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Grandes entrevistas

Oswald de Andrade  

 

Última entrevista concedida ao escritor Marcos Rey, publicada originalmente no primeiro nº do Jornal da Senzala, em fev. de 1968. Extraída do jornal Versus, nº 6, nov. de 1976.

Oswald não sorriu, mas ficou satisfeito. Ergueu-se um pouco na cadeira da qual se levantava com dores e problemas. Talvez quisesse provar-se que ainda lhe restavam energia e agressividade. O que o plano exigia, para pegar, era um Oswald irônico, destruidor e com muito recheio, igual ao dos primeiros retratos. Balançou a cabeça, aprovando. A oportunidade de escrever mais um livro, sem muito esforço, entusiasmava-o. Bastaria respondendo às perguntas. Em sua portátil, eu funcionaria como repórter e secretário. Mas logo a princípio, tornou-se evidente que a longa reportagem não poderia obedecer a um esquema rígido. Nada de ordem cronológica. Oswald não lembrava mais datas e nomes. Às perguntas mais complexas, ficava mudo ou mandava as crianças se calarem. Como andava nervoso e quase sem nenhuma capacidade de concentração! E esperava ansiosamente por telefonemas de seu filho mais velho. Problemas de dinheiro, com toda certeza. Falei do plano com mais detalhes: três entrevistas por semana, no período da manhã. Duas horas no máximo. Se se sentisse indisposto, não precisaria responder nada. Um projeto de livro sob medida para um homem que ia morrer. Dias antes eu fizera uma longa com Oswald, publicada no suplemento literário do jornal O Tempo. Essa e mais outra, que apareceu simultâneamente no jornal Quincas Borba, foram as últimas que concederia. Mas ele queria falar mais. Podia, ainda, mas era necessário que lhe arrancassem as palavras. Sua esposa Maria Antonieta de Alkmim, sempre ao lado, naqueles dias, ajudaria a fazer as perguntas e ainda mais a formular as respostas. Era a sua memória, além de tudo. Muita coisa que Oswald contou ou respondeu, nada tinha de inédito. Já estava em outras entrevistas e também no Um homem sem profissão, sua autobiografia inacabada. Inclusive este, um verdadeiro coquetel Molotov:

Conhece Antoninho de Alcântra Machado? Eu que o inventei. Nós precisávamos de ídolos. Como um movimento artístico ou político pode vingar sem nomes de proa? Saquei um artigo elogioso, exagerado. Até a família de Antoninho estranhou . Um parente dele me procurou espantado: “Mas o garoto é bom mesmo? A gente não sabia disso”. Depois de meu artigo, os outros críticos continuaram a bater palmas e o moço virou gênio.

 

Aquela manhã deixei a rua Caravelas quase com a certeza de que iniciaria um livro que não chegaria ao fim, pois seu único personagem tinha os dias contados. Lamentava ter começado tão tarde. Já cogitara dele ao conhecer Oswald, alguns anos antes, quando pesava vinte quilos a mais e estava sempre na linha da polêmica. Naquela ocasião, eu publicara meu primeiro romance, Um ato no triângulo, pulverizado por um crítico azedo de O Estado de São Paulo, e Oswald ficou furioso. Conversamos algumas horas e fizemos uma grande amizade. A estrela de autor de O rei da vela já se apagava. Caía num esquecimento atroz. A bem da verdade, apenas Helena Silveira levava seu nome às colunas dos jornais. Para a minha geração, era um homem liquidado, modernoso e quase inofensivo. Pouca gente se ria de suas pilhérias, e dizia-se com freqüência que era inclusive inculto. Certamente, a ofensa que mais o irritava.

Nasci para professor. Quero ensinar até o que não sei.

Fazia-lhe pergunta sobre suas preferências literárias, mas ele gostava mais de falar de sua própria vida. Tínhamos diante dos olhos um exemplar de Um homem sem profissão e um rascunho do segundo volume de suas memórias, O salão e as selvas, ainda inédito.

- Não vai continuar O salão e as selvas?

Acho que não terei tempo. Não faz mal, pois sempre fiz auto-biografia. Minha vida está contada nos meus livros, embora misturada com um pouco de ficção.

A conversa tinha sempre a Semana de Arte Moderna como ponto de saída ou de chegada. Para ele, o grande nome havia sido mesmo Mário de Andrade.

Somente Mário fez coisa realmente boa, Machado, Euclides e Mário foram os melhores. Até hoje me arrependo da briga que tivemos. Fui o culpado. Fiz uma piada cruel: “razões morais de andrade”. Mário não me perdoou. E hoje eu também não me perdôo.

Não havia nada de formal nessa confissão. Sentimento puro, grande mágoa e vergonha que chegou a me encabular.

Éramos uns ignorantes – prosseguiu – Apenas Mário de Andrade sabia de alguma coisa. Eu era capaz de discutir, mas ele sabia criar. Enquanto experimentávamos, Mário fazia livros definitivos.

 

- Sim, Mário foi grande, está certo. Mas ele já está descoberto. E você?

 

O que quer dizer?

 

- Acho que não está descoberto

Que besteira é essa?

 

- Sua poesia, por exemplo, é inédita. Isto é, foi lida em 1922, mas posta de lado. Um dia surge um crítico e diz: “Oswald é um grande poeta, um dos maiores da fase modernista”. E então os outros vão concordar.

Isso que você está me dizendo me interessa. No fundo também me acho bom poeta. Está falando a sério? Na acha que ela tem piada demais?

- Bem, é o que penso. Prefiro ler os versos de Oswald de Andrade a ler os da geração de 1945.

Acredite que são poucos que me consideram poeta. Antônio Cândido gosta de meus versos. Os outros nunca leram e não gostam deles. Vingam-se de mim, com minhas próprias piadas.

- O que me diz dos novos, dos novos poetas?

São uns chatões. Parnasianos às avessas. Estão enterrando a Revolução Modernista. Apegam-se à forma como a turma do Bilac. Você é capaz de lembrar algum verso deles? É?

- Não.

Então.

 

- E sobre os romancistas? 

Nesse ponto, Oswald fez umas críticas virulentas contra um escritor que ele chamava de “burro blanco”. Mas confessou que sua admiração por José Lins do Rêgo, que julgava o maior. Fazia restrições a Jorge Amado, embora o apreciasse, e negava quase totalmente o valor de Graciliano Ramos.

Graciliano é muito limitado. A crítica confunde pobreza com poder de síntese.

- Mas, e o Vidas secas?  

Nosso “tabaco road”. Ele leu Caldwell.

Era um meio de mostrar-se vivo, de sentir a vida: atacar. Mas, evidentemente, havia sempre antipatias pessoais misturadas às sua críticas. Sua aversão à poesia de Cecília Meireles era prova disso. Num artigo já dissera: “Não vou nem com a cara nem com a poesia dessa senhora”. Porém se fosse mais coerente e equilibrado não seria o Oswald de Andrade que foi e revive hoje.

Vou lhe dar um presente. Só tenho dois exemplares, mas um será seu. Leia e diga-me depois o que pensa.

Era A morta e O rei da vela, numa edição José Olympio de 1937. Li e reli as duas peças, inclinando-me logo para O rei da vela. Lá estava Oswald quase de corpo inteiro, num de seus momentos de maior autenticidade e lucidez. Ele era mesmo um intelectual de pequenos trabalhos (não de pequeno fôlego). Saía-se melhor na poesia, no teatro, nos artigos e na prosa miúda das memórias. Não tinha a fibra nem a paciência para a ficção de longo curso. Na próxima entrevista passei a manhã na sua casa e almoçamos juntos. Maria Antonieta de Alkmin insistia para que se alimentasse bem, mas ele engolia a comida com má vontade. Só depois do almoço, com uma espécie de timidez, indagou:

O que achou do meu teatro?    

- O rei da vela é uma de suas melhores coisas.

Mas não é para ser representado, não?

- Não conheço teatro, mas creio que é perfeitamente representável. Nem entendo como ainda não foi encenada nesses 23 anos.

Não foi e não será nunca. Nossos homens de teatro são muito primários. Dizem-se intelectuais, mas na verdade gostam mesmo é de espetáculo. Só aceitam o que é bom quando a peça traz o atestado de sucesso de outros países. Todos eles têm o meu O rei da vela nas estantes, mas não o leram, e se o leram não entenderam e se entenderam não gostaram. Para todos, é mais uma brincadeira do Oswald. Só compreendem o social, o político, quando o cenário é um cortiço. Ainda não encontrei um deles que se entusiasmasse com a encenação de minhas peças 

 

Oswald andava amargurado. Condenava-se por deixar uma obra de proporções reduzidas, mas sentia-se recompensado por ter sido o relações públicas da Revolução Modernista. Certa manhã, Oswald sentiu-se enclausurado. Queria sair, apesar do seu mau estado. Fomos passear em seu Fiat, dirigido por Maria Antonieta. Com que interesse e avidez olhava pela janela do carro! Quase não falou a viagem toda. Queria ver apenas. Pude observá-lo e mais uma vez tive a certeza de que sua morte estava próxima. Na volta, largou-se numa poltrona e continuou por um largo espaço no mais completo silêncio. Seus filhos menores brincavam ao seu redor, e às vezes ele os olhava como se fossem estranhos. Custou a retomar contato com minha presença.

- Volto outro dia, disse-lhe.

Não, vamos continuar – pediu. E repetiu fatos e opiniões que eu ouvira no mesmo dia. Tudo já se baralhava em sua mente e as dores pelo corpo aumentavam – Fui muito extravagante – confessou – e estou pagando agora.

- Amanhã estará melhor.

Estou no fim.

 

Não morreria ainda. Rudá Abramo, se não me engano, levou-o a um programa de televisão onde Oswald foi entrevistado envolto numa pesada manta. Esta entrevista lhe fez um bem imenso. Ainda se lembrava dele, No dia seguinte encontrei-o mais animado e disposto a falar. Havia uma luz nova nos seus olhos e o sinal de sua melhora estava nas críticas que tornou a fazer.   

Erra quem diz que o Brasil já possui uma grande literatura. Temos, quando muito, valores isolados. José Lins do Rego, Jorge Amado e poucos outros. Alguns tinham sido, mas não foram. Rachel de Queiroz apagou-se inteiramente, Armando Fontes não fez mais nada, e os outros felizmente não escreveram mais.

 

- Mas há Cornélio Pena.

Você lembrou bem. É outro que só será redescoberto daqui a algumas décadas. Guarde o que estou dizendo. Mário de Andrade foi dos poucos que tomaram conhecimento dele, apesar dos reparos que lhe fez. 

Perguntei-lhe sobre Guimarães Rosa, que começava a ser falado. A resposta foi demorada. Tive que repetir a pergunta.

O problema não é enriquecer o idioma, é enriquecer o Brasil. Não é mais tempo para ficarmos brincando com a sintaxe, inventando palavras, dormindo no estilo. Isso é beletrismo, é trabalho para diletante. Em suma, não me apaixona mais. Depois, a de Guimarães não é a língua brasileira, é uma invenção sua. Talentosa sim, mas sem raízes, e  que redunda numa lamentável perda de tempo.

- Que conselho daria a um poeta e a um escritor jovem?

Ao poeta diria que não fizesse mais poesia. Essa poesia tipo ação entre amigos não interessa mais. Mesmo a nossa poesia participante não participa mais. É hermética, pretensiosa, incomunicável. O povo poeta teria de falar a linguagem da revolução e esquecer definitivamente as escolas, panelas e modismos artísticos. Alguém como Vinicius, se Vinicius fosse capaz de sentir a grande miséria nacional.

E Drummond?

É grande, imenso, mas apenas para as elites. Não se pode esperar mais nada dele.

Mas, a mensagem ao escritor.

Gostaria de crer na nova geração, mas não acredito. Todos resolveram fazer da literatura um divã de psicanalista. Voltaram-se para dentro, e infelizmente o único que se exterioriza é o “burro blanco”. A minha geração tinha ao menos o que combater, o que destruir. Esta encontrou o terreno aplainado e não consegue construir nada. Todos bem comportadinhos, uns garotões precoces, querendo ganhar prêmios. É difícil dizer entre eles o que escreve mais corretinho. Mas vá remexer no fundo, vá procurar idéias, vá auscultar as inquietações. O críticos, por sua vez, limitaram-se às observações estilísticas. E julgam também que a literatura nada tem a ver com o país onde é produzida. Como todo povo subdesenvolvido, temos a mania de ser requintados. Ninguém se conforma em não ter nascido em Paris. Provavelmente teremos também literatura requintada, mas estranha a nós, inexpressiva, fria, reacionária. Mensagem aos jovens? Besteira! Não lerão minha mensagem. É muito mais cômodo romancear os complexos e fazer estilo. Isso dá prêmio, dá crítica e até emprego público.    

Na entrevista seguinte, voltou à recordações. Sempre Mário de Andrade, mas o homem que o artista. Devia ter procurado Mário na hora da morte. Arrependia-se. Mas não só disso como de outras coisas. De não ter concluído o Marco zero, por exemplo. Mas não se arrependia de ter vivido. Na penúltima entrevista, falou muito das mulheres que tivera. Amara a todas igualmente, e com a mesma volubilidade. Capítulos preciosos de sua vida. Com cada uma delas aprendera alguma coisa. A fascinante família Oswald de Andrade. Na última entrevista, fui encontrá-lo totalmente arrasado. Quis retirar-me imediatamente. Mas Oswald reconheceu-me e fez sinal para que ficasse. Fiquei, porém sem fazer perguntas. Algumas visitas entravam e saiam. Velhos conhecidos iam ver o doente. Escritores, poucos. A certa altura, num intervalo das visitas Oswald perguntou-me como se chamaria o livro.

- Que livro?

O livro de nossas entrevistas.

- Mas está ainda no começo.

Sim, está no começo.

Oswald tentou sorrir.

Mais um livro meu que não chega ao fim.

Voltou a ficar em silêncio. Maria Antonieta Alkmin pediu às crianças que não fizessem barulho. Deram-lhe um remédio que tomou com má vontade.

"Um antropófago de cadillac".

Ele lançara a antropofagia após os dias agitados da semana, no vale-tudo para impor idéias novas. Naquela época, tinha um cadillac verde. Gordo, lustroso e cheirando loções, vivera rodeado de amigos e inimigos. Dele sempre se esperava o máximo. Sua personalidade extravagante e única preenchera toda uma época de nossas artes. Fora o autêntico “Papa do Modernismo”. O rotundo espadachim de 1922. As últimas palavras que me dirigiu naquela manhã demonstravam a certeza de sua perenidade. Não acreditava que pudesse ser lembrado alguns anos mais tarde. E tinha a franqueza e a sinceridade de confessá-lo.

Tudo que eu fiz será esquecido logo. A não ser em alguém se lembre de falar em mim de vez em quando.

- Seus livros serão mais lidos amanhã do que quando foram publicados, profetizei para confortá-lo.

Você é camarada.

- Os novos o seguirão.

Onde estão eles?

Não disse mais nada, ofegante.

- Voltarei depois de amanhã, disse. Oswald sabia e eu também que aquela era a última entrevista. No dia seguinte, à noite, eu voltava à casa de Oswald para vê-lo morto. Lembro-me de Antonio Cândido, Edgard Cavalheiro, Antonio Olavo, Mario Donato, que já estavam presentes. Maria Antonieta Alkmin, inconsolável, falava nervosamente. Outros amigos foram chegando. O corpo foi levado para a Biblioteca Pública Municipal, naquela noite. Tarsila do Amaral aproximou-se lentamente do caixão. Ficou a olhar o cadáver com olhar sereno, amigo e prolongado. Um mudo e profundo adeus.

No dia seguinte, uma enorme fila de automóveis acompanhou-o ao cemitério. Por notável coincidência, o túmulo, ao lado do seu, todo preto, é de um tal Serafim Del Ponte Grande. Isso chamou a atenção de todos. Menotti Del Picchia falou no último momento, comovido e comovendo.

Meses mais tarde, a União Brasileira de Escritores publicava o primeiro número de uma revista toda dedicada a Amadeu Amaral. O segundo número seria sobre Oswald de Andrade. Reuni minhas entrevistas para inserir na revista. Mas foi outra iniciativa da União que morreu no nascedouro. O que fizemos foi um caderno quase completo sobre Oswald de Andrade, no Suplemento Literário de O Tempo, assinado por diversos colaboradores. Parte das entrevistas entreguei a Mario da Silva Brito, que escreve a História do Modernismo, e que talvez encontre nessas confissões alguma informação útil. Esta não havia sido publicada até hoje. Publico-a aqui, dosada com alguma recordação.    


 

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