Luiz Alfredo Garcia-Roza
Entrevista concedida ao site www.comciencia.br, em outubro de 2000
O Prof. Luis Alfredo Garcia-Roza lecionou Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo sido um dos principais fundadores do curso de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica desta universidade. Formado em filosofia e psicologia, Garcia-Roza adquiriu grande notoriedade através de sua obra analítica, com oito títulos lançados. Após uma carreira plena na área acadêmica, Garcia-Roza optou por iniciar-se como escritor de ficção policial. Sua obra inicial, O Silêncio da Chuva, lançado em 1996, recebeu o Prêmio Nestlé e o Jabuti. Suas duas obras seguintes contam histórias do mesmo personagem, o detetive Espinosa, ambientadas no Rio de Janeiro da atualidade.
- O senhor iniciou as suas atividades literárias, como autor de novelas policiais, mais tardiamente, depois de uma carreira de sucesso como piscanalista. Como se deu esta mudança na sua atividade intelectual?
A mudança se deu por opção, por escolha. Eu fui professor da UFRJ durante quase 35 anos e fiz tudo que eu queria como professor. Eu fui professor de graduação, de pós, eu criei um programa de pós graduação em teoria psicanalítica, com mestrado e doutorado. Isso faz já quinze anos. Então o que aconteceria daqui pra frente seria tocar estes programas, talvez escrever mais um livro, além dos que eu já escrevi, de teoria psicanalítica, de filosofia e esperar a aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade. Eu não queria este projeto de outono da vida, eu queria uma coisa mais criativa. Então, me desliguei da universidade e, como tinha um desejo já antigo de escrever ficção, particularmente ficção policial, me dei conta de que teria que mergulhar nisso de cabeça, ou virava escritor de fim de semana, tentando conciliar a universidade com a escrita. Então, resolvi largar tudo, fazer um corte radical e enveredar pela ficção policial.
- Este livro que o sr. mencionou, sobre teoria psicanalítica, que falta escrever, está no seu calendário ou não?
- Não, na verdade não. Nos meus últimos livros, tem um título, Introdução à Metapsicologia Freudiana, em que faço uma análise do assunto. Tem um primeiro volume, onde faço uma análise dos textos de Freud anteriores à Interpretação dos Sonhos, particularmente Afasias e O Projeto, de 1895. O volume 2 fala especificamente sobre A Interpretação dos Sonhos e o volume 3, que fala dos artigos da metapsicologia e ficou na expectativa de um volume 4 sobre a segunda tópica freudiana. Mas não está nos meus planos.
- Qual das três novelas policiais é a sua preferida?
- A primeira tem a característica de ter me inaugurado como ficcionista. É como primeiro filho. Eu tenho uma simpatia particular por este primeiro livro. Mas eu sinceramente gosto muito de cada livro que eu estou escrevendo.
- Muitos autores, críticos e historiadores da cultura costumam apontar semelhanças importantes entre as estruturas da narrativa policial e o desvendamento psicanalítico através da livre associação no discurso. O sr. pensa haver haver uma relação estrutural forte entre uma coisa e outra?
Acho que é possível fazer uma relação entre a novela policial e a prática psicanalítica, mas num sentido amplo. Primeiro, ambos são o exercício da suspeita. Você parte da suspeita de uma recusa do óbvio, do dado, que no caso da psicanálise é o que o paciente conta como um relato consciente e a partir da recusa disso como contendo a verdade, vai através das falhas, das fendas e das hesitações, ou seja, nos interstícios deste discurso você vai procurar o que seria o significante inconsciente, ou aquilo que seria a manifestação do inconsciente. Você parte de certos fragmentos para procurar algo que não é aquele discurso, é outra coisa. Da mesma maneira a investigação policia é feita a partir de fragmentos para descobrir o que seria um outro registro, outro plano, que é o plano do crime propriamente dito. Então, nesse sentido, eu acho que há uma certa analogia entre a prática psicanalítica e a prática policial. Semelhança é uma palavra forte, porque na novela policial o detetive investiga apesar do assassino, ao passo em que na prática psicanalítica você precisa do depoimento do paciente, da relação transferencial que se dá numa sessão analítica. Uma outra analogia que se pode fazer, mas num sentido mais amplo, é que ambas as investigações têm como ponto de partida um crime, um assassinato. No romance policial, é óbvio, o crime é cometido pelo assassino. Na psicanálise os dois acontecimentos primordiais são assassinatos, são parricídios. O Édipo é o assassinato do pai, da ordem primordial. Aí seria uma articulação mais ampla, mais profunda talvez, mas só isso. Eu não iria mais além nesta comparação.
- Fazendo um paralelo, então, com o seu primeiro livro, O Silêncio da Chuva: o inspetor Espinosa no fim do livro descobre que o assassino que mantinha Rose em cativeiro era o próprio amigo dele, que havia sido tão próximo. Isso significa um certo grau de pessimismo em relação à eficiência da psicanálise?
Não, na verdade não há pessimismo. O que a psicanálise te ensina é que aquilo que mais te ameaça é uma relação extremamente íntima. O delírio, o mortífero em cada um de nós está em nós mesmos. É aquilo que Freud chamou de "unheimlich", é essa coisa familiar, próxima. Ele cunhou este termo, "unheimlich". Porque heimlich é familiar, então unheimlich seria o familiar distante, o familiar desconhecido. É aquilo que está muito próximo de você e, no entanto, desconhecido de você. Mas que de alguma maneira se insinua. Essa coisa é terrorífica, é o grande pavor que temos da nossa própria interioridade. Nesta medida, em O Silêncio da Chuva acontece isso, e não é só O Silêncio da Chuva, nos outros dois acontece isso, acontecem coisas parecidas. Eu jogo um pouco com a idéia, que não é propriamente psicanalítica, não é propriedade da psicanálise, que é a idéia de que as maiores ameaças, as que te provocam e te assustam mais são exatamente as que são próximas e ao mesmo tempo invisíveis.
- O nome do personagem principal dos seus romances, inspetor Espinosa, tem alguma motivação em relação ao filósofo de mesmo nome, ou é mera casualidade?
Tem uma homenagem ao Espinoza. Eu acho o Espinoza um pensador extraordinariamente íntegro. Então, o inspetor Espinosa vai como uma homenagem, mas pára por aí. Porque o inspetor Espinosa é um sujeito íntegro, é uma pessoa normal como qualquer outra. Apesar de ser um burocrata, um policial pertencente ao aparato de Estado, um homem de gabinete. Um homem normal, um funcionário público. Mas ele é íntegro. Ele, de alguma maneira, diz que é possível ser íntegro. Até na polícia. O policial não tem que ser corrupto, assim como ninguém tem que ser corrupto. Se há uma exigência fundamental ao ser humano, é que ele seja íntegro, que seja ético.
- O Rio de Janeiro, cenário de seus romances, tem tintas sombrias que lembram às vezes o expressionismo e outras o próprio surrealismo. Há nisso alguma relação com a sua formação em psicanálise ou são outras as motivações?
O Rio de Janeiro é uma das poucas cidades que você não pode ignorar. Tem cidades que você quase que ignora, o cenário e a geografia dela. Você fica só com a história e descarta a geografia. O Rio de Janeiro se impõe na sua geografia pela beleza e pela sedução. O Rio é uma cidade muito sensual, cidade de sol. Quando se pensa em Rio de Janeiro você pensa em sol, mar. Estas coisas você capta pelos olhos, pela pele...A relação do carioca com a cidade é uma relação muito sensual. Eu sempre digo que o Rio de Janeiro é uma cidade mulher. É uma cidade feminina. E ela captura homens e mulheres pela sua sedução. Então, tem isso, a presença imperiosa da geografia da cidade. Por outro lado, é uma cidade que eu conheço intimamente. Não toda ela, mas pelo menos zona norte, centro até zona sul e Barra da Tijuca eu conheço muito bem. Eu nasci e cresci no Rio de Janeiro. A escolha da cidade vai por aí. E também há outro motivo, que é que os meus romances policiais não têm só uma história. Também têm uma geografia. É como se a geografia da cidade fosse um pouco da história da cidade. E não há como a cidade não estar presente, e presente fortemente.
- O herói detetive de seus romances tem as características peculiares e universais dos heróis do gênero, isto é, tédio, solidão, inteligência, frieza apaixonada, desencanto consigo mesmo e encantamento com a vida, e ainda assim, apesar deste universalismo, ele parece ser brasileiro. De onde vem, a seu ver, como criador da criatura, esta identidade?
Eu procurei não fazer do Espinosa nenhum clone de nenhuma figura de algum romance policial clássico. Ele não é parecido com o Sam Spade, do Dashiel Hammett, nem é parecido com o Philip Marlowe, do Raymond Chandler, nem do Nero Wolf, do Rex Stout enfim, eu procurei não clonar estes personagens. Eu tentei fazer do inspetor Espinosa um personagem bastante brasileiro, e bastante carioca. Ele tem uma certa preguiça, ele não tem este sufoco do paulistano, por exemplo. Ele tem características muito próprias. Estas cracterísticas que você listou podem ser semelhantes às característcias dos detetives clássicos. Mas veja bem: ele não é um super herói que dá socos, ele não dá tiros. Ele não se impõe pela força física, ele nem é um grande atirador nem exímio perito em vinhos ou rosas como os detetives ingleses. Não é um gênio como o Nero Wolf, nem é aquela máquina institucional do Sam Spade. Ele é um investigador, que procura fazer da melhor maneira possível seu trabalho, e de preferência, evitando socos e tiros. Ele é quase um anti-herói. Ao contrário da maior parte dos detetives americanos, que são chegados à uma certa truculência.
- Quais são os autores que mais o influenciaram?
Os policiais que eu citei antes. Mas não foi uma influência no sentido de ter nos textos deles um modelo de romance policial, mas no sentido de eles terem me provocado. De terem dito: é possível fazer romance policial de boa qualidade. Mas as grandes marcas que eu tenho são da literatura em geral, e não da literatura policial. Melvin, Faulkner, Conrad
- Há um autor francês, Jean-Pierre Gatégno, com três romances publicados na mesma coleção em que o sr. publica, pela Cia. das Letras, que tratam de maneira bastante bem-humorada o tema do crime, do mistério e da psicanálise. O sr. vê, mesmo que imaginariamente, alguma relação entre a sua atividade de psicanalista, sua atividade litarária e o universo retratado nestes romances?
Eu li todos os romances desta série. Mas não me vejo muito encaixando na construção, na ficção dele.
- Dois outros autores contemporâneos de novelas policiais são também responsáveis por essa linha tradicional e moderna da narrativa inteligente e sensível. Ambos são europeus. Um deles, Manuel Vasquez Montalban, é de Barcelona, e o outro, Andrea Camileri, de Vigàta, na Sicília, sendo que este último empresta do primeiro o nome para seu personagem principal, que se chama inspetor Salvo Montalbano. O sr. vê alguma relação entre esse tipo de narrativa e os seus romances policiais?
Neste caso sim, eu acho que entre a minha narrativa e a do Camileri há uma semelhança. Inclusive acho que o inspetor dele tem alguma semelhança com o Espinosa. No caso do Manuel Montalban, não. O Pepe Carvalho, que é o personagem principal dele, não é tão parecido com o meu. Talvez haja aí uma semelhança longínqua. Tanto eu quanto o Camileri começamos a escrever ficção muito tarde. O Camileri é mais velho do que eu. O primeiro livro de ficção dele quando saiu ele já tinha quase setenta anos de idade. Isso é interessantíssimo. Só que tem uma diferença: ele levou a história dele para uma cidadezinha fictícia, ao passo que a minha acontece numa cidade grande.
- Como tem sido a recepção do público aos seus romances policiais? O sr. se surpreendeu com a premiação da Nestlé e o prêmio Jabuti, no seu romance de estréia, O Silêncio da Chuva?
Me surpreendi bastante, até porque foi o primeiro livro. Eu sequer sabia se tinha feito um trabalho de qualidade. Pouco depois de o livro ter saído, em 96, ele recebe a indicação para concorrer ao Nestlé e eu achei muito gentil. Achei simpático, mas que ficaria por aí mesmo. Quando eu tive a notícia de que tinha sido premiado foi uma alegria danada, e ao mesmo tempo uma força para continuar, porque era uma prova do reconhecimento pelos meus pares. Logo depois veio o Jabuti, que eu sempre achei um prêmio muito tradicional e respeitado. Então o livro ter ganho o Nestlé e depois o Jabuti foi como quem diz: "Olha vai em frente, porque a sua aposta foi boa."
- Quais as diferenças que mais chamaram a atenção do sr. entre os públicos de romance policial e dos seus livros anteriores sobre psicanálise e filosofia?
O único público comum entre os dois são os meus amigos, porque alguns são da mesma área. Eu não faço mais noite de autógrafos. É um pouco constrangedor, você está constrangendo seus amigos a irem lá. Mas, são dois públicos diferentes. Como não participo mais de mesas redondas, palestras nem mais nada do mundo acadêmico, o contato que eu tenho é com o público de literatura mesmo.
- O sr. concorda que haja no método analítico de Freud influência do detetive Sherlock Holmes, de Conan Doyle?
É evidente, que em todo trabalho investigativo, se você quiser procurar antepassados, você chega em Sófocles. No Édipo Rei, nos gregos. Um influência mais próxima talvez seja o Allan Poe. Mas o que eu quero dizer é que, uma vez duas práticas instauradas, se você encontra alguma semelhança entre elas, isso não quer dizer que haja necessariamente uma origem comum. E nem o Freud se propõe a ser um detetive da alma...Pelo motivo que eu falei no começo: o detetive investiga sem a cooperação do investigado, ao passo em que a análise se dá necessariamente na presença e com a cooperação do analisado. Então isso marca uma diferença muito grande entre o que seria uma investigação psicanalítica e uma investigação policial.
- Por fim, quanto do sr. há no detetive Espinosa?
Não só no Espinosa, mas no Max, no Aurélio, na Bia...No Achados e Perdidos nas duas prostitutas que são personagens, no delegado bêbado e assim por diante. Eu acho o seguinte: a matéria prima com a qual o ficcionista trabalha não é só o policial, mas o seu próprio imaginário de ficcionista. Então tem tanto de mim no Espinosa quanto na personagem Clô, que é a prostituta do Achados e Perdidos. Ou no Gabriel, que é personagem do Vento Sudoeste. Eu não retiro meus personagens de ninguém real e concreto que eu conheço. Meus personagens são inventados do meu imaginário. Então eu estou tanto no inspetor quanto no delegado bêbado, na prostituta e no vagabundo do subúrbio. Mas de qualquer forma, uma tentativa de estabelecer um paralelo, eu tenho que dizer que o Espinosa não sou eu. Ele tem uma certa lassidão que eu não tenho. Ele leva a vida mais leve, apesar da atividade dele ser mais pesada. Eu até por formação profissional, sou muito mais racionalista, e ele não é um racionalista. Em suma, há diferenças. E fisicamente eu nunca defini o Espinosa. Ele não tem características físicas, eu deixei meio indefinido mesmo.
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Luiz Alfredo Garcia-Roza
Entrevista conduzida por Francisco José Viegas, publicada na edição de Outono de 2004 da revista Ler, de Portugal.
O seu primeiro policial foi de 1996, O Silêncio da Chuva, e recebeu logo dois dos prémios mais prestigiados do Brasil, o Jabuti e o Nestlé. Nessa altura era professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dirigia estudos de psicanálise e de psicologia na universidade, e tinha publicado uma boa lista de livros sobre a matéria. Sobretudo sobre psicanálise…
Não muitos, mas uma quantidade razoável…
Oito…
Alguns de filosofia outros especificamente de psicanálise e, mais especificamente ainda, sobre teoria psicanalítica. A estrutura da teoria psicanalítica era o que mais me preocupou durante a minha vida de académico.
É um freudiano?
Sim, acho que sim. E análise que eu fiz da teoria psicanalítica era exclusivamente freudiana.
Como é que decidiu mudar? Do género «adeus a Freud, agora vou dedicar-me à literatura policial»? Foi uma opção?
Foi uma opção. E deliberada. Eu tinha uma vida universitária bastante longa, já estava na universidade há trinta e cinco anos e já tinha feito o que me tinha proposto fazer enquanto académico, enquanto professor. Dali para a frente a coisa andaria quase como aproveitando o impulso, ladeira abaixo, por si própria… Muita gente faz isso. Então, achei que era a altura de fazer um corte com a universidade e com a vida académica, na qual tive um razoável sucesso. Achei que podia sair sem ficar com um sentimento de perda. Que podia fazer mais, que podia fazer outras coisas.
Sem se aposentar?
Bom, a ideia era escrever sem me aposentar, sim. A opção que eu coloquei e que correspondia a uma fantasia antiga, era a de escrever ficção. Mas eu nunca tinha escrito ficção de natureza alguma. Todos os meus escritos tinham sido escritos teóricos. O que me fascinava era a abertura, a liberdade que o escritor de ficção pode usufruir. E resolvi fazer uma primeira tentativa. A primeira escolha foi O Silêncio da Chuva. Escrevi e enviei para a editora que eu considerava no Brasil uma das melhores editoras de ficção...
A Companhia das Letras…
Isso. Nunca esperei que acontecesse o que aconteceu. O livro ganhou dos prémios e isso foi como um aval da comunidade literária, dizendo que eu poderia escrever, que eu podia continuar escrevendo. Aí, eu achei que era incompatível continuar a escrever ficção e manter a vida académica, Eu era coordenador de um curso sobre psicanálise, orientava teses, fazia conferências… Era impossível. Então, saí da universidade e me aposentei.
Só nessa altura…
Só nessa altura. Depois de ter escrito O Silêncio da Chuva e de me terem proposto continuar a escrever ficção de uma forma, digamos, profissional. Pelo menos não amadorística.
Disse que foi uma opção deliberada. Mas porquê policial?
Porque eu sempre gostei de literatura policial. Desde que comecei a minha vida académica, todas as minhas leituras académicas sempre foram paralelas à leitura de literatura policial. Desde os meus dezasseis anos que sou um leitor de literatura policial, Dashiell Hammet, Raymond Chandler sobretudo. E a literatura policial fascinava-me e fascina-me até hoje pelo facto de o seu cerne ser constituído por um conjunto de questões que eu considero fundamentais: sobre a morte, o assassinato, a sexualidade…
No seu caso, ainda por cima, sobre o desaparecimento. O desaparecimento é uma categoria sempre presente nos seus livros… Há muitos desaparecidos.
Isso é verdade, o desaparecimento é uma categoria. Essas questões são fundamentais. Habitaram o mito, a poesia arcaica. Todos os grandes autores trataram essas categorias central ou marginalmente, mas eu acho que a literatura policial trata delas de uma forma absolutamente desprovida de qualquer disfarce.
José Cardoso Pires dizia que, em última instância, toda a literatura é policial…
Eu concordo plenamente. E Borges dizia isso também: que no fundo o romance policial é o único que tem uma estrutura formal definida, como se fosse o modelo do próprio romance. Não sei até que ponto é que se pode estender a estrutura do romance policial à do romance em geral, mas parece-me haver quase uma dependência. E, pessoalmente, é uma estrutura que me agrada profundamente.
E, depois, temos um caso especial, o do delegado Espinosa… Porquê Espinosa? Era um dos seus filósofos, na universidade?
Eu tenho uma paixão particular por Espinosa, sim. Toda a minha vida universitária foi dividida entre a filosofia, por um lado, e a psicologia e a psicanálise, por outro. Ora, Espinosa é um pensador sem igual. Ele é um dos grandes génios da filosofia, um homem de uma coerência e de uma consistência espantosas. E sobretudo um ser humano absolutamente invejável, de uma integridade ética notável, a toda a prova. Espinosa reuniu sempre, para mim, o máximo da racionalidade e o máximo da sensibilidade. E essa integridade. Ele conseguia ser intenso e íntegro ao mesmo tempo, o que é raro, raríssimo. Então, o delegado Espinosa é uma homenagem ao filósofo, sim – porque é também um homem íntegro. Apesar de ser um burocrata, um policial pertencente ao aparato do Estado, um homem de gabinete e de estar ligado à polícia que é atingida pela corrupção, ele é um sujeito íntegro. Ele, de alguma maneira, diz que é possível ser íntegro.
Então, temos um Espinosa, com nome de filósofo, transformado em investigador policial. Em personagem dos seus livros. Num deles, justamente O Silêncio da Chuva, uma das personagens, Alba, que pessoalmente tenho pena que tenha desaparecido nos livros…
…Era fascinante, sim [risos]…
…É Alba Antunes, professora numa academia de ginástica aqui de Copacabana, curiosamente, a única personagem que reconhece o nome do filósofo… É a primeira vez que aparece justificada a presença de Espinosa. E logo por uma mulher jovem, com um apetite sexual interessante, bonita… Não por um bibliotecário…
Mas tinha de ser, tinha de ser. Eu gosto de Espinosa. Não podia imaginar a cena de outra maneira, muito séria, chata, académica. Alba é bonita, com aquele apetite sexual todo, teria de ser ela a encontrar a referência ao filósofo, claro…
Há um universo curioso criado à volta de Espinosa. Não só à volta das suas investigações, dos seus inquéritos, mas também em volta de si próprio. Ele é o epicentro de um universo em que entram as mulheres, a comida (a relação de Espinosa com a comida), e o próprio Rio de Janeiro. É um novo Rio, não aquele dos postais, da bossa-nova, dos turistas de Copacabana. O que mais me surpreendeu é que o Rio, sobretudo a zona Sul (o Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon), aparece transformado num cenário melancólico, romântico. É uma nova imagem do Rio…
Acho que essa imagem é a que mais me conforta, sim. Você coloca o Espinosa como epicentro desse universo, acho a imagem perfeita. Ele não é necessariamente, nos romances, o personagem mais importante, mas é o personagem em torno do qual giram os outros todos, alguns mais importantes do que ele para o desenvolvimento da história. A própria cidade forma um contexto para Espinosa. Essa cidade, sobretudo a Copacabana de Espinosa, não pode ser de cartão postal, embora seja impossível retirar a beleza do Rio, que é uma beleza que sempre me impressionou, que não se pode esconder. A beleza é quase uma doença do Rio. E depois tem esse lado feminino do Rio, de Copacabana… Isso eu não posso eliminar, embora a cidade não seja redutível a isso. Copacabana é um cosmos plenamente habitado, cheio de gente. Não apenas turistas e gente rica, mas também por uma vida extremamente rica, com o seu submundo muito complexo. Quem vê as ruas de Copacabana não o nota ao primeiro olhar, mas ele está lá. E tem esse tom que você assinalou, e que é raro mencionar-se, que é um tom melancólico…
Espinosa tem uma relação melancólica com essa parte do Rio, com a Gávea, com Copacabana, com fragmentos de Ipanema…
Talvez uma contrapartida em relação à sua beleza extrema, sim… À pressão excessiva da beleza.
Há um sábado, em Vento do Sudoeste, em que Espinosa toca essa melancolia: não há sol, chove de vez em quando, o vento vem da Gávea e atravessa as esplanadas da Avenida Atlântica. Isso é novo na chamada literatura do Rio, que normalmente dá destaque à zona mais pobre (estou a pensar no caso do Paulo Lins, com A Cidade de Deus) ou então tem um ar high-society. E há esse bairro, o de Espinosa, o Bairro Peixoto…
O Bairro do Peixoto é um microbairro dentro de Copacabana. É um nome inapropriado, porque não chega a ser um bairro, é apenas um pequeno conjunto de dois quarteirões com uma praça no meio, bem interessante. Eu penso no Bairro do Peixoto como uma cidade medieval, com a muralha e, no meio, os seus prediozinhos de dois ou três andares, não mais, com o seu verde e que tem uma vida própria. Espinosa vive aí, a poucos metros da delegacia em que trabalha.
Espinosa é fascinante para as mulheres. Há leitoras suas que ficam fascinadas com aquele figura de solitário, divorciado, desprotegido, rodeado de livros empilhados e de comida congelada…
Não sei porque é que ele fascina as mulheres, tanto em Portugal como aqui no Brasil, mas é um facto, sim…
O senhor é psicanalista…
Bom… Talvez por causa desse desamparo, um desamparo fundamental que ele não consegue disfarçar. Isso, aliado à sua preguiça descontraída é que pode aumentar a dose de melancolia.
Provoca um sentimento maternal, é isso?
É possível... Todo o sentimento de desamparo pede alguém que proteja, que acolha. O desamparado pede sempre sobretudo para ser acolhido e o Espinosa talvez provoque essa coisa feminina de acolher… A mulher, eu acho sobretudo acolhedora. E Espinosa é um excêntrico desamparado. Aliás, mais do que um excêntrico na própria polícia, ele é um excêntrico no mundo…
Ele não é uma figura típica na polícia…
Não, de maneira nenhuma… É um estranho, um intelectual. Não usa os métodos da polícia mas, ao mesmo tempo, ele continua lá, na polícia. É um excêntrico no ninho, mas não sai do ninho.
Há uma relação estranha com a comida. Não é gastrónomo, como Nero Wolfe. Não é um cozinheiro, como Pepe Carvalho. Mas a comida é uma preocupação permanente, ele tem uma boa relação com a comida. Em O Silêncio da Chuva Espinosa estabelece os seus três níveis de gastronomia – alemã, quando compra carnes frias na charcutaria; síria ou libanesa, quando compra kibe ou esfiha numa barraquinha de rua; ou italiana, quando descongela uma lasanha à bolonhesa em casa…
Eu gosto de comida italiana, de comida árabe e de comida alemã. Na verdade, a marca dessas três gastronomias tem a ver com o carácter prático dessas comidas. São coisas prêt-a-porter, sem precisar de uma empregada, sem precisar de cozinhar, sem precisar de trabalhar. A marca fundamental da relação de Espinosa com a gastronomia é essa: sem trabalho.
Mas não é uma relação de tédio…
Nunca, nunca… Ele tem sabor, preza muito a comida, e quando quer comer bem – o que acontece muitas vezes – vai a um restaurante italiano… A comida tem a ver, suponho eu, com essa necessidade de protecção sentida por Espinosa: refeições, ritmos, sabor, calor, qualquer coisa que enternece o corpo.
E o mundo das mulheres… Irene é a grande mulher de Espinosa desde que se conhecem em Vento do Sudoeste. Desde essa altura que se encontram e o Garcia-Roza é como que o biógrafo dessa relação sem prazo nem medida. Em Uma Janela em Copacabana Irene e Espinosa quase parecem um casal normal, mas no livro seguinte regressam ao seu «estado puro», ou seja, ao seu estado flutuante…
A biografia amorosa de Espinosa é uma das poucas coisas que, nos livros, mantém uma certa historicidade. Irene está presente em quase todos os livros, menos no primeiro. Daí para a frente aparece em todos e é a única personagem (com o polícia Welber) que pode ter uma biografia.
Eu tenho pena que tenha perdido a Alba Antunes…
Também eu… Alba é uma personagem forte que aparece no primeiro livro, no Silêncio da Chuva, mas que não tem sequência em livro nenhum. Sequência só o próprio Espinosa, o Welber e a Irene.
Mas Welber não é uma espécie de Watson de Sherlock Holmes…
Não, não é. Trata-se de uma relação entre o polícia mais velho e o polícia mais novo, com uma certa ternura, dedicação, como se o Espinosa o adoptasse como aquela pessoa em que ele deposita toda a confiança. Espinosa vive no seio de uma corporação policial em que grande parte está manchada pela corrupção, e não se sente confortável com os colegas de trabalho, de quem desconfia sempre, ou de quem tem de desconfiar…
…o que é o tema em Uma Janela em Copacabana e em Achados e Perdidos, sobretudo…
Apenas dois polícias lhe merecem confiança. Há um terceiro, que só aparece no último, O Perseguido… Mas esses são os que ele destaca, sendo que, no caso do Welber, Espinosa deposita toda a confiança. É um meio muito esquizofrénico, em que a polícia não trabalha apenas com suspeitos externos (os criminosos, os homicidas, os ladrões), mas também com suspeitos no interior da corporação. Muitas vezes suspeitos íntimos. A polícia vai combater o mal, mas esse mal está muitas vezes dentro da própria polícia, o que cria uma situação absurda muitas vezes, porque o mal deixa de ser o estranho para ser, também, o íntimo, aquele que está a seu lado, com quem conversa enquanto toma um café. Se você não se defende disso, está perdido, envolvido nas malhas dessa corrupção. É uma situação desconfortável.
O mal que vive ao lado é um tema omnipresente nesses livros, e logo no primeiro livro, O Silêncio da Chuva, é representado por Aurélio, um velho amigo de Espinosa…
O Aurélio é um personagem que encarna todo o mal: inteligente, afável, companheirão, íntimo. E, no fundo, é a imagem do mal. Todos temos essa presença permanente, ao nosso lado. O problema não é o de se saber em quem confiar, mas o de não se saber de quem não desconfiar. Espinosa vive rodeado desse pânico.
E há esse outro lado de Espinosa, o da solidão extrema…
No caso da polícia, no caso do seu trabalho, é uma espécie de protecção permanente. Através da solidão, ele defende-se do contágio de um meio doente e abjecto. Na sua vida particular, acho que isso se deve ao facto de ele ser um céptico que não tem grandes ilusões a respeito da vida, ou dos outros, ou do amor, ou das suas próprias leituras.
Mas não é um cínico, ou seja, não é um cínico como os cépticos do policial americano, como Marlowe. É céptico como os heróis de Montalbán ou dos livros do comissário Montalbano…
É verdade, porque esse cepticismo faz dele um crítico. É possível que esse cepticismo produza um certo afastamento em relação aos outros, porque um céptico está condenado a poder levar as suas críticas até ao fim. Por isso, ele afasta-se dos outros, para se defender de ter de levar as críticas até ao fim. Mas ele não é um profissional absolutamente seguro, de qualquer modo. Ele sabe que qualquer investigação é um caminho no fio da navalha.
Aliás, ele falha bastante durante as investigações…
Sim, porque Espinosa não é o polícia infalível. É o falível, justamente. É esse sentimento de falibilidade, a percepção de que não é o grande génio de Poirot, um herói como Marlowe, de que é um homem comum investido de um certo poder, que o leva a ser visto como um homem que aceita o seu destino, a sua solidão, a sua timidez diante das mulheres (que são sempre mais ousadas, de resto), até os seus medos…
É um polícia credível?
Acho que sim. Quer dizer, não é impossível encontrar um Espinosa na polícia brasileira. Eu, inclusive, encontrei um que, infelizmente, morreu num acidente de automóvel. Encontrei-o durante as primeiras pesquisas que fiz para desenhar o personagem.
Fez muitas pesquisas?
Fiz algumas. Não propriamente pesquisas, mas entrevistas em delegacias… E encontrei um delegado que me espantou. Estávamos a falar sobre os métodos policiais, a investigação criminal propriamente dita e, a certa altura, dou com ele a dizer-me: «O senhor sabe, a nossa actividade não é de episteme, é uma actividade de dóxa, nós trabalhamos com a opinião e não com o conhecimento.» Achei espantoso um polícia dizer uma coisa daquelas, lidando com a oposição entre conhecimento e opinião, inclusive citando os termos gregos, eu fiquei perplexo… Ele era real, existia, era polícia. Lamentavelmente morreu num acidente de automóvel. Às vezes a opinião banal sobre a polícia – de que tudo é corrupção, de que se trata de gente sem formação e sem escrúpulos – também pode ser um pouco injusta. Encontram-se, digamos, excepções fulgurantes…
Essa desconfiança também acontece com outras profissões como, por exemplo, os psiquiatras. Um dos seus livros, O Perseguido, tem como personagem principal um psiquiatra… Tem a ver com a sua vida profissional anterior?
Não propriamente, porque eu fui sobretudo um teórico, interessei-me sobretudo pela psicanálise, nunca exerci clínica… O psiquiatra vive numa situação de ambiguidade, vive numa zona de fronteira entre a sanidade e a loucura. Tal como o polícia, vive numa outra zona de fronteira, entre a criminalidade e o desejo de castigar ou de compreender. O polícia e o psiquiatra vivem nesse limiar que é fácil transpor e violar, e isso é que é perigoso – essa diferença sem diferenças absolutamente definidas. E, num pequeno lapso de tempo, já se está do lado de lá sem se saber se está do lado de lá ou do lado de cá. Nesse livro, o plot, a história, vive nessa região de fronteira que idealmente separa esses dois mundos, mas que se esvai muito rapidamente, até que mal e bem ou sanidade e loucura se confundem e passem a ser um mundo só. Quem é o louco e quem é o psiquiatra, quem é o paciente e quem é o médico, quem persegue quem? Essa paranóia que está presente não só no mundo psiquiátrico como, também, no mundo policial, eu acho que não há nem necessidade de ter uma experiência clínica. Não são barreiras, são fronteiras muito facilmente transpostas, pouco claras, pouco nítidas. Isso é definitivo para marcar o isolamento do Espinosa, que procura protecção permanentemente, e às vezes aparece como um personagem um pouco conservador, justamente porque sabe que é fácil pisar o risco e não regressar.
Por outro lado, a história de O Perseguido é uma história familiar trágica…
Sim, completamente trágica, isso mesmo. Nem é propriamente policial, no sentido em que não há um enredo tradicional. Os personagens vão desaparecendo, toda a gente da família vai desaparecendo. Dos cinco livros, O Perseguido é o mais inquietante, para mim. Talvez até o mais pesado…
Estou a ver na sala onde trabalha um mapa ao pormenor da zona sul do Rio, a zona onde deambula o seu personagem…
É um mapa de Copacabana. Só de Copacabana.
Num dos seus livros, O Perseguido, aparecem mapas de Copacabana para mostrar melhor onde se situa a acção…
Para que os leitores se situem… Neste mapa, aqui na parede, eu vejo cada prédio de Copacabana, cada beco, cada jardim. Ele tem a localização de cada parede, é um retrato do espaço em que o Espinosa opera. No máximo tomo como referência esse mapa, não uso muitos outros materiais além deste. Só memória. E imaginação. Eu nasci em Copacabana, cresci em Copacabana e morei em Copacabana toda a vida…
Mudou muito, Copacabana?
Muito, muito… Quando eu era menino não havia prédios em Copacabana, e hoje só há prédios. É raro encontrar uma casa. A área alberga uma concentração humana espantosa, uma quantidade de gente inacreditável para o tamanho do bairro, que é muito pequeno. É um meio pequeno. Atravessa-se facilmente a pé nos dois sentidos, do mar à montanha e de uma ponta à outra. Mas eu passeio muito pelo bairro. O meu próximo livro vai ser ainda mais concentrado em Copacabana…
Ainda mais?
Ainda mais, no meio de Copacabana, perto do Bairro Peixoto, onde mora Espinosa, mas trata-se de uma história sem Espinosa…
Isso é uma traição aos leitores…
Provavelmente, mas decidi dar-lhe umas férias… É um risco necessário de correr porque tenho um certo temor de que o personagem que se trabalha em todos os livros comece a cansar. Ele comece a cansar-me. Eu comece a cansá-lo. E ambos cansem os leitores. Pelo perigo da repetição. Isso acontece quando a criação dá lugar à produção, e é um perigo fatal para um escritor, penso eu. Tenho muito medo disso. Quando abandonei a escrita académica foi precisamente para me livrar da produção intelectual como uma espécie de linha de montagem, e partir para a criação ficcional pura, o que era uma coisa nova em mim…
Muitas vezes, o que os leitores de policiais procuram é a repetição de uma fórmula e de um conjunto de circunstâncias, de um processo de investigação… Ou seja, o leitor de policiais gosta de um certo grau de previsibilidade para averiguar até que ponto o autor é capaz de ludibriá-lo…
O que nós procuramos no romance policial é o facto de ele para o seu cerne, aquilo que é o cerne de cada um de nós. E fazendo isso cruamente. Sem grandes fantasias, sem grandes farsas. Isso é a marca fundamental do livro policial. Agora, concordo que a repetição tem um certo peso, sim. O Rex Stout, com o Nero Wolfe, consegue uma repetição infindável, são cerca de oitenta livros, e ficamos sempre fascinados com aquilo…
…e não se trata de um bairro como Copacabana, mas de uma casa na Rua Trinta e Cinco…
Pois é… Uma casa. Repetição fabulosa, não? Bom, mas eu não pretendo matar o Espinosa, mas só dar-lhe umas férias, ele deve estar um pouco cansado de mim. Vai continuar a existir, até porque tem admiradores. Sobretudo admiradoras.
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