicleta, mas eu nunca quis saúde não. Gosto do Bandeira porque ele me doutrinou a ser doente. As pessoas vão atrás de saúde, eu não. Quanto mais um artista me deixa doente, mais eu gosto dele.
- Como foi esse começo de vida de escritor? A vivência em Pernambuco e a vinda para o Sudeste?
Escrevia e participava de grupos de poesia. Fiz curso de letras, mas não terminei. E tinha um amigo que sempre me chamava para vir para São Paulo. Eu dizia: “Ah, o que eu vou fazer em São Paulo?”. Eu trabalhava em um banco como revisor de textos, era uma carreira no banco que estava se apresentando, eu fui office boy, escriturário, revisor. Mas eu disse: “Não quero banco. Cadê o Manuel Bandeira, cadê minha poesia, cadê os escritores dessa cidade?”. E aí eu deixei o banco e passei dois anos conhecendo os escritores do Recife: Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Britto, Wilson Freire. Eu fui conhecer todos eles e fazer cursos, encontrar esses escritores na cidade, esses artistas, poetas. Quando o dinheiro acabou, aceitei o convite de vir para São Paulo.
Mas como foi a procura pelos escritores no Recife?
Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro, que não o do meu irmão, que não o do amigo. Assim que eu saí do banco, tinha uma oficina de criação literária, que era a primeira oficina que o Raimundo Carrero ia fazer no Recife. Foi lá que eu o conheci. Além dele, conheci outros escritores que estavam ensaiando seus primeiros romances, seus primeiros livros de contos. Era uma necessidade de interlocução mesmo, para não ficar sozinho, acuado. Nesse sentido, eu já fazia teatro também, comecei muito novo, com 10 anos de idade. O teatro deu muita força para o meu trabalho, para o meu texto. Eu escrevia peças e também produzia. Com 14, 15, 16 anos, eu montava meu próprio texto e levava em temporada na escola, em teatros na cidade, sem absolutamente dinheiro nenhum, mas com muita vontade de fazer alguma coisa. Quando eu fui fazer a oficina do Raimundo Carrero, fui para encontrar esses interlocutores e para saber também o real peso ou o fracasso do que eu fazia.
- Naquele momento, você considerava que já tinha uma voz própria ou estava a procurando?
Encontrei quando vim para São Paulo. Eu cheguei em 1991, zerado de tudo. Descobri aqui, por exemplo, que eu tinha sotaque. Isso é um caminho para você descobrir que tem uma voz. Descobri que eu tinha muita saudade, um banzo imenso da minha família, do barulho da casa. Você começa, de alguma forma, a se agarrar nas suas raízes para poder enfrentar essa cidade, que tem tudo para te atropelar. Então comecei a descobrir que tenho sotaque, que tenho Sertânia dentro de mim, que eu não achava que tivesse. Aí comecei a escrever uns textos. Depois eu verifiquei que os textos que eu publicava no Recife tinham essa voz, mas lá era uma voz costumeira. Uma forma de falar, de escrever, pontuar, de cantar um texto, muito peculiar do Recife, de quem mora lá. O Joca Reiners Terron, que é um escritor radicado aqui em São Paulo, foi a Recife não tem muito tempo e voltou dizendo: “Encontrei vários ‘Marcelinos’ lá no Recife! Você é igual ao poeta Miró, você imita o poeta Miró de Muribeca!”. E eu disse: “Joca, você estava na minha terra. Lá você ia encontrar várias pessoas falando como eu, no mesmo desespero, no mesmo registro de vexame”.
- O choque cultural é uma experiência fundamental para o artista. Essa vinda para São Paulo foi isso?
Para mim foi fundamental. Só escrevi Angu de Sangue – primeiro livro que fiz por uma editora –, porque eu vim morar em São Paulo. Um angu que deixou de ser o angu da tradição – de milho – para ser um angu de sangue! Sou uma pessoa preguiçosa, mas muito preguiçosa, se me deixassem com um suco de maracujá no Recife, eu ia morrer lá. O que eu quero mais? Suco de maracujá, sol, descanso, família por perto, não é verdade? (risos) Então, São Paulo foi importante porque me acordou para forças que eu julgava não ter, forças de luta mesmo, de inserção.
- Na sua chegada, a cena literária de São Paulo estava quase estagnada. Com a sua geração, houve um ressurgimento. Como foi perceber que vocês construiriam algo?
As pessoas aperreadas demais com a arte, com aquela vontade visceral de fazer, se sentem vazias em determinados momentos e dizem: “Algo precisa ser feito”. A mesma coisa que me impulsionou a sair do banco lá no Recife me fez, já morando aqui, sair em busca dos escritores da cidade, dos meus contemporâneos. Ouvia falar do Marcelo Mirisola, do Luiz Ruffato, do Nelson de Oliveira, que tinham publicado livros, mas eu não conhecia ninguém. Eu moro na Vila Madalena e trabalhava como revisor em uma agência de propaganda. Vivia correndo de lá para cá, trabalhando muito, aquela chatice, até altas horas da madrugada. Então, eu resolvi reservar o sábado e o domingo para passear pelo meu bairro. Andava nas livrarias, tomava um café, ia até os sebos. Tinha uma necessidade de encontrar uma turma, de, mais uma vez, encontrar interlocutores. Um dia, passando pela Rua Teodoro Sampaio, vi um sebo chamado Sagarana, e se o dono coloca esse nome, no mínimo ele gosta de Guimarães Rosa. Então eu entrei e conheci o dono, que é o Evandro Affonso Ferreira. Vi que ele escrevia maravilhosamente bem e ele me convidou para uma reunião com escritores, uma coisa que eles estavam tentando retomar. Nos encontramos em um café da Praça Benedito Calixto, mas era um lugar muito barulhento, você não conseguia ouvir as pessoas, então me propus a conseguir outro lugar. Nas minhas andanças pela Vila Madalena, conheci o Iuri Pereira, que é um dos donos da editora Hedra, e então ele falou de um café que tinha no bairro, próximo da sede da Hedra, e ofereceu também o próprio espaço da editora. Assim, acabamos nos reunindo em um lugar mais silencioso. O Evandro, como conhecia muita gente por causa do sebo, começou a convidar alguns escritores para que fossem lá tomar um café com a gente. A ideia era que o escritor fosse lá, conversasse um pouco e depois lesse algumas coisas. Foi lá que eu conheci o Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Glauco Matoso, passou por lá também o João Alexandre Barbosa, um grande crítico literário, que era rato de sebo e comprava livros com o Evandro. Ele esteve lá, conheceu um texto meu, disse que tinha gostado muito e me indicou para o Ateliê Editorial. Depois, ainda escreveu o prefácio do livro Angu de Sangue. Mas foi a partir dessa necessidade de interlocutores que nos reunimos. Todos estavam exatamente com a mesma necessidade. O Ruffato tinha publicado o primeiro livro, o Nelson tinha feito o segundo, o Evandro estava preparando o primeiro, eu também estava preparando o primeiro. Costumamos dizer que foram os livros que se encontraram. Mas tinha um vazio também. O Nelson falava da editora do Joca Reiners Terron, a Ciência do Acidente, o Marcelo Mirisola falava do pessoal da Livros do Mal, uma editora do Rio Grande do Sul, do Daniel Galera e do Daniel Pellizzari, todos fazendo alguma coisa. Então, a partir daí resolvemos fazer uma antologia. Uma antologia da geração 90, porque saiu a antologia 100 Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado pelo Ítalo Moriconi, um trabalho extraordinário, pontual, para trazer o conto de volta à cena, mas quando chegava na geração 90 ficava um vazio. Nesses encontros descobrimos que tinha muita gente boa espalhada pelo Brasil. Foi aí que o Nelson de Oliveira organizou as antologias Manuscritos de Computador (2001) e Os Transgressores (2003). Era essa necessidade de interlocução. E era uma fase em que você tinha grandes editoras dominando os jornais e nós éramos de pequenas editoras, era a Ateliê Editorial, a Boitempo, a Azougue. Mas então, de repente, eles começaram a ouvir falar dos novos escritores, a se perguntar que escritores eram esses.
- Você fala da inquietação dos escritores e das pequenas editoras… Além dessas, quais outras características da geração 90?
Era exatamente essa coisa de produzir um texto e dizer: “Olha, estou aqui”. Falava-se muito pouco da Livros do Mal, da Azougue, da Boitempo, da Ateliê. Nós não nos sentíamos ouvidos ou vistos. Mas, para que fôssemos ouvidos e vistos, tínhamos que fazer texto, produzir. Tinha gente produzindo muito bem, fazendo texto bom. Tinha que participar também, mas participar fazendo! Por isso, fomos fazer nossas antologias. Em 2003, eu e Nelson de Oliveira organizamos a PS SP, uma revista um pouco tardia para o encontro que havia na Hedra, porque o grupo já não se encontrava tanto, mas foi uma forma de registrar esses escritores. Fizemos a PS SP, que significava o Post Scriptum São Paulo, que vinha depois do que estava escrito em São Paulo.
- Vocês conseguiram se impor na cena e nos cadernos literários. Talvez a última vez que os cadernos tiveram uma importância na formação de público…
Concordo plenamente. O Jornal da Tarde tinha um caderno de literatura muito bom. O caderno Ideias, do Jornal do Brasil, era maior. E o Prosa & Verso, do jornal O Globo, resistia. Eu lembro que o Angu de Sangue foi resenhado em vários cadernos literários. Temos uma fase também da revista Cult, quando ela pautava, assinava, mostrava o que estava acontecendo na literatura. Depois esses veículos foram perdendo espaço. Veio a internet, a Cronópios, tudo mudou.
- Hoje, qual é o caminho para a formação de leitores?
Tem uma coisa que pontua a literatura para uma nova frente de batalha: a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ela inspirou muitas outras festas, encontros. A Jornada Literária de Passo Fundo faz isso há 25 anos, com a Tânia Rösing [entrevistada no livro 3]. O escritor está cada vez mais saindo do casulo, aprendendo a apresentar sua fala em outras mídias. Adaptações para o teatro, vídeos no YouTube, trailers. Têm tantas frentes para tornar a literatura mais dinâmica. Ouvi uma vez uma escritora falar: “Eu escrevia porque eu não sabia falar. Agora, para continuar escrevendo, tenho que falar”. É isso mesmo. Tem que circular bastante. Faço isso muito. Vou na periferia, por exemplo, e não vou só por ir, eu enturmo. Vem da mesma vontade de encontrar meus pares, de encontrar quem é que está fazendo literatura e tirando a literatura do casulo, tirando a literatura das academias, tirando a literatura da naftalina. Vou para os saraus da periferia e conheço o trabalho vigoroso que os poetas fazem. Esse agrupamento tira a palavra um pouquinho da gaveta e joga para o outro. Essa é a formação de leitor! É o que o Sérgio Vaz faz no Sarau da Cooperifa há oito anos, toda quarta-feira, faça chuva ou faça sol. E 300, 400 pessoas param para ouvir poesia na periferia de São Paulo! Aquilo modificou a geografia daquele lugar. Os moleques leem poesia e isso muda a maneira como eles encaram a literatura, que, muitas vezes, é dada de forma chata na escola, de forma burocrática. Nesse sentido, essas festas para a literatura são importantes, porque estamos em uma fase de muita concorrência com outros apelos. Hoje, as pessoas têm iPod, DVD, internet, é muita coisa. Me perguntaram agora há pouco o que eu acho do iPad. Eu tenho que estar, quase mensalmente, respondendo questões sobre essas novas tecnologias. É importante que elas apareçam, o escritor tem que estar discutindo os diretos autorais do iPad. Mas, ao mesmo tempo que existe o iPad, tem gente aqui que “ipede” esmola. Ainda estamos formando bibliotecas e temos que ficar respondendo sobre tecnologia. Eu não sei onde isto vai parar, mas vamos embora, o que se pode fazer? A literatura tem que estar atuante, porque senão desaparece.
- E você se tornou um agitador da literatura em São Paulo…
Quando me interessei pelo teatro, descobri que podia ser ator, escrever o texto, produzir e dirigir. Quando estava na escola, eu já pegava almofadas e jarros da casa da minha mãe para poder fazer cenário de peça, produzir alguma coisa e sair da impossibilidade. Não era porque eu não tinha dinheiro para o cenário que eu não ia fazer teatro. Ia me sentindo capaz de realizar. Aos 18 anos de idade produzi uma peça chamada A menina que queria dançar, uma peça infantil que escrevi aos 14 anos para que a Patrícia França – uma atriz que depois veio fazer Globo e hoje está na Record – fizesse a personagem principal. Ela fez com 14 e eu com 18 anos. Eu queria a peça encenada no principal teatro da cidade, o Teatro de Santa Isabel. As pessoas me perguntavam como eu ia colocar a peça lá, porque era o melhor. As pessoas já colocavam um “não” antes mesmo de tentar. Na época, eu trabalhava no banco e fazia esse tráfego entre meu trabalho formal e o que eu queria fazer, então produzi os folhetos na gráfica do banco, fiz um bom programa, um projeto bem feito, chamei fotógrafo profissional. De fato, eu pensava sempre mais do que eu poderia fazer. E era pensando assim que eu tirava um pouco da minha pequenez. Aí fui no teatro, consegui a temporada, que foi vitoriosa, linda, e fez a Patrícia França ganhar o prêmio de atriz revelação. A partir daí, abandonei o teatro, queria mesmo a literatura. Estava insatisfeito, cansado de Recife, e veio o convite para vir para São Paulo. Mantive a mesma postura quando vi aqueles prédios imensos na Avenida Paulista. Eles tinham tudo para me sufocar, eu vinha de longe e pensava que tinha que ver aqueles prédios de igual para igual. Tinha essa força de transformar. Dizem que a Avenida Paulista é o centro da cidade, o centro do Brasil, a principal avenida da América Latina e eu pensava que não podia estar longe dela. Então, eu consegui trabalho ali. Com a literatura foi a mesma coisa. Conversava com Nelson sobre a revista PS SP e ele sempre falava que não tínhamos dinheiro, enquanto eu dizia que dinheiro não era problema e o instigava para fazer. Mesmo depois de lançar meu segundo livro e estando dentro de uma editora, a Ateliê Editorial, eu não esquecia meu lado amador. Em 2002, na Ateliê, fiz uma coleção chamada 5 Minutinhos, para ser distribuída gratuitamente. As pessoas dizem que não têm tempo para ler, então eu fui fazer a coleção 5 Minutinhos, que você lê no cabeleireiro, enquanto espera o ônibus, e de graça. O Plínio Martins, editor da Ateliê, meu amigo até hoje, foi quem me ajudou nessa empreitada. Peguei o Manoel de Barros, João Gilberto Noll, Millôr Fernandes. Mas, antes, já me perguntavam se eles iam aceitar. E eu dizia: “Eu ainda nem perguntei para eles!”. É uma teimosia, uma vontade de fazer, de sair da mesmice. Hoje, publico pela editora Record, mas fico sempre envolvido em projetos que eu possa começar do zero, que eu possa me sentir confortável. Tem muita coisa para fazer na literatura, muita coisa para divulgar, faço a Balada Literária, que chegou ao quinto ano em 2010. Eu digo sempre que enquanto outros fazem eventos com um milhão, eu faço com “hum-milhação”. No sentido humano mesmo, de pedir força e ajuda a essas pessoas. Eu conheço muitos escritores, que são meus amigos e sabem que eu faço coisas para tirar a literatura desse casulo, dessa chatice acadêmica, e transformar em um movimento vivo, que participe da cidade, da geografia da cidade, que modifique tudo ao seu redor. Eles sempre que podem estão dispostos a participar. Se eu colocar dinheiro como primeiro plano, eu não vou fazer nunca! Eu gasto meu dinheiro e graças a Deus eu posso gastar. A cada edição da Balada Literária, eu fico falido, mas, no entanto, eu encontro parceiros: o Sesc Pinheiros, a Biblioteca Alceu Amoroso Lima, a Mercearia São Pedro, o Ó do Borogodó. Então, desenho uma programação com o apoio dos parceiros. Tem a parceria dos escritores também, quando eu digo: “Não tenho dinheiro, pelo amor de Deus!”. E eles vão mesmo assim. No ano passado, eu encontrei, em Porto Alegre, o Fabiano dos Santos, que cuida da parte de literatura do Ministério da Cultura, e ele falou assim: “Marcelino, eu vi no jornal que vai ter a 4a edição da Balada Literária, por que você ainda não nos procurou?”. E eu disse: “Fabiano dos Santos, por que você ainda não nos procurou?”. Acho que o Ministério da Cultura também tem que ter um olhar. Não é só dizer: “Manda um projeto!”. Que inferno da porra! Eu sei que tem que mandar projeto, mas ou eu faço projeto ou eu faço a Balada Literária. Um projeto é uma burocracia danada. Pede documento daqui, pede documento dali, parece um crediário das Casas Bahia, uma pergunta atrás da outra. Tem hora que é tanta pergunta, tanta papelada no meio do mundo, que eu não aguento. Estou me profissionalizando, mas o ministério tem que ter essa vontade que mostrou, de ir atrás. Agora eu tenho uma pessoa que já está fazendo o projeto para ter um pouco de descanso, no sentido de infraestrutura mesmo. E de pagar os autores e de pagar todos igualmente.
- Não dá para ficar submisso ao incentivo público, às políticas públicas. Como fomentar esse agito? Tem que se pensar isso, não é?
Tem que se pensar. Esse governo, inclusive, abriu muito o diálogo para a literatura. Não lembro de nenhuma outra fase em que eu tenha ido várias vezes à Brasília para responder ou para saber o que está acontecendo. Mas é aquela coisa, tem que mandar o projeto. Eles não estão olhando ainda. Em Belém, estão produzindo a duras batalhas e o governo poderia ajudar, perguntar o que eles estão precisando para poder continuar produzindo, que é importante para a literatura. Eu faço parceiros, amigos. É um jogo de futebol. Você joga a bola para o outro, o outro pega, vaivém. É uma parceria, um exército contra a mesmice, contra essa concorrência desleal com as grandes mídias e as grandes tecnologias. Vem um monte de gente falar do Kindle, do iPad e não acaba! Mas não faço parte dessa discussão tecnológica no seu extremo. Faço parte, claro, da discussão sobre os direitos autorais. Até então, as editoras estão nos escrevendo para discutir como serão os direitos autorais desses livros que estão sendo digitalizados. Acho que o que não pode é pagar apenas 10% para os autores. Se pagavam 10% no livro impresso, no livro digitalizado não tem sentido pagar só 10% ao autor. Não tem distribuidor, papel, não tem tinta, não tem transporte, como é que pode o autor só receber 10%? Essas discussões são importantes.
- Você lançou dois livros por conta própria e lançou livros por editora. Qual o papel da editora no processo de criação, de qualificação do livro?
Fiz meus primeiros livros por conta própria, Acrústico, de 1995, e EraOdito, de 1998. Depois veio Angu de Sangue, pela Ateliê. A editora é importante no sentido do profissional, da capa, de pensar o projeto, de distribuir. São pessoas que têm armas para trabalhar com isso, conhecimento para trabalhar. Os dois primeiros livros foram importantes para eu sair da gaveta, para ter uma atitude diante daquilo em que eu acreditava. Para não ficar aquele rancor de achar que o mundo está contra mim. A diferença entre eu e aquelas pessoas que dizem: “Como é que aquele Marcelino Freire, que escreve aquelas merdas, consegue que as pessoas falem dele e eu estou aqui com o meu texto?”, é que eu faço! E isso para mim é fundamental. Por outro lado, eu cresci muito trabalhando com o Plínio, que é um super editor, discute capa, distribuição, conversa. Quando você está em uma editora, os livros são recebidos nas redações de forma diferente, não é um livro independente, já passou por uma filtragem. O Angu de Sangue saiu pela Ateliê Editorial com um prefácio de João Alexandre Barbosa. Já era uma filtragem naquelas pilhas e pilhas que os jornais recebem diariamente. Nesse sentido, de recepção do seu trabalho, você vai para um outro patamar. Quando recebi o convite da Luciana Villas-Boas para ir para a editora Record, conversei com o Plínio e ele falou: “Vai embora porque a Luciana vai conseguir fazer coisas com você que eu, como pequena editora, não consigo”. E fui. Mas quando cheguei para conversar com a Luciana, já tinha esse histórico de diálogo. Eu dizia para ela que a única coisa que eu não queria na Record era ficar diluído, porque eles publicam muito, e não quero ser só mais um livro publicado. Eu quero, por exemplo, acompanhar a capa, quero ter esse diálogo, essa conversa. Com Rasif: mar que arrebenta, de 2008, foi a mesma coisa. Ela me deu carta branca e eu acompanhei todo o processo, dialogando, sugerindo revisão e outras tantas coisas. Você dialoga com o profissional da área e isso ajuda muito na continuação da sua trajetória, a continuar amadurecendo naquilo que você faz.
- E sobre o momento atual? Como ajudar os movimentos que estão saindo do casulo? Quais as necessidades de fomento e de políticas públicas hoje?
Quero conhecer quais são os meus vizinhos latinoamericanos e dos países que falam a língua portuguesa, eu quero esse intercâmbio. Quero ir para lá e que eles venham para cá, quero antologias, residência dos escritores. Isso não rola ainda. O escritor tem que circular pelas universidades do Brasil quando lança um livro, para discutir com os seus leitores. Mas tem que circular com as universidades preparadas para recebê-los, saber quem eles são, o que eles estão fazendo ali. Eu sinto muito a falta dessa integração maior da língua portuguesa. E quando eu digo língua portuguesa ou latinoamericana é porque tem muita coisa ainda para conhecer dos nossos vizinhos em língua, vizinhos em território. É lógico que também quero conhecer o inglês, o americano, o francês, mas acho que se começasse em uma articulação com essas pessoas que falam a nossa mesma agonia, seria um ponto positivo demais. Coisas também de políticas públicas, de verbas para o setor criativo, é uma briga longa. Com o movimento Literatura Urgente – junto com Ademir Assunção, Ricardo Aleixo, Sergio Fantini –, já conseguimos ter bolsas de criação que a Petrobras está dando. Quando se fala em políticas públicas para essa área, se fala muito no livreiro, no editor, no distribuidor, mas e o autor? Estive em Brasília para uma reunião da câmara setorial e conferência nacional. É uma coisa que vai definir uma política do Fundo Nacional de Cultura, do destino das verbas. Os livreiros estão lá, mas os escritores, não. Ficava eu lá me esgoelando, mas conseguindo mudar a redação de alguma coisa. É uma briga constante. Agora, repito, isso é pontual, porque nunca o Ministério da Cultura deu essa abertura de diálogo. Mas a gente tem que estar o tempo todo cutucando. Tem quem diga que o escritor só precisa de um papel de pão e uma caneta na mão. Mas que visão romântica é essa? Poeta não come, não tem família? O poeta Manoel de Barros disse uma coisa maravilhosa: “Minha poesia não gosta de dinheiro, mas o poeta gosta!”. Você precisa viver.
- O escritor precisa ser um empresário da própria obra? Mobilizar, divulgar, cuidar?
Eu publico um livro a cada três anos. Eu não escrevo tanto, mas sou uma pessoa muito inquieta, não sou aquele escritor no casulo. Aí vou aprendendo com esses irmãos de batalha, com o que Ivam Cabral e os Satyros fizeram na Praça Roosevelt, com o Sérgio Vaz na Cooperifa. Aprendo com eles o que o Glauco Mattoso uma vez falou: “É preciso interferir na geografia das coisas”. O Manoel de Barros fala outra coisa que eu acho ótima: “É preciso esfregar pedras na paisagem”. Nesse sentido, tenho um trabalho, sim. Tenho o criativo, a coisa artística, que é o que me basta como artista. Aquilo que quero resolver como sufoco, como agonia, como vingança, eu já resolvo artisticamente. Depois de escrever o meu continho, vamos para a luta, vamos produzir livro, ver quem está escrevendo coisa nova, ver como juntar essas turmas todas para formar esse exército, esse grupo. Não dá para ser escritor em uma redomazinha. Não sou desse tipo, eu não me aguento. Essa teimosia da minha mãe, que saiu do sertão semi-analfabeta, é o que me guia para qualquer coisa. O escritor que não se envolve socialmente, não se articula com as pessoas, está de brincadeira. Ele está achando que é um Deus, um santo? É Vaticano agora? A coisa se resolve é na luta, é no dia-a-dia.
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