Se se entende por método uma certa regularidade no labor literário, poderei responder pela afirmativa, sem excluir, porém, aqueles sobressaltos febris que balizam as fases mais propícias à criação, nas quais convergem estimuladoramente alguns dos factores que nela interferem, e sem excluir, do mesmo modo, os períodos em que a escrita satura e tudo nos convida a desertar das palavras (Tostoi parava de escrever quando rompia a primavera). Quero eu dizer, por experiência própria, que a tarefa intelectual, como qualquer outra, também se disciplina, e talvez com proveito; isto é, um escritor, pelo hábito, pela perseverança, por uma vigilante auto-crítica pode adestrar os seus instrumentos de expressão desde que lhes dê uso, embora nunca um uso facilitador. Aliás, no meu caso, nada me deve ser ou parecer fácil e nada, também, me dever ser ou parecer desalentadoramente penoso. Sempre que me observo (de todas a veses sem clemência), acho-me um misto de força e vulnerabilidade. No doseamento de ambas estará este árduo equilíbrio de que tenho sido feito. Seja porém como for, a criação tem de partir de um desafio, desafio que pareça excerder-nos, mas igualmente na confiança na capacidade de lhe dar resposta... Não conseguiria impor-me um horário. Sou, em simultaneidade, uma pessoa ordenada e uma pessoa que nunca aceitou esquemas rígidos. O que tem acontecido, por vezes, é obrigar-me no cumprimento de uma tarefa num determinado prazo, para que não se desperdice a intensidade das lembranças e a atmosfera interior em que essa tarefa se baseará... Podemos falar em 'ritual', já que avida, quer nos gestos cotidianos banais, quer nos gestos incomuns, é uma sucessão de actos formalizados mesmo que não dêmos por isso - as tais 'próteses' que nos põem em relação e nos defendem do obscuro sentimento de desamparo. Portanto, é de supor que também o meu trabalho se influencie por um certo cerimonial ainda que eu não saiba dizer exactamente em que consiste. Esses ritos, porém, não são fixos: evoluem com as épocas da vida, com a maior ou menor adaptabilidade às circunstâncias. A idade vai, progressivamente, selecionando e exigindo. Começamos por dispensar um ambiente 'cumplice', terminamos por achá-lo imprescindível. E isto tanto pelo que respeita a ninharias (a escolha da caneta, da tinta, do papel) como no enquadramento físico e humano (uma certa paisagem, o Verão, ou o Inverno, as pessoas que nos rodeiam etc.)
Fonte: Encontros com Fernando Namora. Porto; Ed. Nova Crítica, 1979.
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