"Indiscutivelmente os temas sociais ganharam grande importância de uns anos para cá, importância que no futuro talvez ainda mais se acentue, pois estamos atravessando uma das maiores crises políticas por que já passou a humanidade, e nas épocas de crise é natural que isso aconteça, mas não há dúvida que o ideal seria voltarmos ao herói. Ao herói do tipo de D. Quixote, de Gil Blas ou do stendhaliano Julien SareI de Le rouge et le noir. Porque, de modo genérico, toda a grande literatura do passado foi feita em torno dele. Bem sei que se constara hoje uma decadência do "heroísmo", mas meu desejo é que voltemos a ele, pois só assim poderemos construir outras tantas obras primas como as que acima citei. O social conduz à monografia, e há sempre o perigo de que acabe no relatório e na estatística. Está claro que certas questões existem e precisam ser solucionadas. Mas pelos governos, não pelos romancistas ... Aliás não acredito na arte moral, pois sei que os livros de boas intenções quase sempre são mal escritos. Romance social foi o que fez, por exemplo, Zola, que nos "Rougon-Macquart" pretendeu traçar todo o quadro dos costumes do seu tempo, Entretanto, não se observa, na atualidade, um relativo esquecimento de Zola, de Zola que deveria ser o mestre dessa espécie de literatura, agora tão em moda? Contra esse esquecimento Gide chegou a lançar o seu protesto. Enquanto isso Stendhal e Voltaire, La chartreuse de parme e Candide, continuam a ser muito lidos. E note que me sinto inteiramente à vontade para falar assim, pois descendo de campônios e nunca tive veleidades de aristocrata. Se hoje pago imposto sobre a renda. isso não me fez, em absoluto, esquecer as misérias e os sofrimentos das classes menos favorecidas, que passei a amar ainda mais depois que li Castro Alves, poeta dos escravos, dos oprimidos, e Lima Barreto. romancista, cujos episódios circulam tantas personagens saídas das camadas mais simples do povo - o carteiro, o mascate, o tocador de violão. Morando aqui no Méier, também gosto de conversar com os desempregados ou aposentados do nosso jardim público, e isso é como folhear os tipos que se movimentam em tantas das melhores páginas do criador de Policarpo Quaresma. Às vezes fico a saboreá-los longo tempo, e desinteressadamente, pois não pretendo aproveitar os meus conhecidos em nenhum romance, como por certo faria o Sr. José Lins do Rego".
Fonte: SENNA, Homero. República das letras. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1996.
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