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Grandes entrevistas

 

Manuel Bandeira 2/3


Entrevistada “conduzida” por Pedro Bloch e publicada na revista Manchete, nº 623, de 28/03/1964 e republicada em seu livro: Pedro Bloch entrevista. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1989.

Ninguém sabe explicar como aquele homem, castigado, tantos anos, pela doença, não amargou. Disse Mário de Andrade: "Eu fico espantado de como há certos homens no mundo! Tu, por exemplo. Essa sublime bondade inconsciente, bem no íntimo, de quem nem sabe que é bom." Vou além. Acho que Manuel Bandeira nem tem plena consciência de sua imensa envergadura de gente e poeta. Acho que, talvez, os quatro anos que viveu em sua terra, Recife, é que explicam, mais que os males, o homem de hoje.

                              Sou bem-nascido, menino.

                              Fui, como os demais, feliz.

                              Depois, veio o mau destino

                              E fez de mim o que quis.

Diante de mim está o gigante de nossa poesia: Manuel Bandeira, em seu modesto apartamento, atulhado de livros e calor humano, na Av. Beira-Mar, no Rio. Do bem que lhe querem todos, da ternura que desperta em quem dele se aproxima basta dizer que Mário de Andrade só o tratava de Manu ou Manuelucho; Rodrigo MeIo Franco de Andrade lhe deu o nome de Manula; Madale Blank, sua amiga de almoço de todo o dia, o trata de Mané. Até a morte da mãe era para ela. Neném. Creio que nunca ninguém teve tanto apelido, tanta gente querendo chegá-lo à sua amizade.

Do Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida é que vejo o vazio dos últimos.

                      Hoje não ouço mais vozes daquele tempo.

                      Minha avó, meu avô Totônio Rodrigues,

                      Tomásia, Rosa, onde estão todos eles ?

 

Meu nome todo é Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no resto sou como meu pai (engenheiro que conviveu no ministério com Machado de Assis).

 

Sabe, Pedro Bloch, que meu avô reprovou Castro Alves num exame? Eramos três irmãos. Os mais velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem.

 

Saí do Recife com dois anos. Deles nada recordo. Viemos pro Sul e com seis (quando da revolta da Esquadra, em 1892) meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui com seis e voltei ao Rio com dez. Mas esses quatros anos ... Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois, ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da gente.

"A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado/Rua da União.../Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância/Rua do Sol/Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal."

 

Papai, no Rio, não teve sorte. Aos quarenta anos passou por crise religiosa. Dele recordo com intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim, menino de seis anos: "E impossível que este menino não saiba ler." Trancou-se comigo na biblioteca, por duas horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo foi ouvi-lo exclamar ao morrer: "Meu Jesus Cristinho!" E eu conto no poema: "Mas Jesus Cristo nem se "incomodou!"

 

Foi o livro de D' Amicis uma das coisas que mais me marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras, onde moráva­mos, nunca faltou pão; mas a luta era dura. Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.) Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos. Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de raridade, senão de uma espécie de resolução musical. Como nas Pombas: "Raia, sanguínea e fresca, a madrugada." Entre outros eu tinha como colegas do Pedro II o Prof. Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da Costa. Acabei bacharel em Letras.

 

Como ainda não havia um bom curso de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante muitos anos vivi provisoriamente. He­moptises, tosse, febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia, homeopatia, e em junho de 1913 segui para um sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil-réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil-réis que valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de 1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer: "Quanto tempo de vida o senhor me dá?" A resposta: "O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns cinco... dez anos." Calcule! ("Então, doutor!, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.")

 

Na Suíça, conheci, como companheiro de sanatório, o poeta Paul Eluard e Gala, que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a mulher de Salvador Dali.

 

Voltei. Mal tinha dado pra conhecer Paris, por alto na ida. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme, diante das recriminações de todos. Em 1917, publiquei meu primeiro livro (A Cinza das Horas, 200 exemplares que me custaram 300 mil-réis). Em Carnaval, depois, eu dizia: "Quero beber! Cantar asneiras!" Pois um crítico observou: "Conseguiu plenamente o que queria." Nestes dois volumes e em Ritmo Dissoluto estão poemas feitos em estado de lucidez. A partir de Libertinagem é que me resignei à condição de poeta quando Deus é servido. Tomei cedo consciência de que era um poeta menor, consciência de minhas limitações. Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas: o que devemos evitar.

 

Ao voltar da Suíça eu era um inválido. Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de 500 mil-réis. Depois dos cinqüenta é que eu pude começar a trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino. Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas, durante a minha doença, dependi de meu pai (até que morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald, Alvaro Moreira, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua Paulicéia Desvairada. Foi a última influência que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado. Também não quis participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos sãos, porque a doença gerara em mim um sentimentalão.

 

Não. Nunca fui um antiacadêmico. O problema é que eu gostava de tomar minhas licenças com a língua (E eu digo a você, Bandeira: - Você não precisa pedir licença, a casa é sua). Não aceito que não se possa dizer "me dê isso", "me dê aquilo" se até o Laet dizia. ((Confesso que também tinha ojeriza pelo fardão.) Nada mais gostoso que "pra mim brincar". Todos os brasileiros deviam querer falar como os cariocas que não sabem gramática. "Ele já mo deu" ... é horrível! Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão.

Você lembra? O menino Jesus: - "Quem sois tu?/O preto: - Eu sou aquele preto principá do centro do cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?/ - O menino Jesus: - Eu sou fio da Virge Maria/ O preto: Então como é fio dessa senhora obedeço."

 

Em 1921, papai morto, continuei vivendo com 500 mil-réis. Outro dia, fui comprar um queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia, Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino, tinha perdido o montepio: - os 500 mil-réis exatos com que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para a Rádio Ministério da Educação.)

Um dos mais chegados é o Rodrigo Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos admiramos muito, mas não temos convivência doméstica.

Foi Drummond quem disse de Bandeira: "O poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte.

A minha poesia tem tomado um aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com 77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no chão da poesia piso com alguma segurança. Estou perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar. Do que imaginei ver só a Ronda Noturna, de Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de arte, Vênus de Milo e o resto, de tão divulgadas, já não constituem mais surpresa. Não tenho a menor curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento Ocidental.

Bandeira fala em preparação para a morte, mas é o poeta mais vibrantemente vivo que se pode conhecer. Vejam a vitalidade, a modernidade de seu poema Maísa:

               Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos?

               Os olhos e a boca de Maísa se estendem

               os olhos dizem uma coisa e a boca da Maísa se condói

               se contrai, se contorce como a ostra viva em que se

               pingou uma gota de limão.

               Maísa não é um corpo

               Maísa são dois olhos e uma boca."

Isso que Bandeira chama de preparação para a morte é simplesmente o sonho do poeta, a Pasárgada de: "Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei."


E o poeta escreveu:

"Agora a morte pode vir - essa morte que espero desde os dezoito anos; tenho a impressão que ela me encontrará como em Consoada: casa limpa, mesa posta, cada coisa em seu lugar."

A vida é um milagre. Cada flor, Com sua forma, sua cor, seu aroma,/Cada flor é um milagre./Tudo é milagre. Tudo menos a morte./Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."

Posso dizer que pouco se me dá, quando morrer, morrer completamente para sempre na minha carne e na minha poesia. Entretanto, já não será possível, para alguns de meus versos, aquela serena paz da morte absoluta, não por virtude própria, mas por culpa de Villa-Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado. Criancice? Deus me conserve minhas criancices.

                               O que não tenho e desejo

                               É que melhor me enriquece.

                               Tive uns dinheiros - perdi-os...

                               Tive amores - esqueci-os...

                               Mas no maior desespero

                               Rezei - ganhei essa prece.

                               Vi terras da minha terra.

                               Por outras terras andei

                               Mas o que ficou marcado

                               No meu olhar fatigado

                               Foram terras que inventei.

                               Gosto muito de crianças:

                               Não tive um filho de meu.

                               Um filho!.. Não foi de jeito...

                               Mas trago dentro do peito

                               Meu filho que não nasceu.

                               Criou-me, desde eu menino

                               Para arquiteto meu pai.

                               Foi-se-me um dia a saúde...

                               Fiz-me arquiteto? Não pude!

                               Sou poeta menor, perdoai!

                               Não faço versos de guerra.

                               Não faço porque não sei

                               Mas num torpedo-suicida

                               Darei de bom grado a vida

                               Na luta em que não lutei.

Já em 1912, em Teresópolis, Bandeira contemplava um mundo desabitado, enfrentando o mistério do infinito e de Deus:

       

                       Assim deverá ser a natureza/um dia

                       Quando a vida acabar e, astro/apagado, a Terra

                       Rodar sobre si mesma estéril/e vazia.

Espiritualmente ... minha filosofia é a de Einstein. "Minha religião - disse ele - consiste numa humilde admiração pelo espírito superior e sem limites que se revela nos menores detalhes que possamos perceber com nossos frágeis espíritos. Essa profunda convicção sentimental da presença de uma razão poderosa e superior revelando-se no incompreensível universo - eis a minha idéia de Deus." Quando li isto, disse comigo mesmo: "E exatamente o que eu sinto!" Não compreendo a negação absoluta de Deus. Como é que veio essa coisa que não começa nem acaba? Tempo infinito ... Espaço infinito ... Uma coisa absurda que, no entanto, existe!...

Não sei por que, hoje em dia, tenho pudor de fazer poemas de amor -confessa-me Bandeira, esquecido de que poeta não tem idade e que lhe é permitido ter todas - Muitas vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É como se não quisesse que os outros entrassem na minha confidência, no meu segredo. ("Um dia vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo/Ela se riu/Foi meu primeiro alumbramento." ­"Teu corpo claro e perfeito/Teu corpo de maravilha/Quero possuí-lo no leito/ Estreito da redondilha..." - "No pensamento, meu amor, tu vives nua/ - Toda nua, pudica e bela, nos meus braços."  

Amei, sim. Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois... Minhas finanças. Meus amores não podiam levar-me ao casamento com quinhentos mil-réis de montepio.

Não vou a Recife há mais de 30 anos. A princípio tinha vontade de ir mas não podia... Hoje ... (Bandeira fita de olhos agudos sua infância na Rua da União.) Olhe, você lembra de quando quiseram colocar meu busto na minha terra? "Homenagem a Bandeira?" - protestaram alguns. "Mas se ele nem gosta daqui! Nem vem cá!" Meu caro, o Recife é a constante de tudo o que sou. Escreveu Bandeira em Itinerário de Pasárgada: - Está aí roçando bravura a chamada geração de 45; há nela uma meia dúzia de talentos que não me toleram, nem como poeta, nem como homem. Dou-Ihes razão porque eu "positivamente não gosto de mim". Mas eles acabarão gostando; sei, por experiência própria, que, no Brasil, todo sujeito inteligente acaba gostando de mim.

Dentro de poucos dias Bandeira atinge os seus 78 anos, em plena forma intelectual. Miopia, surdez, uma certa angústia ao dormir, não lhe cortam a comunicabilidade. Ao contrário: domina-se facilmente, facilmente se refaz de tristeza ou de sombra.

Olho Bandeira e sinto que sua evocação do Recife lhe é tão cara, tão profunda, que ele mesmo ignora o medo que tem de novo encontro com aquelas ruas, aqueles caminhos, aquelas pontes e aquelas casas, o Capiberibe - Capibaribe. Seria emoção demais para seu coração de bom e de poeta. Mas vendo-o, neste instante, não sei quanto não daria pra ver seus olhos olhando de novo a "Rua da União" de sua meninice, fingindo não sentir aquela avalanche de ternura e saudade debruçadas na alma. Tenho a impressão de que Bandeira, gênio da nossa poesia, orgulho de todos nós, perderia o pudor que o acomete agora e choraria um pranto longo de menino que não pode mais brincar de chicote-queimado. Mas o pranto pronto lhe faria bem. E ele voltaria sonhando, novamente, o Recife dos quatro anos que se repe­tiram, sempre, nos 78 do poeta, numa dízima periódica emocional: 444444... E o nosso Bandeira, que vive arrumando suas malas para Pasárgada, deixaria esca­par, num quase sem querer, renovando sua infância, revivendo seus planos, projetando futuros:

                            Vou-me embora pra Pasárgada

                            Lá sou amigo do rei

                            Lá tenho a mulher que eu quero

                            Na cama que escolherei.

Disse o poeta

É onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar...  

O Recife de sua infância sempre foi, é e será a Pasárgada de Manuel Bandeira, o poeta do Brasil.

 

x.x.x


                                  Manuel Bandeira 3
Entrevista conduzida por Paulo Mendes Campos, publicada no jornal Província de São Pedro, nº 13, de Porto Alegre, em março-junho de 1948.


                                        1 – A cinza das horas
O crítico, diz T.S. Eliot, deve ter um sentido muito desenvolvido dos fatos. À procura de fatos fomos outro dia visitar o poeta Manuel Bandeira com umas perguntas escritas num papel. Não pretendíamos realizar uma entrevista normal, mas uma reportagem exclusivamente literária. As questões estavam na própria arte do poeta. Tentando obter dessa obra xplicações tão objetivas quanto possível, moveu-nos a convicção de que, em matéria de poesia, o impressionismo crítico tem nos dado páginas bem escritas e interessantes, mas que esse não é o método mais sério, mais honesto e mais eficiente se desejamos conhecer o poeta e a poesia. O método biográfico de Sainte-Beuve foi a esse respeito uma espécie de introdução à crítica moderna. Antes dele, o eruditismo já havia copiosas informações sobre os poetas da antiguidade. Entretanto, uma e outra coisa não conseguiram colocar os problemas da poesia dentro de seus focos reais. Eram ambos os métodos incompletos. A vida do poeta não esclarece per si a poesia; a acumulação estatística de informações sobre a obra representava, por outro lado, mera competição de sabedoria vã.
A crítica moderna de poesia vem tentando estabelecer para si critérios mais positivos. Entre os críticos de manga curta e os críticos de manga comprida vai sem dúvida uma grande diferença, porém, de qualquer forma, ambos procuram equacionar os mistérios e os fatos da poesia. Hoje não apenas os críticos tentam explicar o poeta. O próprio poeta procura se conhece, explicando-se. Podemos ver um Stephan Spender analisando minuciosamente os seus processos de criação sem dizimar a emoção que seus versos nos proporcionam. Podemos em nossos dias buscar na poesia apenas uma excitação emocional. Podemos também busca-la sob a crença de que os mais belos poemas captam os valores essenciais da vida. Permite-se mesmo que alguém encontre nela uma explicação metafísica do homem.
Nenhuma dessas reações diante da poesia foi até agora suficientemente desmentida. O que, entretanto, podemos concluir do estudo atual da poesia, sem prejuízo da nossa maneira particular de encará-la é que o conhecimento do trabalho do poeta é também uma das formas mais sedutoras de conhecimento do espírito. Basta isso para justificar o esforço de empreende-la.

Nem todas as perguntas dirigidas a Manuel Bandeira foram respondidas. Já o sabíamos, e é natural. Começando cronologicamente, pela A cinza das horas, indagamos: Quais os poetas

- Camões, preferido de sempre e até hoje na língua portuguesa, Antonio Nobre, Raimundo Correia e Vicente de Carvalho, Musset, Sully Prudhomme, Herédia, Maesterlinck... Mas há que assinalar como influência a música e os textos de Schubert, tanto que quase compus como epigrafe do livro a frase inicial do lied “Der Leirmann.

Há nas Poesias completas um poema que incluído entre A cinza das horas, não figura nas edições anteriores: “Poema roto” (pg. 13). Manuel Bandeira se explica da seguinte maneira.

- “Poema rôto” – preciso mudar esse título: um desafeto leria “Poema-arrôto – Não entrou na primeira edição porque eu organizei o livro com uma grande preocupação de lhe dar unidade de sentimento e de forma. Por isso exclui os sonetos parnasianos que dei depois em Carnaval e este “Poema rôto” pela circunstância mesma de ser “rôto”.

Há nesse mesmo poema uma referência à Viagem à volta do mundo numa casquinha de noz, e que aparece também no poema “Cabedelo”

Viagem a volta do mundo
Numa casquinha de noz:
Estive em Cabedelo,
O macaco me ofereceu côcos.
Ó maninha, ó maninha,
Tu não estavas comigo!...
- Estavas?...

O poeta diz:


- A viagem à volta do mundo numa casquinha de noz é o título de um licro para crianças, cujos desenhos coloridos encantaram minha infância: creio mesmo que foi a minha primeira impressão, sensação profunda de poesia, o primeiro desejo de evasão do cotidiano.

O soneto “Renúncia”, que fecha A cinza das horas, é cronologicamente o primeiro poema de Manuel Bandeira incluído no livro. O que escreveu antes não foi aproveitado. Escrito em 1906, em Teresópolis, quando o poeta tinha apenas vinte anos, assim ele começa:

Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo pe sem piedade e até riria
De tua inconsolável amargura.

E assim termina:

Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira.

- Fi-lo numa crise de minha doença, com 40 graus de febre, num estado de subdelírio noturno.

A respeito de A cinza das horas foram as de João Ribeiro (O Imparcial, 23 de julho de 1917, artigo sob o título “Poesia noa”), Flexa Ribeiro (A Notícia, rodapé, sob o título “A cinza das horas”), Castro Menezes (artigo na edição vespertina do Jornal do Comércio), Leal de Souza (quase toda uma página da revista Careta), José Oiticica (parte de um artigo não me lembro mais em que jornal) e Américo Facó (nota crítica na revista FonFon).
Até aqui reproduzimos as declarações de Manuel Bandeira sobre A cinza das horas. Sabe-se que o primeiro livro do poeta teria sido os “Poemetos melancólicos”: os senhores França Amado e Companhia, editores de Coimbra, não responderam à carta em que Manuel Bandeira propunha o livro. O poeta estava em Clavadel, na Suiça, e com a guerra de 1914, deixou o sanatório o manuscrito dos “Poemetos melancólicos”, não tendo, mais tarde, conseguido refazê-lo inteiramente.
A cinza das horas foi impressa em 200 exemplares, em 1917. João Ribeiro, antigo professor de Manuel Bandeira no Ginásio Nacional no artigo já referido acima: A cinza das horas, volume, é neste momento um grande livro. De tal arte nos haviam estragado o gosto com o abuso das convenções, dos artifícios e das nigromancias mas esdrúxulas, que esta volta à simplicidade e ao natural atordoamento das luzes multicores, de lanternas nipônicas, reentramos com o poeta no frescor ameno das sombras.

2. Carnaval e O ritmo dissoluto

O Carnaval foi publicado em 1919, e quase todos os poemas que o compõem, foram escritos nos dois anos anteriores. O poeta esclarece uma pergunta nossa:

- O livro não tem unidade e por isso mesmo adotei esse título, porque o carnaval é um divertimento em que todas as fantasias são permitidas. Havia já feitas algumas poesias com referências a personagens do Carnaval: “A canção das lágrimas de Pierrot Branco”, “Arlequinadas”, “Sonho de uma terça-feira gorda”, “Pierrot branco”, “Rodó de Colombina”, “A Rosa”, “A silhueta”. Foram elas sem dúvida que me sugeriram o título. Depois fiz “Bacanal”, o “Pierrot místico”, “Pierrett”, “O descante de Arlequim”, “Poema de uma quarta-feira de cinzas”, e “Epílogo”.

Há no Carnaval alguns sonetos parnasianos, produzidos na época de A cinza das horas, Manuel Bandeira diz:

- Hoje me arrependo de ter incluído no livro os tais sonetos parnasianos. Acho que deveria ter começado por um livro intitulado apenas Poesias, composto de duas partes – Pastiches parnasianos (“A ceia”, “Menipo”, “A morte de Pã” e outras coisas assim) e A cinza das horas.

Para todo mundo, provavelmente, o poema “Os sapos” deveria ter nascida da intenção de satirizar o parnasianismo. Mas não. Não foi a sátira o seu primeiro motivo.

- “Os sapos” nasceram da vontade de aproveitar poeticamente um achado folclórico - o bate-boca da saparia: “Meu pai foi à guerra! – Não foi! Foi! – Não foi!”

“Verdes mares”, datado de 1908, não figura em A cinza das horas. O motivo da exclusão de “Poema roto”, isto é, não foram aproveitado para que o livro de estréia do poeta apresentasse uma unidade de forma e de sentimento.
Assim começa o poema “RImancete”:

À dona de seu encanto
À bem-amada pudica.
Por quem se desvela tanto,
Por quem tanto se dedica
Olhos lavados em pranto,
O seu amante suplica:
O que me darás donzela,
Por preço do meu amor?

- Dou-te os meus olhos (disse ela)
Os meus olhos sim senhor...

“Rimancete”, explica-nos o autor, é influência de Eugênio de Castro, outro preferido do tempo de A cinza das horas, que me esqueci de mencionar. E quanto ao poema “Toante”:

- As rimas toantes não me foram sugeridas pela poesia espanhola que eu desconhecia então, mas por Charles de Guérin, que li muito por volta de 1907. Um dos grandes preferidos do tempo do Carnaval: Lenau. E mais Apollinaire. Na música: Schumann.

A respeito do Carnaval, o poeta nos diz finalmente que críticos se ocuparam do livro:

- Sobre esse livro escreveram João Ribeiro ( O Imparcial, 15/12/1919), Alceu Amoroso Lima “Um precursor, (O Jornal, 7/6/1920), Oiticica. Ribeiro Couto, que conheci pouco antes de publicar o livro. Quem mais? Não me lembro. Lembro-me que mandei um exemplar à Revista do Brasil ( o diretor era o Lobato). Na resenha dos livros novos saíram umas quatro linhas, dizendo mais ou menos isto: “O Sr. Manuel Bandeira abre o seu livro com este verso: Quero cantar, dizer asneiras. Pois conseguiu plenamente o que queria”. Nunca soube quem foi o autor desse comentário.

Passamos em seguida a O ritmo dissoluto.

- A maioria dos poemas do livro estão escritos numa forma que ainda não é o verso livro 100%. Há neles ainda um certo senso métrico, em ritmos como que desmanchados, dissolvidos (dissolutos). Daí o título.

Em referência especial, o poeta comenta o poema “Carinho triste”;

A tua boca ingênua e triste
E voluptuosa, que eu saberia fazer
Sorrir em meio dos pesares chorar em meio das alegrias.

A tua boca ingênua e triste
É dele quando ele bem quer.

- O poema é de 1912 e a forma me foi sugerida por uns poemas de Guy Charles Cros, que li no Mercure de France e outros do poeta inglês Mac Fiona Load. Não o inclui em A cinza das horas por discrição.

Sobre o poema “Gêsso” faz Manuel Bandeira essa confissão:

-Os três primeiros versos de “Gêsso” foram o problema de expressão mais difícil que encontrei em toda a minha vida de poesia: levei mais de dez anos para achar a solução definitiva:

Eis o poema:
Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as linhas muito puras, -
Mal sugeria a imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem.
Impregnaram-me de minha humanidade irônica de tiso.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos ,
{recompuz a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente
{da pátina...
Hoje este gêssozinho comercial
É tocante e vive, e me fêz agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

É curioso notar nas Poesias completas o grande número de poemas datadas de Petrópolis e Teresópolis. Citaremos ao acaso “As estradas”, “Sob o céu todo estrelado”, “Meninos carvoeiros”, “Noturno da mosela” “Noite morta” e, mais recentemente, “Ubiquidade”, “Piscina”, “Peregrinação”, “Eu vi uma rosa”, “Neologismo”, etc. O poeta conta o seguinte:

- O isolamento fora do Rio, fora das minhas preocupações habituais sempre foi para mim um estado propício à poesia. Eis o motivo de tantos poemas datados de Petrópolis e Teresópolis.

Sobre dois objetos que aparecem em sua poesia (o crucifixo de marfim e a estátua de gesso);

- Eles existem realmente. O crucifixo pertenceu à minha mãe e espero morrer abraçado com ele, como morreram minha mãe, meu pai e minha irmã.

Sobre o poema “Berimbau” adianta Manuel Bandeira:

- É a minha impressão da Amazônia que eu nunca vi. Intitulei o poema “Berimbau” por causa da monotonia do seu ritmo.

Finalmente falando sobre os críticos de O ritmo dissoluto arremata Manuel Bandeira:

- É dos meus livros aquele sobre o qual mais têm divergido os críticos. Se até Libertinagem, inclusive, é o que Otávio de Faria declarou ter-lhe agradado mais, a Adolfo Casais Monteiro produz certo mal-estar, aparece-lhe “como uma interrupção da poesia – ressalvadas as exceções de alguns poemas – entre duas fases, entre dois momentos de criação”. A mim me parece eu é não interrupção mas transição da poesia entre dois momentos. Transição para quê? Para um clima poético, onde enfim cheguei, tanto no verso livro como nos versos metrificados e rimados, do ponto de vista da forma, e na expressão das muitas idéias e sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade dos movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, e por isso chamei Libertinagem

3. Libertinagem

Libertinagem é o quarto livro de Manuel Bandeira, o mais decisivo na evolução de sua poesia. O poeta nos diz:

- Por esse tempo eu já tinha tomado contato com a poesia moderna da Itália e da França mediante as conversas com Ribeiro Couto, Mário de Andrade, Sergio Buarque de Holanda, já muito sabidos numa e noutra. E um pouco mais tarde Gilberto Freyre me iniciou nos ingleses e norte-americanos: Robert e Elizabeth Browning, Amy Lowell e os imagistas. Mas a influência preponderante continuou sendo a de Apollinaire, a que se juntou a de Mário de Andrade. Esta me pareceu tão visível, tão indiscreta, que eu não pensei em aproveitar certos poemas, que no entanto são reconhecidos como mais autenticamente meus: “Não sei dançar”, “Pensão familiar”, “Mulheres”. É que então eu ainda tinha vergonha das influências: não publiquei (e valerá a pena publicar agora?) este poeminha, porque me parecia demasiado “pau-brasil”:

CIDADE DO INTERIOR

O largo
O ribeirão
A matriz
E a poesia dos casarões quadrados
(A luz elétrica é forasteira)

Como nasceu o poema “O cacto”? Nasceu da verídica história de um cacto formidável que havia na Avenida Cruzeiro, hoje João Pessoa, em Petrópolis. Encontramos nas Poesias completas três poemas em francês “Chambre vide”, “Bonheur liryque”, “Chanson des petits esclaves, poemas de qualidade (e banderianos), ao contrário de tantos outros versos que poetas nossos do passado deixaram na língua de França. Manuel Bandeira nos confessa:

- Nunca deliberei fazer versos em françês. Foi um pisaller e já tentei traduzi-los para o português, sem o conseguir.

Na Rua da União, em Recife, Manuel Bandeira brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de Dª Aninha Viegas. Totônio Rodrigues – estou reproduzindo versos de “Evocação do Recife” – era muito velho e botava o pincinê na ponta do nariz. De repente, nos longes da noite, um sino. Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio. Outro contrariava: São José. Totônio Rodrigues achava sempre que era em São José. E em “Profundamente”

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Rosa
Onde estão todos eles?

Quem foi Totônio Rodrigues?

- Velho amigo e creio que parente de meu avô materno, era morador da Rua da União. Grande personagem da minha mitologia infantil.

“Lenda brasileira” é uma história simples:

A moita buliu. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que saiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no chão. Quis puxar o gatilho e não pôde.
- Deus me perdoe!
Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do caçador e começou a comer devagarinho o cano da espingarda.
- Lenda no duro lida em não sei que folclorista, ajeitada por mim ao Bentinho Jararaca da minha invenção.

“Andorinha” é mais simples ainda:

Andorinha lá fora está dizendo:
“Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha , andorinha, minha cantiga é mais triste
“Passei a vida à toa, à toa...”

Igualmente simples é esta explicação:

- O poema foi feito em casa de Ribeiro Couto, em Pouso Alto, sugerido pelo trisso de uma andorinha ao cair da tarde.

Sobre “Noturno da Parada Amorim”, um poema hermético, diz seu autor:

- Esse poema tem uma gênese muito complicada. O ponto de partida foi um fato real. Numa recepção em Bruxelas o violoncelista Emil Simon, meu amigo, já falecido, tocava o concerto de Schumann, quando um coronel do exército belga, que ouvia a música no patamar e estava meio bêbado, ficou transtornado e começou a se agitar, dizendo: - Quels son ces sons celestes que j’entends? Il fault que je fasse quelque chose! O que achou melhor de fazer foi sentar-se na escada e deixar-se escorregar por ela abaixo. Misturei isso com a impressão que sempre me causou de noite uma agência postal fechada, por quê? Sei lá! E certas telefonadas alta madrugada, e os descampados dos subúrbios da Leopoldina...

Um dos poemas mais conhecidos e repetidos de Manuel Bandeira é o “Irene no céu”:

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Paulo bonachão:
- Entra Irene. Você não precisa pedir licença.

- Irene era uma preta que arrumava minha casa do Curvelo. Passava o ano juntando dinheiro para vestir-se de baiana no carnaval, nas vésperas do qual, aliás empenhava umas joiazinhas que possuía. Se já não é viva, deve estar no mesmo no céu.

No discurso com que recebeu Manuel Bandeira na Academia, fala Ribeiro Couto dessa casa da Rua do Curvelo. “um magnífico rés-do-chão acavalado sobre três pisos de morro abaixo”. A casa não tem cozinha, mas conta o vizinho Ribeiro Couto:

"A minha hospedeira, bondosa, portuguesa que sempre se recusava a fornecer comida aos hóspedes, acudiu ao meu apelo: para o Sr. Dr. Bandeira, ali tão sozinho, sem família, e meu amigo com muito gosto. Passamos então nós dois, privilegiadas criaturas, a regalar-nos com a mesa que nos preparava Dª Sara; e será negra ingratidão se um dia em nossas reminiscências escritas, não levantarmos um monumento de glória àquelas peixadas, àquelas galinhas de cabidela, àquelas papas, àqueles bifes de cebolada com que a paciente senhora nos compensava da imensa pena de existir".

Manuel Bandeira refere-se ainda a outros poemas:

- “Noturna da Rua da Lapa” poetisa um caso passado com Jaime Ovalle na Rua Conde Lage, onde ele morou durante alguns anos.
- “Palinódia” é a tentativa frustrada de reconstituir um poema feito em sonho. Ao depertar só me lembrava dos quatro últimos versos:

... não és prima só
Senão prima de prima
Prima-dona de prima
Primeira.

Finalizando sua conversa sobre Libertinagem, fala Manuel Bandeira sobre seu poema talvez mais célebre:

- “Vou-me embora pra Passárgada”, o poema de gestação mais longa. Quando traduzia o meu Xenofonte na classe de grego do Pedro II, li umas linhas sobre uma cidade fundada por Ciro nas montanhas do sul da Pérsia, e a minha imaginação de adolescente começou a trabalhar sobre isso, , criando um refúgio de delícias, um símbolo de evasão “vida besta”. Mais de vinte anos depois, na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de profundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo que eu não fiz na vida por motivo da minha doença, saiu-me do inconsciente esse grito estapafúrdio. Vou-me embora pra Passárgada! Senti que era a primeira célula de um poema. Tentei refazê-lo mas fracassei. Tempos depois, nova crise de desalento desabafado no mesmo grito. Mas desta vez o poema saltou como por encanto.

4 – De Estrela da manhã a Mafuá do malungo

Concluindo nossa reportagem com Manuel Bandeira, ouviremos suas declarações sobre seus últimos livros: Estrela da manhã, Lira dos cinquent’anos, Belo belo, Mafuá do malungo. Sobre “Canção de duas índias” disse o poeta:

- Interpreto o poema como um símbolo de desejos irrealizáveis. Digo interpreto, porque não escrevi os versos com intenção prévia de criar um símbolo. Aliás, todos os meus poemas nasceram assim, sem premeditação, organizando-se em meu subconsciente sem fiscalização da inteligência e um belo dia irrompendo inesperadamente, como um relâmpago.
- “As três mulheres do Sabonete Araxá”: escrito em Teresópolis depois de ver uma venda o conhecido cartaz do sabonete. Uma brincadeira em que, como no caso do anúncio “Rondó de efeito” (está em Mafuá do malungo) pus ironicamente muito de mim.

Manuel Bandeira fala-nos em seguida sobe Jacqueline, a que morreu menina. (“Jacqueline morta era mais bonita do que os anjos”)

- Certa vez, na Livraria Católica, eu e Augusto Frederico Schmidt vimos num livro francês o retrato de uma linda menina morta, Jacqueline. Schmidt, comovido com a fotografia, propôs-me que fizéssemos cada um um poema em intenção daquela Jacqueline.

“Tragédia brasileira” conta a história de Misael, um funcionário da Fazenda, de 63 anos, que tirou Maria Elvira da Lapa, pagou médico, dentista, manicura, mudou de vários lugares por causa dos namorados que a moça arranjava, e acabou matando-a com seis tiros, privado da razão e dos sentidos. Manuel Bandeira conta que o poema, como a história de João Gostoso, foi tirado de uma notícia de jornal. “Os voluntários do norte”, glosa um verso deTobias Barreto: “São os do Norte que vêm!”. Explica-nos Bandeira:

- É mais uma brincadeira que fiz com alguns amigos a propósito da suposta rivalidade entre literatos do Sul e literatos do Norte. Marques Rabelo e Vinicius de Moraes não levaram mal brincadeira. Soube, porém, que Lucio Cardoso se aborreceu com a coisa, o que muito senti, porque sempre tive grande simpatia e admiração pelo autor de Inácio e seria incapaz de escrever nada com intenção de o magoar.

“Conto cruel” faz parte de alguns epigramas curtos de Manuel Bandeira:

A uremia não o deixava dormir. A filha deu uma injeção de sedol
- Papai verá que vai dormir.
O pai aquietou-se e esperou. Dez minutos... Quinze minutos... Vinte minutos... Quem disse que o sono chegava? Então, ele implorou chorando:
- Meu Jesus-Cristinho!
Mas Jesus-Cristinho nem se incomodou.

- “Episódio” – diz Manuel Bandeira - da moléstia a que sucumbiu meu pai. O meu momento de maior revolta contra a ideia de Divindade, de cuja misericórdia duvidei amargamente.

- “Rondó dos cavalinhos”: escrito durante um almoço no restaurante do Hipódromo da Gávea, almoço de despedida a Alfonso Reyes pelos seus amigos. Do meu lugar à mesa eu via os cavalos na pista.
A repeito desse mesmo ´poema, contou-me Pedro Dantas que o poeta escrevera inicialmente num papel os dois primeiros versos:

Os cavalinhos correndo
E nós, cavalões, comendo.

O papel foi entregue a Pedro Dantas, que apenas por fidelidade ao amigo Alfonso Reyes, deixara de ver as corridas àquele dia. No dia seguinte o poema estava todo pronto. Prosseguindo, explica o poeta outro de seus poemas curtos:

- “Nietzcheana”: satirazinha a uma nossa escritora; quase todo o poema está feito com as próprias palavras dela, que eu li numa entrevista dada a um jornal do Rio.

E sobre “Rondó do Palace-Hotel”?;

Lembranças de uma farra de carnaval com Cicero Dias no saguão do Palace-Hotel.
“O amor, a poesia, a viagem”, ainda da Estrela da Manhã, é uma qudra:

Atirei um céu aberto
Na janela do meu bem:
Cai na Lapa – um deserto...
- Pará , capital Belém ...

- O poema foi escrito quando fui forçado a deixar a casa do Curvelo para me meter num apartamentozinho de quarto e banheiro à Rua Morais e Vale. A Lapa é o ponto mais movimentado do Rio. No entanto, como eu estava moralmente deprimido, me parecia deserto. De repente me lembrei dos dez dias que passei em Belém, verdadeiro oásis de calma, détente da minha vida. Essa quadrinha que quase toda gente considera pura tolice, a nossa grande Cecilia Meireles chamou-a “pura lágrima” o que prova que quando há sensibilidade, receptividade poética,por maiores que sejam as elipses mentais, por mais obscura que sejaa parte anedótica,a corrente se estabelece e a comunicação se faz.


Aqui passamos à Lira dos cinquent’anos:

- “Desafio” foi escrito em São Lourenço, onde fiz uma cura da águas e de fato remei no lago.
-“Mozart no céu”: escrito em casa do meu saudoso primo José Cláudio, na ocasião em que ouvia à vitrola certo quarteto de Mozart.
- Em “Parada de Lucas” anotei uma impressão de viagem noturna de um trem para Petrópolis.
O crime a que me refiro foi o estrupo e assassinato de um pequeno jornaleiro ocorrido creio que há mais de quarenta anos.
- “Soneto plagiado de Augusto Frederico Schmidt”: simples restituição ao padrão clássico de um soneto irregular de Schmidt.

Realmente, o soneto de Augusto Frederico Schmidt está em Mar desconhecido, à página 42:


E agora de repente no coração incompreendido
Este sofrimento, esta mágoa, esta agonia.
E agora nos olhos secos esta fonte nascida,
Esta fonte inesperada e irreprimível

No espírito deserto esta presença misteriosa
Na inteligência distraída, esta súbita atenção,
Este sentido das coisas, esta claridade,
Esta consciência nítida de pecados e merecimentos.

Até há pouco o olhar fitava o escuro apenas,
Mas neste instante eu O vejo ao meu lado
E os ouvidos apagados O estão sentindo.

Seu rosto é o meu próprio rosto decerto,
Mas o seu olhar é o de alguém tocado pela graça
E vem dele uma pureza, que não tenho, que perdi.

- “Piscina” é a incompreensão de uma noite de luar junto à piscina de um hotel em Petrópolis.
- “Carta de brasão”: escrito em casa de Jaime Cortesão, depois deter ouvido ler o brasão dos Bandeiras. A descrição das armas me pareceu em si um poema. Transcrevi-o literalmente. Como foi que isso se juntou com nome Candelária? Nem eu mesmo consigo explicar essa mensagem cifrada no meu subconsciente.

Chegamos a Belo belo. Manuel Bandeira nos adianta:

- O livro não está completo. Será a “Lira dos setent’anos” e nas futuras edições das Completas incluirei os poemas que for fazendo. Já tenho uma meia dúzia deles, posteriores à publicação.

O poema “Lutador” teve uma gênese curiosíssima:

- Foi feito durante o sono, com título e tudo; só um ou outro claro da memória tive que encher depois de despertado. É um enigma que tenho que interpretar como qualquer leitor.

Por último, Manuel Bandeira nos fala sobre Mafuá do Malungo, editado por João Cabral de Melo Neto em tiragem limitadíssima de 210 exemplares. Já vimos um escritor que não recebeu o livro, grande leitor e bibliófilo, propor a outro literato a troca de uma edição de Mallarmé por um exemplar de Mafuá do Malungo. Inicialmente, o poeta explica o seu título tão feliz:

- “Mafuá” toda a gente sabe é o nome dado às feiras populares de divertimentos. “Malungo” significa companheiro, camarada, é um africanismo, segundo Cândido de Figueiredo, nome com que reciprocamente se designavam os negros que saíam da África no mesmo navio.
Simultâneamente com o meu livro saiu no México o volume Cortesia de Alfonso Reyes, também versos de circunstancia: só que o poeta mexicano incluiu a mais versos de amigos que dizem respeito à pessoa deke. Num curto prefácio, muito interessante, depois de relembrar a produção no gênero de Marcial, Gôngora, Juana Inés de la Cruz, Mallarmé e Ruben Darío, lamenta Reyes que se tenha perdido o bom costume de tomar a sério - o mejor en broma – os versos sociais, de álbum, de cortesia. E escreve, a seguir, estas palavras que eu gostaria de ter tomado para epígrafe do meu Mafuá.

Desde ahora te digo que quien solo canta em do de pecho, no sabe cantar; que quien sola trata em versos las cosas sublimes, no vive la verdadera vida de la poesia y las letras, sino que las lleva postizas como adorno para las fiestas.

Terminando, fizemos a Manuel Bandeira algumas perguntas de ordem geral: como escreve atualmente; quais seus preferidos; por que gosta das formas fixas. Eis suas respostas:

- Como escrevo atualmente? Como escrevo versos? Como sempre escrevi a partir de O ritmo absoluto: não procurando fazer versos e deixando que a carga de lirismo vá engrossando, até romper a minha habitual inércia, numa necessidade fatal de desabafo.
- Meus poetas preferidos? É muito fácil responder a essa pergunta. Depende da hora, das circunstâncias. No Brasil o poeta com quem sinto maiores afinidades é Carlos Drummond de Andrade. O poeta francês meu preferido é Villon. Português, Camões. Italiano, Dante. Nos outros países não tenho nenhuma predileção marcada: gosto igualmente de muitos. Assim, na Espanha os poetas do Siglo de oro, no romantismo Bécquer, entre os modernos Jorge Guillén, Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez, Lorca, Alberti e outros. Na Inglaterra, entre os românticos Keats, entre os modernos talvez Yeats. Entre os hispano-americanos Ruiz de Alarcón, Inés de la Cruz, Darío, Herrera y Ressig, os cubanos Nicolás Guillén, Florito, Ballagas. O equatoriano Jorge Carrera Andrade, os mexicanos López Valdez, Carlos Pellicer, o colombiano Porfirio Barba Jacob, o argentino José Hernández... Dezenas de outros, mas nenhuma predileção especial.
- Gosto das formas fixas porque elas são padrões estróficos de raro equilíbrio, vivazes, mnemônicos; porque satisfazem o meu gosto pela ordem, de disciplina. Ligou-se a elas, injustamente, a meu ver, um certo parti-pris antiparnasiano. Ora, nas mãos de um grande poeta nunca elas forma exibição de virtuosismo. Basta dizer que quase toda a obra de Villon é de baladas.

Por último perguntamos a Manuel Bandeira que poemas prefere em sua própria obra?

- Isso também é difícil de responder. Assim, de repente posso confessar certo fraco por “Profundamente”, “Noite morta”, “Evocação do Recife”, “Poema tirado de uma notícia de jornal”, “Poemas de finados”, “O último poema”, “Cantiga”, “Momento nun café”, “Maçã”, “Canção da Parade de Lucas”, “Canção de muitas horas”, “Última canção do beco”, “Piscina”, “Eu vi uma rosa”, “Brisa”, “Temas e voltas”, o segundo “Belo-belo”.

 

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