Volta para a capa
Grandes Entrevistas

 

Última entrevista de

Clarice Lispector

Entrevistada por Julio Lerner

para a TV Cultura, em janeiro de 1977 e publicada na revista  Shalom, nº 296, v.2, 1992.

Introdução:

De minha sala na redação de "Panorama" até o saguão dos estúdios tenho que percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar naquela curta caminhada... Talvez falar sobre A paixão segundo G.H... Ou quem sabe sobre A maçã no escuro e Perto do coração selvagem... Vou recordando o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um estúdio para entrevistá-la. São quatro de quinze da tarde e disponho de apenas meia hora... às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes terei de desocupar o Estúdio B... Estou correndo e antes mesmo de vê-la a pressão do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista... Eu odeio a TV brasileira!... Só meia hora para ouvir Clarice... O pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou para conseguir essa brecha... Olho o relógio, não cosigo me organizar, estou correndo, olho novamente o relógio. Estou desconcertado, atinjo o saguão dos estúdios e a vejo ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma amiga, perdida no meio do vai-vem dos cenários desmontados, de diversos equpamentos e de técnicos que falam alto, no meio de um grande alvoroço.

Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a um semelhante... Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli (ela não sabe que eu sei, sua melhor amiga), entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segua apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados. Clarice me olha, o setor técnico envia pelos alto-falantes o sinal agudo de mil ciclos. o olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, chega Miriam, a estagiária do programa e fica encolhida e calada., o calor rstá ficando insuportável e o ar-condicionado não está ajustado, são apenas quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do terceiro mundo que me possibilita estar agora frente a frente com ela, Clarice me olha melindrosa, assustada e seu olhar me pede para que a tranquilize...

"OK, Juliooooo... tudo pronto", a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda equipe para sair, cabo-man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço, Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás, peço silêncio total e depois de uns dez segundos ecoa um "gravandoooo"...

Silêncio. Olga e Mirian na parte escura de um dos lados, Moacir escondido atrás da câmera, eu me posiciono ao lado da câmera para não aparecer, a fim de que o público não descubra minha impiedosa cara-de-pau e... Clarice. Solitária, no centro do estúdio...Não conversamos antes e disponho apenasde 23 minutos... Estou completamente desconcertado, fico um minuto em silêncio fitando Clarice. Estou oco, vazio, não sei o que dizer... Clarice me olha curiosa mas vigilante, defendida... Sou o senhor do castelo e - prepotente - guardo comigo a chave desta prisão... Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade.

Não sabes, Clarice... Te conheci agora porém te conheço há muito tempo... Te amo, te respeito e no entanto agora começo a te invadir. A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos tiranos. Começa a entrevista. (pequena biografia) A entrevista avança. Seus olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Quero mergulhar, por vezes consigo... Clarice está nua, não perdão, Clarice agora está encapotada, ela se deixa agarrar mas logo escapa, e volta, e me pega, e me sugere o longe o não-dizível, depois se cala... E quando nada mais espero, ela volta a falar... Faço uma antientrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.

Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: "Chega!"  Clarice pressente que por trás de meu sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico autodenominado "repórter" e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime receios, ela me afasta mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e partir.

Entrevista

- Clarice Lispector, de onde veio esse Lispector?

É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando ua outra coisa que parece uma coisa... "Lis" e "peito", em latim. É um nome que quando escrevi meu primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) diz asssim: "Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo..." Não era, era meu nome mesmo.

- Você chegou a conhecer o Sergio Milliet pessoalmente?

Nunca. Porque eu publiquei o meu livro e fui embora do Brasil para viajar, porque eu me casei com um diplomata brasileiro, de modo que não conheci as pessoas que escreveram sobre mim.

- Clarice, seu pai fazia o que profissionalmente?

Representações de firmas, coisas assim. Qaundo ele, na verdade dava era para coisas do espírito.

- Há alguém na família Lispector que chegou a escrever alguma coisa?

Eu soube ultimamente, para minha enorme surpresa, que minha mãe escrevia. Não publicava, mas escrevia. Eu tenho uma irmã, Elisa Lispector, que escreve romances. E tenho outra irmã, chamada Tânia Kaufman, que escreve livros técnicos.

- Você chegou a ler as coisas que sua mãe escreveu?

Não, eu soube há poucos meses.

- Mas não teve condições de ...

Não. Soube através de uma tia: "Sabe que sua mãe fazia um diário e escrevia poesias?" Eu fiquei boba...

- Nas raras entrevistas que você tem concedido surge, quase que necessariamente, a pergunta de como você começou, quando?

Antes de sete anos eu já fabulava, já inventava histórias, por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca. É muito complicado para explicar essa história. Quando comecei a ler comecei a escrever também. Pequenas histórias.

- Quando a jovem, praticamente adolescente Clarice Lispector, descobre que realmente é a literatura aquele campo de criação humana que mas a atrai, a jovem Clarice tem algum objetivo específico ou apenas escrever, sem determinar um tipo de público?

Apenas escrever.

- Você poderia nos dar uma idéia do que era a produção da adolescente Clarice Lispector?

Caótica. Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida.

- Desse período você se lembra do nome de alguma produção?

Bem, escrevi várias coisas antes de publicar meu primeiro livro. Eu escrevia para revistas - contos, jornais. Eu ia com uma timidez enorme, mas uma timidez ousada. Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Chegava lá nas revistas e dizia: "Eu tenho um conto, você não quer publicar?" Aí me lembro que uma vez foi o Raimundo Magalhães Jr. que olhou, elu um pedaço, olhou para mim e disse: "Você copiou isso de quem?" Eu disse: "De ninguém, é meu". Ele disse: Você traduziu? Eu disse: "Não". Ele disse: "Então eu vou publicar". Era sim, era meu trabalho.

- Você publicava onde?

Ah, não me lembro... Jornais, revistas.

- Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decide assumir a carreira de escritora?

Eu nunca assumi. Eu nunca assumi.

- Por quê?

Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo, consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional... para manter minha liberdade.

- A sua produção ocorre com frequência ou você tem períodos?...

Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável.

- E esses hiatos são longos?

Depende. Podem ser longos e eu vegeto nesse período ou então, para me salvar, me lanço logo noutra coisa como, por exemplo, eu acabei a novela, estou meio oca, então estou fazendo histórias para crianças.

- Como você esplica a Clarice Lispector voltada para a literatura infantil?

Começou com meu filho quando ele tinha seis anos de idade, seis ou cinco anos, me ordenando que escrevesse uma história para ele. E eu escrevi. Depois guardei e nunca mais liguei. Até que me pediram um livro infantil. Eu disse que não tinha. Eu tinha inteiramente esquecido daquilo. Era tão pouco literatura para mim, eu não queria usar isso para publicar. Era para o meu filho. Aí lembre: "Bom, tenho, sim". Então foi publicado. Foram pubicados três livros de literatura infantil e estou fazendo o quarto agora.

- É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?

Quando me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com o adulto ne verdade estou me comuicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil, não é?

- O adulto é sempre solitário?

O adulto é triste e solitário.

- E a criança?

A criança tem a fantasia solta...

- A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário?

Ah, isso é segredo... Desculpe, não vou responder... A qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado e isso acontece... Mas eu não soi solitária, não. Tenho muitos amigos. E só estou triste hoje porque estou cansada... No geral sou alegre.

- Normalmente o contato do jovem estudante com você revela que tipo de preocupação?

Revela coisas surpreendentes, que eles estão na minha...

- O que siginifica "estar na sua"?

É que eu penso às vezes que eu estou isolada e quando eu vejo estou tendo universitários, gente muito jovem, que está completamente ao meu lado e é gratificante, não é?

- Nós ouvimos com frequência que as novas gerações pouco lêem no Brasil, você confirma isso?

Bem, os universitários são obrigados a ler porque impôem a eles a obra. Agora não estou a par dos outros.

- De seus trabalhos qual aquele que você acredita que mais atinja o público jovem?

Depende, depende inteiramente. Por exemplo, o meu livro A paixão segundo G.H, um professor de português do Pedro II veio lá em casa e disse que leu quatro vezes o livro e não sabe do que se trata. No dia seguinte uma jovem de dezessete anos, universitária, disse que este é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá para entender.

- E isso acontece em relação a outros seus trabalhos?

Também em relação ao outros trabalhos, ou toca ou não toca... Suponho que não entender não é um questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Tanto que o professor de português e literatura, que deveria ser o mais apto a me entender, não me entendia... E a moça de dezessete anos lie e relia o livro, não é? O que é um alívio...

- Você acredita que esta dificuldade é própria para apenas algumas camadas de nosso tempo e com novas gerações ela será entendida de imediato, ou continuará...

Não tenho a menor idéia... Eu sei que antes ninguém me entendia e agora me entendem

- A que você atribui isso?

Acho que tudo mudou. porque eu não mudei não, não... Eu não... Que saiba eu não fiz concessões...

- Mas o que teria mudado nas pessoas que as levassem a compreender seu trabalho? Antes de nos encontrarmos aqui no estúdio você me dizia que está começando um novo trabalho agora, uma novela...

Não, eu acabei a novela.

- Que novela é essa, Clarice?

É a história de uma moça que só comia cachorro-quente. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima...

- O cenário dessa novela é...

É o Rio de Janeiro... Mas o personagem é nordestino, é de Alagoas...

- Onde você foi buscar dentro de si mesma...

Eu morei no Recife, eu morei no nordeste, me criei no nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira de nordestinos no Campo de São Cristovão e uma vez eu fui lá... E peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a idéia de um... Depois eu fui a uma cartomante e imaginei... Ela disse várias coisas boas que iam acontecer e imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me pegasse, me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas aquelas coisas boas. Então daí foi nascendo também a trama da história.

- Qual o nome da heroina da novela?

Não quero dizer. É segredo...

- E o nome da novela, você poderia revelar?

Treze nomes, treze títulos...

- Você entra em contato, eu acredito que com frequência, com os jovens estudantes universitários?

De vez em quando me procuram, mas eles têm muito, assim, medo de me atrapalhar. Eles têm muito medo de que eu não os receba...

- Qual a razão?

Eu não sei, não sei por quê

- Mas aqueles que conseguem romper a timidez.

Aí ficam perfeitamente à vontade comigo e tomam café comigo e entram na minha casa e eu os recebo como amigos...

- Rilke, em seu Cartas a um jovem poeta, respondendo a uma das missivas, perguntava ao jovem que pretendia se tornar escritor "Se você não pudesse mais escrever, você morreria? A mesma pergunta eu transfiro a você.

Eu acho que quando não escrevo estou morta.

Esse periodo?

É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo é necessário para haver uma espécie de esvaziamento para poder nascer alguma outra coisa, se nascer. É tudo tão incerto...

- Clarice, mas como é que você escreve seus trabalhos? Existe algum horário específico?

Em geral de manhã cedo. As minhas horas preferidas são as da manhã.

- Você acorda a que horas?

Quatro e meia, cinco horas eu acordo... Fico fumando, tomando café sozinha sem nenhuma interferência... Quando estou escrevendo alguma coisa eu anoto a qualquer hora do dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é? Agora quando estou no ato de concatenar as inspirações, aí sou obrigada a trabalhar diariamente.

- Você se considera uma escritora popular?

Não.

- Por qual razão?

Me chamam até de hermética... Como é que eu posso ser popular sendo "hermética"?

- E como você vê esta observação que nós colocamos entre aspas: "hermética"?

Eu me compreendo. De modo que não sou hermética para mim. Bom, tem um conto meu que não compreendo muito bem...

- Que conto?

"O ovo e a galinha".

- Entre seus diversos trabalhos sempre existe, isso é natural, um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje?

"O ovo e a galinha", que é um mistério para mim. Uma coisa que eu escevi sobre um bandido, sobre um criminoso chamado Mineirinho que morreu com trez balas quando uma só bastava. E que era devoto de São Jorge e que tinha uma namorada. Que me deu uma revolta enorme, escrevi.

- Sobre esse seu trabalho em torno de Mineirinho, qual o enfoque você deu?

Eu não me lembro muito bem, já faz bastante tempo. Há qualquer coisa assim como "o primeiro tiro me espanta, o segundo tiro não sei o que, o terceiro tiro coisa, o décimo terceiro sou eu..." Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência.

- Em que medida o trabalho de Clarice Lispector no caso específico de Mineirinho pode alterar a ordem das coisas?

Não altera em nada... Não altera em nada... Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera nada.

- Então por que continuar escrevendo, Clarice?

E eu sei? Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um mdodo ou de outro, não é?

- No seu entender, qual é o papel do escritor brasileiro hoje em dia?

De falar o menos possível

- Você tem mantido contato como outros escritores brasileiros ?

Eventualmente.

- E mesmo, acredito, latino-americanos...

Latino-americanos...

- Quais aqueles que você acredita serem os mais siginificativos desse tempo atual?

Eu prefiro não citar nomes porque eu vou esquecer alguns e vai ofender, vai ferir. Assim, eu não cito ninguém.

- Mas aquele que a toque mais de perto, que lhe diga mais...

Eu prefiro não falar nada... Eu realemnte não sei, é uma pergunta que eu faço a você porque eu não sei responder...

- Você discute muito com a Clarice Lispector escritora?

Não. Eu me deixo ser...

- E convivem em paz?

Ás vezes não em paz, mas...

- Normalmente, que tipo de problema Clarice Lispector escritora traz a você?

Às vezes o fato de me considerar escritora me isola...

- Por qual razão?

Me põe um rótulo.

E você acredita que as pessoas olham para você através desse rótulo?

Às vezes através desse rótulo. Tudo o que eu digo, a maior bobagem, então é considerada como uma coisa linda ou uma coisa boba, tudo na base de ser escritora. É por isso que não ligo muito para essa coisa de ser escritora e dar entrevistas e tudo. É porque eu não sou isso...

- Se essa é a tendência do público, qual você acredita que deva ser o perfil médio de seu leitor?

Sabe que eu não sei...

- Você não tem idéia?

Não.

- Você acredita que um pessoa vá a uma livraria comprar especificamente um livro de Clarice Lispector?

Parece que isso acontece... Eu sei porque às vezes me telefonam e me perguntam em que livraria encontram meu livro. Então eu sei que tem pessoas que vão procurar exatamente o me livro. É que no fundo eu escrevo muito simples, sabe?

- Será que as coisas simples hoje são recebidas de maneira complicada?

Talvez, talvez... Mas eu escrevo simples... Eu não enfeito...

- Na sua formação como escritora quais aqueles escritores que você sente que realmente influenciaram, que marcaram?

Eu não sei realmente porque misturei tudo. Eu lia livro, romance para mocinhas, livro cor-de-rosa, misturado com Dostoievski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores que eu não tinha conhecimento nenhum. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse e foi um choque, O lobo na estepe, ou da estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora.

- Isso acontece ainda agora de você produzir alguma coisa e rasgar?

Eu deixo de lado... Não, eu rasgo sim.

- É produto de reflexão ou de uma emoção?

Raiva, um pouco de raiva...

- Com quem?

Comigo mesma...

- Por que, Clarice?

Sei lá, estou meio cansada...

- Do quê?

De mim mesma...

- Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?

Bom, agora eu morrí... Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta... Estou falando do meu túmulo.

__________

Primeira entrevista de

Clarice Lispector

Publicado em 01/03/2012 por Jessica Soares

A descoberta se deu há mais de 10 anos, quase que por acaso. O jornalista Vilmar Ledesma passeava pelo acervo da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, procurando de tudo um pouco. Em meio às andanças, chegou ao Diretrizes, jornal de Samuel Wainer fundado em 1938. Folheando aquelas páginas desacostumadas ao manuseio, encontrou, em exemplar de 1941, a matéria “Os Estudantes Brasileiros e a Literatura Universal”. O texto trazia como entrevistada ilustre uma jovem Clarice Lispector, que ainda estudava direito no Rio. Copiou a mão todo o texto – não era permitido fazer reproduções – e depois confirmou: se tratava da primeira entrevista da escritora nascida na Ucrânia, até então desconhecida.

A primeira entrevista de Clarice no caderno de Vilmar Ledesma

A entrevista foi posteriormente publicada no livro Encontros – Clarice Lispector, da editora Azougue, com organização de Evelyn Rocha. Como o Pra Ler garimpa por aí as últimas entrevistas de autores, e não poderia deixar de divulgar também o achado de Ledesma. Clique em Continuar a ler para conferir a entrevista conforme as anotações feitas pelo jornalista em 2002. E não deixe de passar no blog dele.

“Os estudantes brasileiros e a literatura universal

Diretrizes – 30 de outubro de 1941

(Série de reportagens com universitários, no final de outubro de 1941, opinando sobre a literatura. A ilustração é de uma garota bonita, com bolsa embaixo do braço, cercada por cinco rapazes e a legenda: “futuros advogados falam sobre literatura”. Lá no final da primeira matéria, vem o seguinte trecho:)

Na faculdade de direito subimos ao primeiro pavimento do edifício da rua Moncorvo Filho. Descemos novamente e vemos chegar uma jovem a quem abordamos. Chama-se Clarice Lispector e tem traços da raça eslava. É terceiro anista, e acede prontamente em responder às perguntas do repórter.

Leio de preferência livros, diz Clarice. Quanto à literatura nacional, em minha opinião, temos ótimos escritores, capazes de rivalizar com qualquer outro de qualquer literatura. Sobre a moderna literatura nacional, conheço alguma coisa; mais talvez do que a antiga.

- Pode destacar algum vulto?

Vários, como Graciliano Ramos, que me parece o maior, Raquel de Queiroz, Frederico Schmidt, etc.

- Na literatura moderna nacional existe algum escritor que em sua opinião possa se nivelar a Machado de Assis ou Euclydes da Cunha?

Não se pode tomar para comparação um Machado de Assis, tão pessoal na sua obra. Mas em intensidade literária, dentro do seu próprio gênero, há escritores atuais que podem até superá-lo. Aliás, em minha opinoão, seria mais fácil superá-lo do que igualá-lo. Machado tinha muita personalidade. Como romancista, ele não é seguro, não obedece a normas; por isso me parece fácil superá-lo, mais que igualá-lo. Euclides da Cunha não me agrada….

- Qual o livro nacional ou estrangeiro que lhe tenha deixado maior impressão?

Esta é uma pergunta difícil… porque eu sempre passo épocas em que tal ou qual livro me impressiona. Depois o esqueço e outro toma o seu lugar. Às vezes o que me agrada num livro é o ‘tom’, o plano em que o autor se move. E se em outro livro o autor muda o ‘tom’, eu perco o interesse. É um estado d’alma.

- Acha que a Guerra possa influir sobre a literatura?

Pode. Talvez um certo ceticismo se apodere da literatura do após-guerra. Também os motivos humanos ocuparão seu lugar. Mas ao certo não se pode prever.

- Qual a sua opinião sobre a ‘coleção das moças’?

Corresponde a uma necessidade da idade. Há uma fase na vida da moça em que tal literatura é indispensável. Mas apesar de eu já ter sofrido essa necessidade, hoje tenho pena das moças que lêem exclusivamente esta literatura.

- E sobre a literatura infantil?

Monteiro Lobato é sozinho uma literatura neste gênero. Suas obras compõem o que há de melhor a este respeito no Brasil. Além disso, temos Marques Rebello. Ainda não se pode, todavia, confiar em uma literatura infantil no Brasil.

- E sobre a poesia?

Eu nunca procurei a poesia. Gostei sempre mais da prosa. Admiro particularmente Augusto Frederico Schmidt.

- Qual o maior poeta nacional em sua opinião?

Eu diria Castro Alves porque sei que é o melhor. Mas não tenho apreciação pelos condoreiros. Se a pergunta se refere aos que gosto, posso falar de Augusto Frederico Schmidt, com o seu ‘Cântico do Adolescente’ que muito me impressionou há anos atrás.

- Quais os melhores livros da literatura universal, na sua opinião?

‘Humilhados e Ofendidos’, ‘Crime e Castigo’, de Dostoievski, ‘Sem Olhos em Gaza’, do Huxley, ‘Mediterrâneo’, de Panait Istrati e as obras de Anatole France em geral. Mas isto é só do que já li.”

Fonte: http://praler.org/category/entrevistas-2/ (08/09/2012)

Links relacionados

- Por que escrevo?

- Como escrevo?

- Onde escrevo?

- Psicanálise

- Música

- Jornalismo
- Crítica Literária

- Relações Literárias

- Entrevistas

- Academia
- Biografia