"Imaginava-se (...) já velho, mas não suficientemente velho para ser inútil; imaginava o médico idoso e entendido que seria nessa altura, com uma enorme colecção de histórias secretas, de tragédias e êxitos. Também teria uma grande colecção de milhares de livros e, claro, um escritório, enorme e lúgubre, ricamente ornamentado com os troféus de uma vida de viagens e ideias (...). Nas prateleiras, livros de medicina e meditações, mas também os livros que agora enchiam o cubículo no telhado da casa de madeira - a poesia do século XVIII que quase o convencera a ser arquiteto paisagista, a sua terceira edição da Jane Austen, e seu Eliot e Lawrence e Wilfred Owen, o conjunto completo das obras de Conrad, a valiosa edição de 1783 de The Village, de Crabbe, o seu Housman, a cópia autografada de The Dance of Death, de Auden. Seria exatamente essa a questão: seria um médico melhor por ter lido literatura. De que forma profunda a sua sensibilidade modificada poderia interpretar o sofrimento humano, a loucura autodestrutiva ou a pura má sorte que põem os homens doentes! O nascimento, a morte e, entre eles, a fragilidade. Ascenção e queda - era essa a missão do médico e também a da literatura. Estava a pensar no romance do século XIX. Uma grande tolerância, uma visão ampla, um coração manifestamente quente e uma cabeça fria; estaria desperto para os monstruosos padrões do destino e para a vã e ridícula negação do inevitável; tomaria o pulso frágil dos doentes, ouviria a sua respiração, sentiria a mão febril começar a arrefecer e refletiria, como só a literatura e a religião podem ensinar, sobre a insignificância e a nobreza da humanidade..."
Fonte: McEwan, Ian. Reparação. São Paulo: Cia. das Letras, 2002
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