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Grandes entrevistas

 

Orígenes Lessa

Extraído de: BLOCH, Pedro.                    Publicada originalmente na revista Pedro Bloch entrevista.                           Manchete, n° 672, de 06/03/1965

Rio de Janeiro: Bloch Editores,

1989.

 

 

Cobras e jacarés - Das coisas que Orígenes Lessa mais assombro guarda de sua infância estão cobras e jacarés, ligados às figuras do pai (Vicente Themudo Lessa, pastor protestante) e do tio curandeiro. Nascido em Lençóis, São Paulo, a 12 de julho de1903, logo aos três anos seguiu para São Luís do Maranhão, acompanhado da fé de seu pai e da ternura da mamãe Henriqueta Pinheiro Lessa, ali ficando até os nove. Vicente, dado seu ofício, fora parar em Lençóis, vindo de Pernambuco. D. Henriqueta era filha do interior paulista.

Papai - começa Orígenes -, sempre que ia visitar uma cidadezinha qualquer, levava a um dos filhos. A viagem era feita em boi-cavalo ou em casco. Cruzávamos rios infestados de jacarés e papai, para distrair meu pavor de menino, propunha rindo muito: "Vamos ver quem conta mais jacaré?" Transformava meu pânico em competição  esportiva.

Assim era papai. Sua religiosidade, sua fé imensa, fazia com que ocupasse todas as horas, em que não estivesse trabalhando ou estudando, como visitador de doentes e encarcerados. Pois bem. Recordo quando, certo dia, fomos visitar uma família de leprosos. Naquele tempo toda gente estava segura de que bastava tocar num deles e já se ficava doente. Pois papai os abraçava a todos, tomava café em suas xícaras, mantinha ânimo aceso e risonho todo o tempo, consciente de que estava ali com uma missão a cumprir, acima do mal de Hansen, acima de qualquer micróbio.

Tive um bisavô materno curandeiro: Antônio Francisco de Gouveia. Um dia passou por sua cidade um caboclo que, diante das qualidades imensas de meu bisavô,  resolveu lhe passar o dom de curar mordida de cobra, mesmo à distância. Para ser digno desse dom era preciso ser livre (escravo não servia), não recusar socorro mesmo ao maior inimigo e não receber vintém pelo seu trabalho. Pois meu bisavô ficou célebre em todo o interior.

A vaquinha triste - Curava e assombrava gente. Certo dia, diante de uma cura verdadeiramente miraculosa, um fazendeiro observou: "Será que a cobra era venenosa­ mesmo?" Bastou dizer isto e a mocinha atingida caiu doente, outra vez. Novos passes, novas ordens e a melhora veio. Quando o fazendeiro duvidou da segunda vez e a menina se viu mal novamente, o velho Gouveia implorou: "Pelo amor de Deus, não duvide mais de minha palavra, se não eu perco o dom!" E pôs, uma vez mais, a doentinha de pé.

Certa vez um ricaço quis pagar a meu bisavô, de qualquer maneira, e, contrari­ando-o, resolveu mandar-lhe uma vaca. O velho ficou num acabrunhamento tremendo e, dias depois, apareceu pedindo: "O senhor me mande buscar a bichi­nha, por favor, que ela está morrendo de tristeza! Só vendo!" E obrigou o homenzi­nho a aceitar o presente de volta.

Multidão - Papai tinha Themudo no nome, particípio passado arcaico do verbo temer, com um h pra enfeitar. Sua bondade não tinha limites. Basta dizer que transformava todo mundo em parente próximo. Um sujeito podia ser primo de um primo de um primo de um primo de centésimo grau. Pois papai conseguia descobrir parentesco em gente que, de forma alguma, tinha algo a ver com a família. E recebia todo o mundo em casa como quem comemorava a volta do filho pródigo, Deus sabe com que sacrifício, ele que educava seis filhos, com seus parcos recursos. Tinha tal escrúpulo que, no dia em que foi ensinar Grego num colégio de São Luís, renunciou ao que recebia como pastor.

No dia da morte de papai a multidão que acompanhou o enterro foi realmente incalculável. Um forasteiro quis saber de um dos que choravam a morte do Reverendo:

- Era homem muito importante?

E o outro, sempre soluçando: "Não. Era só muito bom."

Estudos - Voltando a São Paulo, em 1912, Orígenes foi para a Escola Paroquial e, depois, para o Colégio Evangélico. Em seu período do Rio, mais  tarde, começou o curso da Faculdade de Filosofia.

Quando a gente completava cinco anos de idade, papai ensinava a ler. Eu pensava que aprender a ler era passe de mágica. Era só meu pai me chamar, abrir a cartilha, e pronto. A coisa não se deu assim, embora eu dissesse aos meus compa­nheiros  de brinquedo que "ler é a coisa mais boba do mundo". Eu queria aprender depressa para poder escrever os palavrões que os outros meninos rabiscavam nos muros da cidade.

Papai queria que eu seguisse o sacerdócio. Cheguei a cursar dois anos, mas deixei, depois, porque não sentia vocação. Em menino tinha passado uma fase muito sofrida, pois ficava desesperado diante das pessoas que eu sabia que iam diretamente pro inferno. O ter abandonado a carreira foi o desgosto maior que dei a meu pai, mas ele nunca me censurou por isso, nunca tocou no assunto, nunca reprovou minha decisão.

Sempre fui muito vadio, mas sempre quis ser escritor. No começo, creio não ter manifestado a menor vocação. Meu irmão Vicente, sim. (Somos seis irmãos.) Mais de um deles tinha muito mais jeito para as letras do que eu. Mas, mesmo pequeno, eu tinha a mania da coisa. Queria aquilo e sabia que queria.

Tempos difíceis - Deixando o seminário, em 1924, vim para o Rio. Para não agravar o desgosto de meu pai, não lhe confessei as durezas que ia passando: Fui professor de Ginástica, dava aulas particulares, batia às portas do jornalismo. Em 1928 quis ir para a Escola Dramática. (Sempre gostei de teatro.) No começo imaginei que ia ser poeta, mas um amigo me salvou dessa condição, mostrando a minha total ausência de vocação. Concedia, entretanto, que meus contos tinham virtudes, originalidade. Devo muito ao conselho franco desse companheiro. Os versos eram medíocres mesmo.

Durante o meu período mais difícil do Rio, não escrevia nem recebia notícias de meu pai. Como podia eu explicar a ele que meu endereço era um banco do Passeio Público, sem número?

A carreira - Um dos mais extraordinários contistas brasileiros, Orígenes Lessa, desde seu primeiro livro, O Escritor Proibido (1929), até o volume que vai ser lançado agora Nove Mulheres (José Alvaro Editor), percorreu uma carreira múltipla e brilhante. Considerado vulto exponencial da publicidade, realizou neste terreno, campanhas memoráveis. Na literatura marcou êxito ímpar com O feijão e o sonho (já com 80.000 exemplares vendidos, prêmio Antônio Alcântara Machado, 1938), em que nos conta a luta de um escritor entre o pão cotidiano e as aspirações castigantes; Garçom, garçonette, garçonniere (1930), A cidade que o diabo esqueceu (1931); Passa-três (1935); O joguete (1937); João Simões continua, Rua sem sol, Zona Sul, Balbino, homem do mar, são outros êxitos de sua carreira de autor. Orígenes Lessa participou da revolução paulista e esteve preso na Ilha Grande. Não há de ser nada (1932) e Ilha Grande (1933) contam esta sua experiência. Relembra o fato pitoresco de, ao defrontar-se com um velho amigo, terem se abraçado carinhosamente e, só depois das manifestações de alegria, terem percebido que eram oficialmente inimigos, que estavam em campos opostos. De seu primeiro casa­mento com a cronista Elsie Lessa tem um filho, Ivã, homem de letras de invulgar talento. Com sua esposa atual, Edite e seu filho Rubens, habita a Avenida Atlântica, no Rio, e passa os fins de semana em seu sítio, em Paraíba do Sul, onde planta, sonha e escreve.

O.K. América é o título do livro de entrevistas que produziu no período que passou nos Estados Unidos (1942-43), no escritório do Coordenador dos Assuntos Interamericanos.

Da senhora Roosevelt guardei o sorriso autêntico, aquela capacidade de provocar uma admiração quente e cordial. Ainda ouço suas palavras: "Temos que erguer um mundo de paz e trabalho em que todos possam viver."

Pearl Buck tinha e tem uma capacidade infinita de sentir o povo, a massa: "Eu me interesso, fundamentalmente, pelo povo, pela gente humilde, pelas multidões anônimas “

Conheci Charles Laughton, que achava que um artista só deve visitar um país quando em condições de saudar o povo em seu próprio idioma.

De Sinc1air Lewis são estas palavras: "O dever do escritor, nesta hora de guerra é continuar escrevendo, continuar sendo ele mesmo. No dia ou na hora, seja ela qual for, em que alguém vier ditar ao escritor o que deve escrever, não haverá mais literatura." E recordou, a propósito de outro assunto, o comerciante ig­norante do Brasil que imprimiu 50.000 folhetos de propaganda de seu produto ... em espanhol, para remetê-los ate nos.

Carlitos entusiasmou muito Orígenes. Tinha o grande ator 53 anos quando Lessa  o entrevistou. Chaplin manifestava grande estusiasmo pela América Latina: “É pelo indivíduo que eu me bato. Já estou muito velho. Tenho 53 anos. Não posso ir dando, mas o que estiver em mim fazer pela vitória... eu farei. Falando, escrevendo ou filmando. Falo como um homem que chegou à idade em que tem o direito de dizer o que pensa. Mas falo como uma criança: apenas o que sinto. Rebelo-me contra a centralização, o monopólio, a onipotência, a violência. O maior perigo que estamos atravessando é a perda da individualidade. é por isso que o nazismo tem que ser destruído. A produção em massa me aterra justamente porque destrói o artífice, o artista."

Carlitos - explica Orígenes - me induziu ao furto. Imagine que não resisti e levei, como souvenir, um dos pentes do grande artista."

A figura de Langston Hughes impressionou vivamente o autor de Omelete em Bombaim e Desintegração da morte. Aqueles versos penetram todas as consciências: Eu também canto a América. / Sou o irmão mais escuro. / Eles me mandam comer na cozinha. / Quando chega visita. / Mas eu rio / E como bem / E vou crescendo. / Amanhã eu me sentarei à mesa, / Quando houver visita. / Ninguém se atreverá / A me dizer: / "Vai comer na cozinha, / Dessa vez, / Além disso / Eles verão como sou belo / E ficarão envergonhados. / Eu, também, sou América." Em seus protestos Hughes ressalvava: "Entretanto, a América é uma terra onde, apesar de todos os seus defeitos, eu posso escrever isto."

Trovadores - Estudioso dos trovadores, dos cantadores nordestinos, Orígenes prepara um volume em que focaliza esses gênios populares. Viveu tempos e tempos percorrendo feiras do Nordeste, conhecendo e conversando com aquela gente toda, que faz literatura de cordel e cerâmica popular. Contei até o episódio em  que Orígenes, apaixonado por uns galinhos de barro carregados por um menino, a  caminho de uma feira, propôs comprar: "Quanto é? - "Cinco mil-réis - fez o menino. - Quantos quer?". Orígenes não hesita: "Todos." O menino fecha a cara: "Todos não. Se eu vender tudo pro senhor, o que é que eu vou fazer na feira:"

Dos homens que mais me impressionaram posso citar o Manuel Camilo dos Santos, de Sergipe, autor de folhetos. Este homem, um dia, resolveu vender poesia. Pois bem. Não sabia ler e pedia a todo mundo que lesse os versos para que pudesse decorá-Ios. De tanto fingir que estava lendo começou a comparar as palavras e acabou lendo de verdade. A necessidade de encomendar folhetos em Pernambuco fez com que ele, por imitação, aprendesse a escrever. "Acabei descobrindo como se escreve, doutor!"

Repentistas - Entre os autores de repentes mais curiosos está aquele que, debatendo com outro o valor de Rui Barbosa e Castro Alves, se saiu com:  Bahia ao céu e diz / Com toda tua altivez / A Castro Alves que volte / Da viagem que ele fez / Que a velha Bahia dele / Precisa dele outra vez."

O contista - Os contos de Lessa encerram uma piedade amarga, uma solidariedade humilde, uma ironia sofrida, uma infinita pena da condição humana. Em Madrugada temos a história daquele cão que vai acompanhando um homem e, de repente, quando surge um bêbedo, passa a segui-lo, a acompanhar seus passes. Poucas vezes se focalizou com tanta simplicidade e beleza o problema da solidão. Em Sete Garfos surge um devorador que passa a capitalizar a fome. Em Triângulo temos o conhecimento de um viajante com uma criatura casada, num ônibus, e são devorados pelo amor. Ela acaba se suicidando. Com remorsos de ter destruído um lar, o amante resolve visitar o marido da morta, para lhe transmitir a imagem de pureza que guardava dela. Mas na hora, diante daquele homem que superara a tragédia à sua maneira, não tem coragem de abrir a boca.

Desintegração da morte – É das histórias mais curiosas do escritor. Um homem conseguiu desintegrar a morte. Em vez de alegre, uma vez alcançado aquilo, se sente triste, estranho. De repente é invadido por uma série de pessoas que resolvem destruí-lo e, vendo-o escapar à saraivada de balas, verificam que já é tarde, que o invento já se deu. São eles: um vendedor de seguros, o dono de uma cadeia de cemitérios, um fabricante de armamentos, etc ... Gente que vive da morte e que precisa convencer aquele homem de que deve adiar o seu projeto para que eles possam modificar suas atividades ou passá-las adiante. Para surpresa geral, desastres tremendos vão ocorrendo sem que ninguém morra ... Orígenes Lessa conduz sua narrativa com aquela fluidez, segurança e originalidade que lhe são próprias.

Paraíba do Sul - De meu sítio em Paraíba, deixe-me contar a você o episódio daquele homem que plantou  abóbora e viu que, subitamente, ia fazer um pé-de-meia, pois toneladas iam se multiplicando diante de seus olhos comovidos. Uma enxurrada, entretanto, carregou umas e estragou outras abóboras. Muita gente, longe dali, ia colhendo as abóboras levadas pelas águas e ganhando dinheiro com sua venda. “Você não foi reclamar suas abóboras?" - indaguei. E o caboclo, abaixando a cabeça: - "Não posso, doutor. Quem deu foi Deus!"

Orígenes Lessa já visitou quase todo este mundo de Deus. Mas quando, ao voltar do México, alguém lhe  perguntou se tinha falado com Cantinflas ou Diego Rivera, ouviu: "Não, mas falei com mendigos, gente de rua e prostitutas. "Seus episódios de viagem estão repletos de seres humildes, de vida colorida. É por isso que seus contos traduzem tanta humanidade, pulso tomado na alma de cada um. Nove mulheres, seu próximo volume, tem desde a prostituta até a que perdeu o filho com todas as dores, com a tristeza de todos .

“Graças a Zeus!" - Em matéria de publicidade Orígenes Lessa é considerado um dos papas desta fabulosa atividade. Costuma contar duas coisas pitorescas. Um dia, trabalhando com uma agência em São Paulo, um americano lhe pediu que fizesse um anúncio de pasta de dentes. Redigiu-o em cinco minutos e mostrou. O homenzinho leu e aconselhou: "Você pode melhorar, medite, estude. Não abuse de sua facilidade" Orígenes entrou para a sua sala e pediu à secretária que datilografasse­; aquele mesmo texto em papel azul. Passadas algumas horas, foi ao americano, que olhou o anúncio e esparramou um sorriso imenso, comentando feliz: "Mas isso é outra  coisa! Eu não disse? Não abuse da sua facilidade!"

De outra feita havia um encalhe de 40.000 piteiras, que ninguém queria comprar. Era uma espécie de piteira de filtro, marca Zeus. O nosso homem não hesitou e se saiu com: "Graças a Zeus, posso fumar sem receio!" e "Agora o cigarro não me faz mal, graças a Zeus!" Numa semana, não houve mais jeito de descobrir uma única piteira na praça. Esgotara-se o estoque.

Em anúncio - me explica Orígenes - palavra não adianta. O bom anúncio é o que vende. É o fato. Você tem que vir de encontro a uma necessidade do comprador, ainda que você mesmo tenha que criar essa necessidade ou despertar uma necessidade que ele nem sabia que tinha.

A biblioteca - Uma das coisas que mais comoveram o contista foi a inauguração de uma biblioteca com seu nome, em Lençóis. É a biblioteca que tem mais livros autografados do Brasil. No dia da inauguração, embora a cidade toda estivesse em festa, com show na rua e gente famosa cantando, mais de vinte crianças ficaram dentro de uma  sala, folheando deslumbradas os livros. Dias depois, de casa em casa, foram pedir mais volumes para a leitura de todos.

Origens Lessa, realizado, escritor de envergadura, argumentista de cinema, homem de publicidade, capaz de -  ao mesmo tempo - multiplicar energias para uma tarefa mais, sempre em estado de ebulição e de cigarro com filtro, dono de uma ternura que espalha envergonhado, de bondade acanhada, de emoção pronta; antena de fala de esquina, sintonizador de gente que passa, recorda comovido o menino de Lençóis nos outros meninos que buscam luz na Biblioteca Orígenes Lessa, da Praça Comendador João Zillo de sua cidade natal. Mesmo quando está em Amsterdam ou Nova Iorque, o coração de Orígenes navega no riacho de Lençóis e nos rios do Maranhão, revivendo o tempo em que contava jacarés em companhia do pai Themudo e de Deus. No início, no íntimo, ele desprezaria todas as glórias que o mundo lhe deu, sua fama e sua vitória, para ser como o pai, o Reverendo, um simples visitador de doentes e encarcerados, ou como o bisavô, um curado de mordida de cobra. Tal como o pai, Orígenes não ambiciona ser um homem impor­tante, Quer apenas, ser um homem bom, um digno filho de Lençóis, cidadezinha no interior de   São Paulo. E é Lençóis que Orígenes busca em seus fins-de-semana, em Paraíba do Sul, quando o homenzinho humilde, modesto como trovador nordestino, lhe vem dizer que não pode reclamar as abóboras que a enxurrada levou a toda gente:

“Foi Deus quem deu!"

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