Volta para a capa
Como escreve?
Fernando Namora

Se se entende por método uma certa regularidade no labor literário, poderei responder pela afirmativa, sem excluir, porém, aqueles sobressaltos febris que balizam as fases mais propícias à criação, nas quais convergem estimuladoramente alguns dos factores que nela interferem, e sem excluir, do mesmo modo, os períodos em que a escrita satura e tudo nos convida a desertar das palavras (Tostoi parava de escrever quando rompia a primavera). Quero eu dizer, por experiência própria, que a tarefa intelectual, como qualquer outra, também se disciplina, e talvez com proveito; isto é, um escritor, pelo hábito, pela perseverança, por uma vigilante auto-crítica pode adestrar os seus instrumentos de expressão desde que lhes dê uso, embora nunca um uso facilitador. Aliás, no meu caso, nada me deve ser ou parecer fácil e nada, também, me dever ser ou parecer desalentadoramente penoso. Sempre que me observo (de todas a veses sem clemência), acho-me um misto de força e vulnerabilidade. No doseamento de ambas estará este árduo equilíbrio de que tenho sido feito. Seja porém como for, a criação tem de partir de um desafio, desafio que pareça excerder-nos, mas igualmente na confiança na capacidade de lhe dar resposta... Não conseguiria impor-me um horário. Sou, em simultaneidade, uma pessoa ordenada e uma pessoa que nunca aceitou esquemas rígidos. O que tem acontecido, por vezes, é obrigar-me no cumprimento de uma tarefa num determinado prazo, para que não se desperdice a intensidade das lembranças e a atmosfera interior em que essa tarefa se baseará... Podemos falar em 'ritual', já que avida, quer nos gestos cotidianos banais, quer nos gestos incomuns, é uma sucessão de actos formalizados mesmo que não dêmos por isso - as tais 'próteses' que nos põem em relação e nos defendem do obscuro sentimento de desamparo. Portanto, é de supor que também o meu trabalho se influencie por um certo cerimonial ainda que eu não saiba dizer exactamente em que consiste. Esses ritos, porém, não são fixos: evoluem com as épocas da vida, com a maior ou menor adaptabilidade às circunstâncias. A idade vai, progressivamente, selecionando e exigindo. Começamos por dispensar um ambiente 'cumplice', terminamos por achá-lo imprescindível. E isto tanto pelo que respeita a ninharias (a escolha da caneta, da tinta, do papel) como no enquadramento físico e humano (uma certa paisagem, o Verão, ou o Inverno, as pessoas que nos rodeiam etc.)

Fonte: Encontros com Fernando Namora. Porto; Ed. Nova Crítica, 1979.

Prossiga na entrevista:

Por que escreve?
Onde escreve?

O que é inspiração

Influência literária

Psicanálise

Medicina

Crítica literária

Biografia