Orhan Pamuk
Entrevista publicada no jornal O Globo, em 01/01/2012, conduzida por André Sollitto
Em 2004, o escritor turco Orhan Pamuk esteve no Brasil para uma palestra. Seu livro Meu nome é vermelho havia sido publicado no país, mas o evento foi pouco concorrido. No final de 2011, ele voltou para uma série de conferências no projeto Fronteiras do Pensamento em São Paulo e Porto Alegre. Os ingressos se esgotaram rapidamente. A diferença mostra como o escritor se tornou popular no mundo todo em pouco tempo. Depois de publicar Neve (2004), romance em que conta a história de um poeta envolvido em uma série de conflitos religiosos em uma pequena cidade do mundo muçulmano, foi laureado com o prêmio Nobel de literatura, em 2006. Durante seus quase 38 anos de carreira, já publicou 14 livros, a maioria deles traduzida para o português. O último deles, O romancista ingênuo e o sentimental (Companhia das Letras), reúne seis palestras que proferiu em Harvard. Em entrevista a ÉPOCA, Pamuk conta sua experiência como leitor e romancista e expõe sua visão do mundo da literatura.
- O senhor nasceu e cresceu em Istambul, uma cidade em que as tradições do Ocidente e do Oriente se encontram e se misturam. Como o senhor vê esse encontro de tradições?
Eu não tinha consciência disso como tenho hoje, porque o 11/9 fez com que esse “confronto” de civilizações entre o ocidente e o oriente se tornasse um tema global. Na minha infância, isso era um tema turco. Por causa de suas geografia e história, a Turquia está situada tanto na Europa quanto na Ásia. Era parte do Império Otomano. Quando esse império ruiu, todas as diferentes nações se tornaram Estados separados. Então, ficamos sozinhos com nossa “turquice”. Atatürk (Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia e primeiro presidente do país) impôs tradições turcas a nós, junto com visões ocidentais de progresso. Foi uma decisão de “ocidentalizar” o país, algo semelhante ao que acontece com o Japão e com a Rússia. Isso gerou reações contrárias. Essa luta formou a cultura e a identidade turcas. Isso acabou até criando o romance oriental/ocidental, em que os valores do oriente e do ocidente se encontram, e então alguma garota, que acredita demais nos valores ocidentais, acaba se prostituindo... Meu próprio livro O castelo branco se baseia um pouco nesse tema.
- Eu ia perguntar se esse encontro afetou seus trabalhos.
Sim, não afetou apenas O castelo branco, mas praticamente todos os meus romances tratam desse assunto. É preciso compreender que quem vive em Istambul não fica se perguntando: “sou ocidental ou sou oriental?” Elas vivem suas vidas. Por isso, eu não tinha consciência desse confronto entre Oriente e Ocidente como tenho hoje, porque o modo como a Turquia impôs a modernidade e a secularização, pela força das armas, a uma sociedade tradicional islâmica é basicamente o que os Estados Unidos estão tentando fazer no mundo.
- Como o senhor vê o papel político de um escritor? Ele precisa tomar partido e defender sua posição sempre que possível?
Não. Nós tomamos partidos políticos por conta de nossa ética pessoal. Eu acredito fortemente que um escritor não deve se envolver em situações políticas, mas é inevitável. Escrever um romance é se identificar com pessoas. Não apenas o seu tipo de pessoa, mas com pessoas que são muito diferentes de você. Quando você começa a fazer isso, como eu fiz em Neve, você precisa compreender questões políticas islâmicas. Isso não significa que eu concorde com as situações políticas islâmicas apresentadas no livro. Meu dever ético não é julgar e criticar, mas me colocar na posição de alguém e tentar entender por que ele tem tanta raiva do Ocidente.
- Assim com o senhor sofreu forte oposição por comentar assuntos considerados tabus (como o genocídio de armênios cometido pelos turcos em 1915), vários escritores latino-americanos foram vítimas de oposição por causa de seus livros. O senhor sente algum tipo de identificação com eles?
Claro. Depois que meus problemas começaram, eu senti ainda mais essa identificação. Mas em 1979, quando Harold Pynter e Arthur Miller foram à Turquia – naquela época eu não era um escritor tão famoso, mas tinha alguns livros publicados –, eu servi de guia a eles. E era um período de forte repressão, mas eu acreditava na liberdade de expressão. No final, meu principal valor é a liberdade de expressão. Eu entendo qualquer escritor, de qualquer lugar no mundo, que sofra repressão.
- Para o senhor, qual é o papel da literatura?
Comunicação. Olhar para o coração humano. Ver humanidade em todas as culturas, em todas as situações, em todas as classes, cores, raças, sexos. Ver a vida claramente. Para me perguntar a mim mesmo coisas como “por que vivemos, quais são nossos valores na vida, quais são os valores que devemos respeitar, que tipo de vida devemos viver”. Questões que as pessoas esperam da religião, da filosofia, eu espero de romances, de literatura. Não acredito em força política fora dos romances, mas, sabe, às vezes as pessoas me pedem para assinar algo, um abaixo-assinado, e eu preciso assinar. É inevitável, em países em que a democracia é limitada, não fazer parte disso. Tenho sorte, sou famoso, e acabo me envolvendo. Mas minhas motivações não são nunca políticas. Quero escrever bons romances. Eu escrevo pela beleza do romance. Ponto final. Mas também quero ser uma pessoa politicamente correta.
- Notei que o senhor tem uma conexão muito forte com Jorge Luis Borges. Como o senhor vê essa relação?
Literatura não tem a ver com política. Traduções são feitas, você pode comprar livros em lojas como o Amazon em cinco minutos... literatura é, hoje, um mundo muito grande, mas a comunicação o torna bem pequeno de se alcançar. Não prestamos atenção se ele argentino. Ele é um grande escritor, queremos ler o que ele escreve. Ele transforma a literatura. Eu gosto do Borges, como um escritor. Sinto prazer em ler suas coisas. Mas como me ajudou na minha vida! Em 1985, eu estava em Nova York, e pela primeira vez na vida eu passava tanto tempo longe da Turquia. Eu estava fascinado pelas bibliotecas americanas, pela cultura americana, pelos museus... Eu ficava me perguntando: “onde está meu sentimento turco?” Depois disso, comecei a ler literatura clássica islâmica. E Borges me ajudou a enxergar as alegorias, os jogos de palavras, os truques narrativos, que podem ser encontrados aos montes na literatura islâmica. Por causa de Borges, li esses textos apenas pelo seu valor intelectual. E a partir de então eu decidi que eu poderia usar esses truques nos meus romances, como fiz com O livro negro e Meu nome é vermelho.
- No seu último livro, O romancista ingênuo e o sentimental, o senhor fala da sua experiência como leitor de romances. O senhor consegue se lembrar se houve algum momento claro em que decidiu não apenas ler, mas também escrever?
Foi algo relacionado ao fato de eu ter chegado a um beco sem saída com minhas pinturas. Eu queria ser um pintor, como disse no meu livro Istambul, mas, de alguma maneira, cheguei a um beco sem saída. Não sei explicar como. Mas eu sabia que estava destinado a viver em quarto, sozinho, sendo criativo, em vez de trabalhar em uma empresa, recebendo ordens, ou sendo um professor, um vendedor... Sabia que não seria assim. Então, minha decisão foi ser criativo. De fazer algo sozinho, com papel e caneta. Então, trocar para a literatura foi uma maneira de usar minha criatividade. Me lembro do dia em que quis ser romancista. Eu estava assustado, mas sabia que precisava escrever algo em uma página. Lembro de ler, naquela época, apenas O estrangeiro, de Albert Camus. Simplesmente porque ele lhe dá tanta boa vontade. Eu me sentia otimista. Escrever parecia tão simples: ir à praia, observar pessoas, escrever de maneira lírica. Eu estava lendo, relendo, relendo, e tentando escrever minhas sentenças. Meu primeiro livro não teve nada a ver com ele – tinha mais a ver com longos épicos, mas eu estava tentando me formar lendo esse livro de que eu gostava tanto.
- Nesse mesmo livro, o senhor fala de escritores famosos. Quais foram os autores que mais influenciaram sua maneira de escrever?
Nesse ponto, não sou muito diferente de outros: Tolstói, Dostoievski, Proust e Thomas Mann são meus quatro maiores romancistas. Eles são muito bons. Gosto do apetite deles e da atenção aos detalhes. E eles também escrevem grandes livros, e eu gosto disso. Eles também continuaram por anos, e espero ser capaz de fazer isso. Além disso, há também outro grupo de escritores: Borges, Nabokov, Calvino. Eles me deram algo para pensar em uma literatura “caixa dentro de caixa dentro de caixa”. Literatura pós-moderna. Me deram os meios de sair do formato padrão do romance do século XIX, que eu respeito e, de certa maneira, voltei a ele em meu livro O museu da inocência. Mas é preciso usar esse formato de maneiras diferentes.
- Há algum escritor que foi inócuo em sua formação? O senhor leu, mas ele não teve influência nenhuma na sua maneira de escrever?
Li Patricia Highsmith, mas não fui influenciado por ela. Não que eu não quisesse ser influenciado – não tenho medo das influências. Como vivo em um lugar tão distante, o fato de escrever sobre Istambul já evita que as influências fiquem claras.
- Hoje, quais são os autores que mais chamam sua atenção?
Não leio mais tanto quanto costumava. Admiro Thomas Bernhardt, Samuel Beckett. Acompanho García Marquez também.
- O senhor dá várias palestras ao redor do mundo. Conhecer seus leitores é algo importante?
Quando você dá uma palestra, você não conhece apenas seus leitores. Você chega perto de suas culturas. Agora, estou em São Paulo. É minha segunda visita ao país. Vou a museus, olho as coisas... É sempre ótimo conhecer meus leitores, que gostam dos meus livros, sorriem de maneira tão gentil. É ótimo, eu me sinto honrado. Mas ando pelas ruas, vou a museus, tento compreender os jornais, visito livrarias. Eu gostei muito do que vi, porque sempre comparo com o que vejo em Istambul. Sou professor de Humanidade na Universidade de Columbia. Mas quero ser professor de Modernidade Comparada, que é uma disciplina que eu quero inventar. Brasil, México, Índia, China, Coreia são muito similares. Jornais, publicidade, programas de televisão, raivas, diferença entre classes mais e menos abastadas, pretensões das classes superiores, legitimação do poder, papel do exército... Essas coisas são tão parecidas e tão diferentes, ao mesmo tempo, em vários lugares, que eu digo a mim mesmo que deveria haver uma cadeira de Modernidade Comparada em Columbia. Gosto de comparar esses detalhes. Sempre que viajo tento observar isso. Por exemplo, andei pela Avenida Paulista e vi que as bancas de revista vendem livros de bolso, assim como na Itália. Ou os jornais que dão cupons...
- O senhor é adepto de novas tecnologias? Como o senhor escreve seus romances?
Eu escrevo à mão, e isso não vai mudar. Quando as primeiras máquinas de escrever chegaram, eu já escrevia à mão. Quando surgiram os primeiros computadores eu tentei escrever, mas eles machucavam meus olhos, porque eram muito primitivos. Já sou velho, não vou mudar meus hábitos. Mas é claro que eu mando emails, que eu tenho um iPad, um celular... Tenho interesse nessas tecnologias, mas elas mudam tão rápido que preciso que alguém me ensine como usá-las. Eu tenho uma assistente que me ajuda. Livros digitais são, definitivamente, uma revolução. Editores falam muito deles e escritores estão assustados. Nós, escritores, não conhecemos muito sobre o assunto. Mas é uma revolução. Os hábitos de leitura vão mudar. No final, isso vai dar mais livros às pessoas de maneira barata. Mas vai haver brigas porque eles mudam os direitos dos autores, dos editores, das editoras. Mas se você olhar, por exemplo, de Marte, você vai ver a evolução. Um dia, você vai apertar um botão e vai ter todos os livros do mundo em um pequeno aparelho. Claro, vai ser barato e bom para as pessoas.
- Quando o senhor está escrevendo um romance, qual é seu método de trabalho?
Eu acordo, às vezes ainda de pijama, sento na minha mesa e tomo meu café e meu chá enquanto leio o que escrevi no dia anterior, como as pessoas leem jornais. Eu só leio jornais depois das duas da tarde, porque quero manter minha mente livre de raiva, porque são sempre más notícias. Gosto de manter minha mente limpa de manhã para escrever. Depois, leio jornais, leio meus emails, e volto a trabalhar depois. Eu gosto do meu trabalho. Tenho tantas coisas para escrever, tantos romances que quero escrever...
- Quando o senhor se dedica a um romance, já tem o enredo pronto em sua cabeça?
Em comparação com outros autores, eu planejo mais meus livros. Eu tenho um cuidado especial com a primeira frase. Isso é importante, mas pensar no final é ainda mais importante. Depois que você tem isso, é uma alegria. Eu sempre tento encontrar o final. Isso me ajuda muito. Ser um escritor é como ser um corredor de maratonas. É preciso ter força. A força de um romancista não é apenas sua criatividade, mas sua persistência e determinação. Há dias bons e dias ruins, você precisa seguir como um trem.
- O senhor está trabalhando em um novo romance?
Sim. É sobre um vendedor de rua que vende iogurte e boza, uma bebida fermentada popular encontrada no Oriente Médio e no norte da África. É uma crônica da imigração da Anatólia para Istambul. Veremos o surgimento de uma nação. Veremos muita pobreza, mas assim como acontece com países como Brasil e China, essa nação vai ficando rica. Em paralelo, veremos a imigração para velhas cidades imperiais, que acabam mudando. Estou escrevendo, nesse sentido, sobre os excluídos de Istambul. É uma crônica das pessoas pobres de Istambul, do século XVII até hoje. Mas não estou escrevendo um livro do John Steinbeck. Estou escrevendo um livro de Orhan Pamuk, então essa crônica de costumes, assim como em Neve e Meu nome é vermelho, vai ser combinada com minha imaginação, com anedotas, com surrealismo, observação antropológica. O título, por enquanto, é Strangeness in my mind (Estranheza em minha mente, em tradução livre). O romance quer ser tanto uma crônica realista da vida de vendedores de rua quanto um panorama da vida em Istambul e da imigração.
- Vai ser um grande livro, então.
Sim, assim espero! E vai tomar tempo.
- Em 2004, antes de ganhar o Nobel, o senhor veio ao Brasil. Poucas pessoas foram à sua palestra. Agora, o senhor volta bastante popular, com os ingressos esgotados. Como o senhor vê essa atitude de acompanhar um escritor mais pelos prêmios que ele ganhou do que pelo que ele escreveu?
Quando vim aqui, Meu nome é vermelho tinha sido publicado, mas não estava vendendo bem. É natural, na verdade. O mesmo aconteceu na Alemanha, nos Estados Unidos, em todos os lugares. É sempre assim. Meus primeiros livros são publicados, ninguém lê, então algo acontece: ou o Nobel, ou algum prêmio nacional, e então as pessoas começam a ler meus livros. Mas em cada lugar as pessoas gostam mais de um romance diferente. Aqui, Neve é bastante popular. Na China, Meu nome é vermelho é o mais popular. Na Alemanha, é Istambul. Na França e na Itália, eles gostam de meu Livro negro. Claro que Neve é o mais popular, por causa do 11/9.
- O senhor já leu algum romancista brasileiro?
Quando fui a Nova York, em 1985, estava acontecendo uma explosão de literatura latino-americana. Não apenas García Marquez e Vargas Llosa, mas vários outros também estavam sendo traduzidos. Eu vinha de um país em que não haviam traduções e fiquei com inveja. Publicaram também Machado de Assis nos Estados Unidos. Ele é muito criativo, vanguardista e pós-moderno. Meu editor inglês também me apresentou a Clarice Lispector. Ele me deu seus livros. Essa foi minha iniciação. Jorge Amado, com seus livros realistas, também é popular na Turquia.
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