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Grandes Entrevistas

Vladimir Nabokov

 

Entrevista conduzida por Herbert Gold para a Paris Review, nº 40, outono de 1967, republicada em Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Tradução de Luiza Helena Martins Correia)

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Vladimir Nabokov mora com sua esposa Vera no Montreux-Palace Hotel, em Montreux, Suíça, um dos locais preferidos da aristocracia russa do final do século. Ocupam alguns quartos conjugados que, assim como suas casas nos Estados Unidos, dão a impressão de serem locais provisórios, de exílio. Um dos quartos é reservado às visitas do filho Dmitri; no outro, encontram-se as coisas mais variadas - edições de Lolita em turco e japonês, inúmeros livros, equipamentos esportivos, uma bandeira americana.

Nabokov levanta-se cedo todos os dias para trabalhar. Escreve em fichas de arquivo, que pouco a pouco vão sendo copiadas, aumentadas e reorganizadas, até se transformarem em mais um de seus romances. Na temporada de verão, em Montreux, gosta de aproveitar o sol e nadar em um pequeno lago, no par­que próximo ao hotel. Aos sessenta e oito anos, sua aparência é grave, pausada e imponente. Sua esposa, uma colaboradora dedicada, está sempre vigilante, respondendo cartas, tomando conta dos negócios, e até mesmo interrompendo-o, quando sente que ele está dizendo algo inadequado. É uma mulher excepcional­mente bonita, elegante e equilibrada. Os dois ainda viajam freqüentemente para caçar borboletas; suas excursões, no entanto, limitam-se a pequenas distâncias, uma vez que o casal não gosta de viajar de avião.

Algumas perguntas haviam sido enviadas antecipadamente. Ao chegar ao Montreux-Palace, o entrevistador encontrou um envelope esperando por ele ­as perguntas haviam sido reorganizadas e transformadas em uma entrevista. Perguntas e respostas adicionais foram incluídas posteriormente, antes da pu­blicação na edição verão/outono 1967 da Paris Review. Conforme solicitação do próprio escritor, todas as respostas foram mantidas exatamente como ele as escreveu. Nabokov afirma ter que escrever as respostas por causa da pouca familiaridade que tem com a língua inglesa, argumento coerente com seu estilo sério-cômico de constante provocação. Ele fala com um forte sotaque de Cambridge, com nuances eventuais de pronúncia russa. O inglês falado não apresenta, na verdade, nenhum problema para ele. Citações malfeitas, no entanto, são uma ameaça real. Não há dúvida de que Nabokov sente como uma trágica perda a conspiração da história que o privou de sua terra natal, e de ter que, já na metade da vida, realizar sua obra em uma língua que não a de seus primeiros. Contudo, suas constantes desculpas pelo pouco domínio da língua inglesa encaixam-se perfeitamente no contexto de bricadeiras sérias de Nabokov: ele fala a sério, ele não fala a sério, ele sofre pela perda, fica furioso se alguém critica seu estilo, finge ser apenas um estrangeiro solitário, ele é absolutamente americano.

 

Nabokov está preparando um longo romance que explora os mistérios e ambigüidades do tempo. Ao falar do livro, sua voz e olhar expressam o enleio  de um jovem poeta ansioso por se entregar à sua tarefa.

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- Bom-dia. Permita que eu lhe faça quarenta e poucas perguntas.

 

Bom-dia. Estou pronto.

- Seu senso de imoralidade no relacionamento entre Humbert Humbert e Lolita é bastante forte. Em Hollyood e Nova York, entretanto, é comum o relacionamento entre homens de quarenta anos e garotas não muito mais velhas do que Lollita. Eles se casam sem provocar, com isso, qualquer escândalo público em especial, e sim com a aceitação pública.

 

Não, não é o meu senso de imoralidade no relacionamento entre Humbert Humbert-Lolita que é forte; é o senso de Humbert. Ele se incomoda, eu não. Eu não dou a mínima para a moralidade pública, dos Estados Unidos ou de qualquer outro lugar. E, de qualquer forma, o fato de homens de quarenta se casarem com garotas adolescentes ou com pouco mais de vinte anos não tem qualquer relação com Lolita. Humbert gostava de crianças  - não de “garotas“. Ninfetas são meninas-moças, não starlets ou "meninas de programa”. Lolita tinha doze anos, não dezoito, quando Humbert a encontrou. Você dever estar lembrado de que no momento em que ela completa catorze anos, refere-se a ela como sua  "amante decadente".

 

- Um crítico (Pryce-Jones) disse a seu respeito: “ninguém tem sentimentos como os dele". Isso faz algum sentido para o senhor? Ou significa que o senhor conhece seus sentimentos melhor do que os outros conhecem os deles? Ou que se descobriu em outros níveis? Ou simplesmente que a sua história é única?

 

Não me lembro desse artigo. Mas, se um crítico faz uma afirmação desse tipo, com certeza isso deve significar que ele estudou os sentimentos de, literalmente, milhões de pessoas, em pelo menos três países, antes de  chegar a essa conclusão. Neste caso, então sou realmente uma avis rara. Se, por outro lado, ele se limitou a questionar membros de sua família ou do clube,  sua declaração não pode ser discutida com seriedade.                        

                     

- Um outro crítico escreveu que os seus "universos são estáticos. Podem se tornar tensos com a obsessão, mas não se desintegram como os universos da realidade cotidiana". O senhor concorda? Existe uma característica estática em sua visão das coisas?

 

"Realidade" de quem? "Cotidiano" de onde? Por sinal, o próprio termo "realidade cotidiana" é totalmente estático, uma vez que pressupõe uma situação permanentemente observável, essencialmente objetiva e universalmente conhecida. Tenho a impressão de que você inventou esse perito em "realidade cotidiana". Nenhum dos dois existe.

 

- Existe, sim (diz o nome do critico). Um outro crítico afirmou que o senhor reduz suas personagens até chegar "ao ponto em que eles se transformam em nulidades de uma farsa cósmica". Eu discordo; Humbert, embora cômico, conserva uma característica comovente e constante - a do artista frustrado.

 

Eu diria outra coisa: Humbert Humbert é um miserável fútil e mau-caráter, que consegue parecer "comovente". Esse adjetivo, em seu sentido real, de fazer brotar lágrimas nos olhos, só pode se aplicar à minha pobre menininha. Além do mais, como é que posso "reduzir" a nulidades etc., personagens que eu mesmo inventei? Podemos diminuir o sujeito de uma biografia, mas não um produto da imaginação.

 

- E. M. Forster fala que suas personagens principais às vezes ganham vida própria e ditam o curso de seus romances. Isso alguma vez constituiu um problema para o senhor, ou tem pleno domínio sobre as personagens?

 

O meu conhecimento das obras de E. M. Forster limita-se a um romance, do qual não gosto. De qualquer forma, não foi ele quem deu início a essa fantasia banal a respeito de personagens que fogem ao controle; isso é mais velho do que o mundo. Se bem que, naturalmente, daria para se sentir solidário com as personagens dele, caso tentassem escapar daquela viagem para a índia, ou onde quer que ele os estivesse levando. Os meus personagens são verdadeiros escravos.

 

- Clarence Brown, de Princeton, apontou semelhanças extraordinárias em suas obras. Ele refere-se ao senhor como "extremamente repetitivo" e diz que, de formas variadas, o senhor está, essencialmente, dizendo a mesma coisa. Ele fala do destino como a "musa de Nabokov". O senhor "se repete" conscientemente, ou, em outras palavras, faz um esforço consciente para criar um senso de unidade em suas obras?

 

Não creio ter lido o ensaio de Clarence Brown, mas ele parece dizer algo interessante. Escritores secundários dão a impressão de serem versáteis porque imitam muitos outros, antigos e contemporâneos. A originalidade artística tem somente a si mesma para imitar.

 

- O senhor vê algum propósito na crítica literária? Tanto em geral como de um modo específico, sobre os seus livros? Alguma vez ela é instrutiva?

O propósito de um crítico é dizer alguma coisa sobre um livro, tenha ele lido ou não. A crítica pode ser instrutiva no sentido de dar ao leitor, inclusive ao autor do livro, algumas informações sobre o crítico, sua inteligência, honestidade, ou ambas.

 

- E a função do editor? Algum editor já lhe ofereceu algum conselho em matéria de literatura?

 

Por "editor" imagino que você queira dizer revisor. Entre esses conheci criaturas brilhantes, de tato e gentileza ilimitados, que discutiriam comigo um ponto e vírgula como se isso fosse uma questão de honra - e que, na realidade, quase sempre é uma questão de arte. Mas também já deparei com alguns velhos imbecis cheios de pompa, que tentavam "dar sugestões" que eu refutava com um estrondoso stet! (termo que anula emendas anteriores feitas no texto).

 

- O senhor é um lepidopterólogo, sempre alfinetando suas vítimas? Nesse caso, a sua risada não as assusta?

Pelo contrário, as reduz ao mesmo estado de entorpecida segu­rança que um inseto experimenta ao mimetizar uma folha seca. Embora não seja, de forma alguma, um ávido leitor de críticas que tratam do meu próprio trabalho, lembro-me de um ensaio escrito por uma jovem que tentava encontrar símbolos entomológicos em minha ficção. O ensaio poderia ter ficado engraçado se ela soubesse alguma coisa sobre lepidópteros. Infelizmente, ela revelou total ignorância, e a confusão de termos que utilizou mostrou-se apenas dissonante e absurda.

- Como o senhor definiria seus distanciamentos do refugiado conhecidos como russos brancos

Bom, historicamente eu também sou um "russo branco", uma vez que todos os russos que abandonaram a Rússia, como o fez minha família nos primeiros anos da tirania bolchevista, por se opor ao regime, eram e continuaram sendo russos brancos, no sentido amplo do termo. Mas esses refugiados encontravam-se divididos em tantos grupos sociais e facções políticas como toda a nação, antes do golpe bolchevista. Eu não me misturo com russos brancos ultra-reacionários (Refere-se ao Cem Negros (Black-Hundred) ou Casacas negras, grupo armado formado por membros da polícia imperial e de organizações monárquicas a fim de combater os movimentos revolucionários e a influência dos movimentos europeus defensores da organização das massas (1879-1881). (N.T.) e não me misturo com os chamados "bolchevizados", ou seja com os “cor-de-rosa” Por outro lado, tenho amigos entre os intelectuais da monarquia constitucional, bem como entre intelectuais socialistas revolucionários. Meu pai era um liberal à antiga, e eu não me importo de ser rotulado como um liberal à antiga, também.

- Como o senhor definiria seu distanciamento da Rússia atual?

Como uma profunda desconfiança do falso abrandamento agora anunciado. Como uma percepção constante da existência de desigualdades irre­paráveis. Como uma total indiferença a tudo que move um patriótico cidadão soviético hoje em dia. Como a imensa satisfação de haver discernido, já em 1918, o caráter meshchantvsko (presunção pequeno-burguesa, caráter filisteu) do leninismo.

 

- Como o senhor considera hoje em dia poetas como Blok, Mandelshtam e outros que escreviam antes de o senhor deixar a Rússia?

 

Li esses poetas quando era garoto, há mais de meio século. Desde então me tornei um apreciador incondicional da lírica de Blok. Seus poemas mais longos são fracos, e o famoso Os doze é pavoroso, conscientemente concebido em um falso tom "primitivista", com um Jesus Cristo em cartolina cor-de-rosa colado no final. Quanto a Mandelshtam, também o sabia de cor, mas ele me oferecia um prazer menos apaixonado. Hoje, pela ótica de um destino trágico, sua poesia parece maior do que realmente é. Noto, por sinal, que muitos professores de literatura ainda colocam esses dois poetas em escolas diferentes. Só há uma escola: a do talento.

 

- Soube que sua obra tem sido lida e atacada na União Soviética. Como o senhor se sentiria a respeito de uma edição soviética de sua obra?

 

Ah, é claro que seria uma coisa boa. Por sinal, as Éditions Victor estão publicando uma reimpressão do original russo de 1935 do Invitation to a beheading, e uma editora de Nova York (Phaedra) está lançando minha tradu­ção de Lolita para o russo. Tenho certeza de que o governo soviético ficará contente em aceitar oficialmente um romance que parece conter uma profecia do regime hitlerista e outro que condena amargamente o sistema norte-ameri­cano de motéis.

 

- O senhor já teve contato com cidadãos soviéticos? De que tipo?

 

Quase não tenho contato com eles, se bem que concordei uma vez, no início dos anos 30 ou no final dos anos 20, em encontrar - por pura curiosidade - um representante da Rússia bolchevista que estava tentando fazer com que artistas e escritores emigrados voltassem ao rebanho. Ele tinha dois nomes, Lebedev alguma coisa, e era autor de um pequeno romance intitulado Chocolate, e pensei que poderia me divertir um pouco com ele. Per­guntei se teria permissão para escrever livremente e se poderia ir embora da Rússia caso não gostasse de lá. Ele disse que eu estaria tão ocupado, gostando tanto de lá, que não teria tempo sequer para sonhar em voltar ao exterior. Eu estaria, disse ele, completamente livre para escolher qualquer um dos muitos temas que a mãe Rússia generosamente permite a seus escritores, tais como fazendas, fábricas, florestas do Faquistão - ah, dezenas de assuntos fascinantes. Respondi que fazendas etc. me deixavam entediado, o que fez com que o meu infeliz sedutor desistisse na hora. Ele teve mais sorte com o compositor Prokofiev.

 

- O senhor se considera americano?

Sim, me considero. Sou tão americano quanto abril no Arizona. A flora, a fauna, o ar dos estados do oeste são meus elos com a Rússia asiática e ártica. Naturalmente, devo muito à língua e à paisagem russas para me sentir emocionalmente envolvido, digamos, no plano espiritual, pela literatura regional norte-americana, danças indígenas ou pumpkin pie; mas sinto um extravasamen­to de orgulho sincero e descompromissado toda vez que apresento meu passa­porte verde, americano, em fronteiras da Europa. Críticas duras a respeito de assuntos americanos fazem com que me sinta ofendido, aborrecido. Na política interna, sou fortemente antisegregacionista. Na política externa, sou definitivamente favorável ao governo. E, na dúvida, sempre sigo o método básico de es­colher a linha de conduta que mais desagrade aos vermelhos e aos Russells.

 

- Existe algum grupo do qual se considere um membro?

 

Na verdade, não. Posso associar mentalmente um bom número de pessoas das quais gosto, mas elas formariam um grupo muito desigual e contraditório se reunidas na vida real, em uma ilha real. Por outro lado, posso dizer que me sinto bastante à vontade na companhia de intelectuais americanos que tenham lido meus livros.

 

- Qual a sua opinião do mundo acadêmico como meio ambiente para o escritor criativo? O senhor poderia falar especificamente das vantagens ou desvantagens de sua época como professor, em Cornell?

 

Uma biblioteca de primeira, cercada por um confortável campus, é um ótimo ambiente para um escritor. Existe, é claro, o problema de se ter que educar os jovens. Lembro-me de uma vez, durante as férias - não foi em Cornell -, quando um aluno entrou na sala de leitura com um rádio. Ele se saiu bem dizendo que (1) estava ouvindo música "clásica"; (2) estava ouvindo "baixinho"; e (3) "não havia muitos leitores no verão". Eu estava lá, a multidão de um único homem.

 

- Como o senhor descreveria o seu relacionamento com a comunidade literária contemporânea? Com Edmund Wilson, Mary McCarthy, e os editores de seus livros e de revistas?

 

A única vez em que trabalhei em colaboração com um escritor foi quando traduzi, com Edmund Wilson, Mozart e Salieri [de Púchkin] para a New Republic, há vinte e cinco anos; uma recordação um tanto paradoxal diante do fato de ele ter se portado de forma tão ridícula no ano passado, quando teve a ousadia de por em dúvida a minha compreensão de Eugene Onegin. Já Mary McCarthy foi, recentemente, muito gentil comigo, também na New Republic, embora ache que ela tenha derramado um pouco do próprio conhaque no fogo pálido do pudim de Kinbote. (Charles Kinbote, personagem de Fogo pálido (1962). (N. T.)   Prefiro não falar, nesta entrevista, sobre meu relacionamento com Girodias, mas respondi, na Evergreen, àquele seu artigo medíocre publicado na antologia da Olympia. Por outro lado, mantenho um ótimo relacionamento com meus editores. A minha amizade sincera com Catharine White e Bill Maxwell, do The New Yorker, é algo que nem o mais arrogante dos escritores consegue evocar sem confessar gratidão e contentamento.

 

- O senhor poderia falar alguma coisa sobre os seus hábitos de trabalho? Escreve de acordo com um esquema prévio? Pula de uma parte para outra, ou segue direto, do início até o final?

O esquema vem antes da coisa. Preencho os claros da palavra cruzada, em qualquer parte, com toda liberdade. Anoto os trechos em fichas, até terminar o romance. Meu esquema é flexível, mas sou bastante exigente quanto a meus instrumentos de trabalho: fichas de cartolina com pauta e lápis bem apontados, macios, com borracha.

 

- Existe algum quadro específico do mundo que gostaria de retratar? O passado é bastante presente para o senhor, mesmo em um romance do "futuro" como Bend sinister. O senhor é "saudosista"? Em que época preferiria viver?

 

Em um futuro de aviões silenciosos e aerociclos graciosos, com céus prateados, sem nuvens, e um sistema universal de túneis acolchoados por onde transitariam os caminhões, como loucos. Quanto ao passado, não me im­portaria em recuperar, de vários recantos do tempo e do espaço, certos confor­tos perdidos, tais como calças folgadas e banheiras enormes e fundas.

 

- Olha, o senhor não tem que responder a todas as minhas perguntas do tipo Kinbote.

 

Não teria graça, agora, começar a fugir das mais difíceis. Vamos prosseguir.

 

- Além de escrever romances, o que o senhor mais gosta, ou gostaria, de fazer?

 

Ah, caçar borboletas, é claro, e estudá-las. Os prazeres e recompensas da inspiração literária não são nada, comparados ao êxtase de se descobrir um novo órgão ao microscópio, ou uma espécie desconhecida na encosta de uma montanha no Irã ou no Peru. É bastante provável que, se não tivesse ocorrido a revolução na Rússia, eu me dedicasse inteiramente à lepidopterologia e jamais viesse a escrever romances.

 

- O que é mais característico como poshlust na escrita contemporânea? O senhor se sente tentado pelo pecado do poshlust? Alguma vez cedeu à tentação?

 

Poshlust, ou em uma melhor transliteração, poshlost, (De posh, elegante, afetado + lust, desejo, luxúria; ou lost, perdido)(N.E) apresenta diversas nuances, e é evidente que eu não as descrevi com clareza suficiente em meu livro sobre Gogol, se você acha que pode perguntar a uma pessoa se ela se sente tentada pelo poshlost. Pieguice da pior espécie, chavões vulgares, filistinismo de todo tipo, imitações de imitações, pretensas profundidades, pseudoliteratura desonesta, cretina e grosseira - são alguns exemplos óbvios. Agora, se alguém deseja apontar o poshlost na escrita contemporânea, deve procurá-lo no simbolismo freudiano, em mitologias devoradas pelas traças, na crítica social, em mensagens humanísticas, nas alegorias políticas, na preocupação excessiva com relação à classe social ou raça e nas generalidades jornalísticas que todos nós conhecemos. O poshlost manifesta-se em conceitos como "Os Es­tados Unidos não são melhores do que a Rússia" ou "A culpa da Alemanha é compartilhada por todos nós". As flores do poshlost desabrocham em frases e palavras do tipo "a hora da verdade", "carisma", "existencial" (usada a sério), "diálogo" (quando usada em relação a conversações políticas entre nações) e "linguagem" (usada em relação a um borra-tintas). Relacionar num só fôlego Auschwitz, Hiroshima e Vietnã é incitar o poshlost. Pertencer a um clube altamente selecionado (que ostenta um único nome judeu - o do tesoureiro) é poshlost burguês. Críticas picaretas são quase sempre poshlost, mas este também pode se esconder em certos ensaios pseudo-intelectualizados. O poshlost afirma que o sr. Branco (No original, “Mr. Blank”, sugere blank verse vrso branco) (N.T) é um grande poeta e o sr. Blefe, um grande romancista. Um dos principais focos do poshlost sempre foi as mostras de artes; lá o poshlost é produzido por supostos escultores que trabalham com as ferramentas dos demolidores, construindo bonecos cretinos com virabrequim de aço inoxidável, estéreos zen, albatrozes de poliestireno, objetos trouvés em vasos sanitários, balas de canhão, balas enlatadas. Lá admiramos os padrões dos murais de gabinetti feitos pelos assim denominados artistas abstratos: surrealismo freudiano, manchas rorejantes e borrões no melhor estilo Rorschach - tudo tão repetitivo quanto os acadêmicos Manhãs de setembro e Floristas florentinas de meio século atrás. A relação é enorme, e, é claro, todo mundo tem a sua bête noire, sua feiúra predileta, nessa relação. A minha é aquela propaganda de uma companhia aérea: uma gentilíssima garota servindo o lanche a um jovem casal - a mulher olhando extasiada o canapé de pepino, ele admirando a aeromoça com um olhar de peixe morto. E, é lógico, Morte em Veneza. Vê como a coisa é variada?

 

- Existe algum escritor contemporâneo que o senhor acompanhe com grande satisfação?

 

Há vários, mas eu não vou dizer o nome de nenhum deles. Satisfação anônima não dói em ninguém.

 

- E existe algum que o senhor acompanhe a duras penas?

 

Não. Muitos autores reconhecidos simplesmente não existem para mim. São nomes gravados em túmulos vazios, seus livros são imitações sem vida, são perfeitas nulidades no que diz respeito ao meu gosto para leitura. Brecht, Faulkner, Camus e muitos outros não significam absolutamente nada para mim, e tenho que me esforçar muito para não acreditar na existência de uma conspiração contra a minha inteligência quando vejo que são aceitos calmamente como "literatura maior", seja por críticos como que por companheiros de ofício. As copulações de Lady Chatterley ou as bobagens pretensiosas de Ezra Pound, uma tapeação só. Reparei que, em algumas casas, ele substituiu o sr. Schweitzer nas estantes.

 

- Como admirador de Borges e Joyce, o senhor também parece compartilhar o prazer que eles têm em provocar o leitor com truques, trocadilhos e enigmas. Como acha que deve ser a relação entre leitor e autor?

 

Não me recordo de nenhum trocadilho em Borges, mas só li traduções de seus livros. De qualquer forma, seus pequenos contos delicados e seus minotauros em miniatura não têm nada em comum com os engenhos enormes de Joyce. Também não encontro muitos enigmas no mais lúcido dos romances, Ulysses. Por outro lado, eu detesto Punnegans wake, (“Pun”, em inglês ,significa trocadilho, jogo lingüístico, recurso extremamente utilizado em Finnegans wake), onde um tumor maligno formado pelo tecido de palavras fantasiosas mal chega a recuperar a lamentável jovialidade do folclore e a alegoria fácil, fácil até demais.

 

- O que aprendeu com Joyce?

 

Nada.

 

- Ora, convenhamos ...

 

James Joyce não me influenciou de forma alguma. Meu primeiro e breve contato, com Ulysses foi por volta de 1920 na Universidade de Cambridge, quando um amigo, Peter Mrozovski, que trouxera um exemplar de Paris, leu para mim, enquanto caminhava para cima e para baixo em meus aposentos, uma ou duas passagens picantes do monólogo de Molly, que, cá entre nós, é o capítulo mais fraco do livro. Só quinze anos mais tarde, quando já estava bem formado como escritor, e relutava em aprender ou desaprender qualquer coisa, li Ulysses, e gostei imensamente. Já em relação a Finnegans wake, eu sou indiferente, como o sou a toda literatura regional escrita em dialeto ­ mesmo que seja o dialeto de um gênio.

 

- O senhor não está preparando um livro sobre James Joyce?

 

Mas não só sobre ele. O que pretendo fazer é publicar alguns ensaios de vinte páginas sobre várias obras - Ulysses, Madame Bovary, Metamorfose de Kafka, Dom Quixote e outros -, todos com base em minhas aulas em Cornell e Harvard. Lembro-me com prazer de ter despedaçado Dom Quixote, um livro antiquado, sórdido e grosseiro, diante de seiscentos alunos no anfiteatro, para horror e constrangimento de alguns de meus colegas mais conservadores.

 

- E sobre outras influências? Púchkin?

De certo modo - não mais do que, digamos. Tolstoi ou Turgueniêv foram influenciados pelo brio e pela pureza da arte de Púchkin.

- E Gogol?  

Eu fui cuidadoso o bastante para não aprender nada com ele. Como professor, ele é ambíguo e perigoso. Em seu pior aspecto, no que escreveu sobre a Ucrânia, é um escritor sem qualquer valor ou mérito; no melhor, é incomparável, inimitável.

- Mais alguém?

H. G. Wells, um grande artista, era o meu escritor favorito quando eu era garoto. The Passionate friends, Ann Veronica, The time machine, The country of the blind, todas essas histórias são muito melhores do que qual­quer coisa de Bennett ou Conrad, ou, na verdade, do que qualquer coisa que pudesse ser produzida por qualquer contemporâneo de Wells. Suas idéias de reforma social podem, seguramente, ser ignoradas, é claro; mas seus romances e ficções são excelentes. Uma noite, em nossa casa em São Petersburgo, houve um momento horrível durante o jantar quando Zinaida Vengerov, tradutora de Wells, disse a ele, com um meneio: "Sabe, de suas obras, a minha favorita é The lost world".(O nome correto é The war of the worlds) (N.T) No que meu pai rebateu, sem qualquer hesitação: "Ela está querendo dizer a guerra que os marcianos perderam".

 

- O senhor aprendeu alguma coisa com seus alunos em Cornell? A experiência foi puramente de ordem financeira? Lecionar ensinou-lhe alguma coisa?

O meu método de ensino incluía o contato autêntico com meus alunos. Na melhor das hipóteses, eles regurgitavam alguns pedaços do meu cérebro nos exames. Cada aula que eu dava havia sido cuidadosa, carinhosamente escrita à mão e depois datilografada, e eu lia o texto pausadamente na sala de aula, detendo-me, às vezes, para reescrever uma sentença ou para repetir um parágrafo - um estímulo mnemônico que, entretanto, raramente provocava qualquer alteração no ritmo dos pulsos que tudo anotavam. Acolhia com alegria os poucos peritos em taquigrafia presentes às minhas aulas, com a esperança de que eles viessem a comunicar a informação armazenada aos seus colegas menos privilegiados. Tentei, em vão, substituir minhas apresentações por fitas gravadas a serem transmitidas pela rádio da faculdade. Por outro lado, sentia uma satisfação enorme com os risos e sinais de apreciação nesse ou naquele  ponto mais animado da aula. A minha maior recompensa vem daqueles alunos que, dez ou quinze anos mais tarde, me escrevem dizendo que agora compreen­dem o que eu queria deles quando dizia para visualizar o penteado mal traduzido de Emma Bovary ou a disposição dos quartos na casa dos Samsa, ou os dois homossexuais em Ana Karenina. Não sei se aprendi alguma coisa lecionan­do, mas sei que acumulei uma quantidade inestimável de informações valiosas, analisando algumas dezenas de romances para meus alunos. O meu salário, como você sabe, não era bem o que se poderia chamar de principesco.

 

- Tem alguma coisa que o senhor gostaria de dizer sobre a colaboração de sua esposa?

 

Ela atuou como conselheira e juíza na produção da minha primeira ficção, no início dos anos 20. Leio para ela todos os meus contos e romances pelo menos duas vezes; e ela relê a todos quando os datilografa, ao corrigir provas e ao conferir as traduções em diversas línguas. Um dia, em 1950, em Ithaca, Nova York, ela foi responsável por me deter e pedir um pouco mais de tempo e reflexão quando eu, atacado por dúvidas e dificuldades técnicas, levava os primeiros capítulos de Lolita para o incinerador.

 

- Como é sua relação com as traduções de seus livros?

 

No caso das línguas que Vera e eu conhecemos ou podemos ler - inglês, russo, francês e, até certo ponto, alemão e italiano -, o sistema adotado é a verificação minuciosa de cada sentença. No caso de traduções em japonês ou turco, tento não pensar nos desastres que provavelmente pontilham cada página.

 

- Quais são seus planos de trabalho para o futuro?

 

Estou escrevendo um novo romance, mas sobre isso não posso falar. Outro projeto que venho acalentando por algum tempo é a publicação do roteiro completo de Lolita que fiz para Kubrick. Se bem que, em sua versão, haja empréstimos apenas suficientes para justificar minha posição legal como autor do roteiro; o filme é só um reflexo fraco e sem brilho do filme maravilhoso que imaginei e escrevi cena por cena, durante os seis meses em que trabalhei em Los Angeles. Não quero dizer com isso que o filme de Kubrick seja medío­cre; o filme, à sua moda, é de primeira, mas não é o que eu escrevi. O cinema quase sempre dá um toque de poshlost ao romance, que distorce e vulgariza com sua lente enganosa. Acho que Kubrick evitou esse tipo de falha em sua versão, mas nunca vou entender por que ele não seguiu minhas orientações e meus sonhos. é uma pena; mas, pelo menos, as pessoas poderão ler o meu ro­teiro de Lolita na forma original.

 

- Se o senhor tivesse que escolher um único livro pelo qual seria lembrado, que livro escolheria?

 

O que eu estou escrevendo, ou melhor, pensando em escrever. Na realidade, serei lembrado por Lolita e por minha tradução de Púchkin, Eugene Onegin.

 

- Como escritor, o senhor sente ter alguma falha secreta ou evidente?

 

A falta de um vocabulário natural. Uma coisa estranha para se confessar, mas é verdade. Dos dois instrumentos de que disponho, um - minha língua nativa -, eu não posso mais usar, não só por falta de um público russo, mas também porque o entusiasmo pela aventura da palavra em russo foi morrendo pouco a pouco, depois que me voltei para o inglês em 1940. O meu inglês, o segundo instrumento, que sempre tive, é, no entanto, uma coisa dura, artificial, que pode ser boa, talvez, para descrever um pôr-do-sol ou um inseto, mas que não consegue esconder a pobreza da sintaxe e a escassez de um linguajar doméstico quando preciso do atalho entre o armazém e a loja. E nem sempre se prefere um antigo rolls royce a um jipe comum.

 

- Qual a sua opinião sobre o posicionamento competitivo dos escritores contemporâneos?

 

- Eu já notei que, com relação a isso, nossos críticos profissionais são verdadeiros bookmakers. Quem está no páreo, quem não está, e para onde foram as neves de antanho? (Refere-se a François Villon: “Mais ou sont lês neiges d’antan?) Tudo muito divertido. Fico um pouco sentido por ser deixado de fora. Não conseguem decidir se sou um escritor americano de meia idade ou um velho escritor russo - ou uma anomalia internacional que não tem idade.

- Na sua carreira, qual seu maior arrependimento?

Não ter vindo antes para a América. Eu teria gostado muito de morar em Nova York nos anos 30. Se os meus romances russos fossem traduzidos naquela época, poderiam ter dado um choque e uma boa lição aos entusiastas pró-soviéticos.

 - Existe alguma desvantagem significativa na sua fama atual?

Lolita tem fama, eu não. Eu sou um romancista obscuro, duplamente obscuro, com um nome impronunciável.

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