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Grandes entrevistas

 

Fabio Lucas

Hoje, 21 de junho de 2006, a Biblioteca Mário de Andrade registra o depoimento do escritor e professor Fábio Lucas, para o projeto de Memória Oral da instituição, iniciativa esta que vem sendo desenvolvida com o objetivo de resgatar a história da Mário de Andrade de uma forma matizada, através de narrativas orais dos seus mais diferentes protagonistas: antigos funcionários, diretores, colaboradores, pesquisadores, artistas e intelectuais. Na direção de captação audiovisual deste registro, Sérgio Teichner e na condução do depoimento, Daisy Perelmutter.


Fábio Lucas: O que nós sabemos hoje do mundo antigo foi pura e simplesmente na memória guardada nos livros. Então toda, o que se chama, “civilização ocidental” só veio até nós por causa dos livros. Então o resto, o que se perdeu, é porque não foi registrado nos livros. Então eu acho que esta nossa civilização, que é muito veloz, ela produz a informação instantânea, de uma velocidade absoluta – nós hoje vemos até a internação dos jogadores de futebol na mesma hora que eles sofrem qualquer problema. Mas não estamos memorizando isso adequadamente. As bibliotecas são um templo da memória da humanidade. E não há exemplo de nenhuma civilização que tenha atingido um nível mais elevado sem a mediação do livro. Sem o livro, nenhuma civilização chega a um ponto ótimo de aspirações de divisão de renda, de oportunidades de trabalho, enfim, de orgulho nacional, se não for através do livro. As outras formas são agradáveis, porque também todo ser humano precisa do seu momento de lazer e seu relaxamento, mas até aí o livro pode ser um bom companheiro também.


Daisy Perelmutter: Eu estava lendo uma matéria agora na Folhinha, no Estadinho, sobre as crianças que frequentam a biblioteca desde cedo com seus pais, e que estabelecem uma relação, que é uma relação de muita intimidade.

FL: E aumenta a afetividade pelo livro e também a sociabilidade, porque o livro é uma forma, também, de a pessoa se associar a outra; que é o autor, que são as personagens, são os versos, os poemas, que vão ilustrar a vida da pessoa, aumenta muito a sociabilidade e aprofunda o conteúdo humanístico das pessoas. Quando nós falamos na barbárie e desejamos combater a barbárie, o lado mais importante é difundir a leitura. A leitura, para mim, deveria ser o programa básico de qualquer grupo político que aspirasse ao poder.

DP: E você é otimista em relação a esses programas de fomento de leitura? O que você acha? Essas ações... Se você puder nos contar algumas iniciativas bemsucedidas...

FL: Há algumas iniciativas que estão em curso no Brasil e que devem ser estimuladas. O problema da leitura no Brasil é um drama cultural, que vem desde o início da nossa constituição como nação. O que foi o composto inicial? O composto inicial foram os índios, que eram oriundos daqui, mas não tinham grafia, eram grupos ágrafos, não tinham o hábito da escrita e nem da leitura; os negros, que vieram subjugados como escravos, também não trouxeram grafia. Eles têm bastante contribuição à cultura brasileira – isso é inegável, e continuam a contribuir – mas eram ágrafos também. E também os escravagistas proibiam a eles de exercitar esse pendor, que é o mais importante da pessoa, para se libertar. Então, se falar em libertar para um escravo, seria contradição, então eles não deram aos escravos condições, meios e possibilidades de cultivar as letras. E o ramo que veio da Europa, que é o português, só a elite é que era letrada, de uma parte; e a outra parte – que eu digo, é do colonizador – porque a outra parte, a parte religiosa, também trazia uma espécie de preconceito contra o pensamento livre. Então a pessoa tinha que se limitar ao pensamento religioso. O pensamento laico estava fora de cogitação, principalmente os jesuitas, que governaram, digamos, a pedagogia no Brasil, até que foram expulsos pelo Marquês de Pombal, no século XVIII, na época do Iluminismo. Então nessa hora foi que também a
língua portuguesa se implantou no Brasil, porque o Marquês de Pombal obrigou o ensino da língua portuguesa. Antes, os jesuitas cuidavam de dois idiomas, que era o latim e a língua geral, que é uma espécie de esperanto que eles usavam para comunicação com os índios. Então eu acho que essa herança de exclusão dos brasileiros de acesso às letras criou um caldo de cultura difícil de ser superado. Tem que ser superado. Hoje, por uma série de circunstâncias, o mercado de trabalho inclui também a alfabetização. Então pessoas sem capacidade de leitura estão sendo recusadas nas oportunidades de emprego. Eu acho que isso favorece, de certa forma, a dilatação do corpo leitor de brasileiros. Além disso, há iniciativas próprias, não só dentro do governo, como fora do governo: ONGs, etc., preocupadas... e pessoas, individualmente. Nós ouvimos, a todo momento, grupos de pessoas que se dirigem às favelas – no Rio, aqui em São Paulo, Belo Horizonte, centros urbanos com grandes problemas de desigualdade – a gente vê muitas pessoas generosas que vão e tentam romper essa barreira, senão aquilo vira um fervedouro do banditismo, porque ali é que as organizações ligadas ao tráfico, à lavagem de dinheiro e a outras delinquências, encontram fácil acesso à pessoas capazes de serem recrutadas. Penso, portanto, que a leitura passa a ser, para nós brasileiros, um princípio de salvação. Salvação em todo sentido: na convivência, na fraternidade, e um processo civilizatório distanciado do critério selvagem que está sendo incrementado também.


DP: Você se lembra de iniciativas tão bem sucedidas, seja na instância pública, ou seja, nessas entidades que são Organizações Não-Governamentais, que são iniciativas que têm...?

FL: O que a gente pode observar é que, apesar do Brasil não ser um país em destaque na área da leitura, mas o próprio Brasil, que era bastante fraco na produção de livros; eu estou dizendo livros de um modo geral, aí entram livros técnicos, livros didáticos, livros religiosos e livros de lazer ou de literatura. A literatura, em todos os países, constitui mais ou menos a produção de 21% da produção geral dos livros. No Brasil talvez até seja menor, porque o Brasil, numa estatística mais recente que eu vi de um grupo que faz isso para a UNESCO1, a América constitui agora o segundo lugar em produção de livros: livros de medicina, de engenharia, etc., técnicos, e livros religiosos, ou livros de auto-ajuda, livros de best sellers, e também de boa literatura. E livros didáticos: o Brasil tem um grande comprador, que é o governo, que distribui livros didáticos para as crianças e as aquisições são de alguns milhões. Então há uma grande batalha, digamos subterrânea, entre os editores, para chegar a esse mercado comprador que é o governo federal.

DP: E você, enquanto você esteve à frente da União Brasileira de Escritores, eu queria que você contasse um pouco como é que foi essa sua experiência, qual o escopo de ação da UBE...


FL: A União Brasileira de Escritores estava, como tudo mais, sob o foco da censura, etc., durante o regime militar. Então, na época da abertura, nós nos reunimos e propusemos uma chapa e lá eu não reivindiquei ser presidente, não – e várias vezes eu recusei, mas insistiram para que eu fosse presidente – então nós fizemos uma chapa de trinta pessoas. Nós fizemos uma chapa e fomos eleitos e depois reeleitos. E com isso eu fui presidente da União Brasileira de Escritores por cinco vezes. E aí, naquela
época da abertura, da luta pelas diretas, toda a UBE estava muito presente. E aqui mesmo, nesse salão aqui fizemos muitas reuniões para alçar a bandeira em sentido de renovação da entidade, e que a entidade fosse mais reivindicadora de direitos do escritor e da liberdade de expressão, porque sem liberdade de expressão não há
escritor. Existem escravos escrevendo às vezes, mas escritor não existe. A liberdade é o ar em que respira o escritor. Então é curioso porque naquela nossa atividade nós nos aproximamos também dos editores, porque os editores naquele tempo tinham um contrato padrão, que era uma coisa incrível, pelo qual o escritor alienava tudo o que tinha, ele dava tudo ao contratante maior, que era o editor. Então naquele tempo nós frequentamos a Câmara Brasileira do Livro, fizemos um acordo e aí adotamos um contrato padrão que fosse mais digno para o escritor. E depois passamos também a motivar o Congresso para que votasse leis mais adequadas para o escritor e todos os criadores, porque não só... a Lei de Direito Autoral abrange um leque enorme de criadores, na área do teatro, docinema, na área da música, da dança, da escultura...


DP: E esse movimento então começou pelos escritores?


FL: É, nós estávamos muito engajados nisso. E tivemos também apoio dos outros setores. Tanto que na Secretaria de Cultura do Estado havia lá um conselho, que era um conselho de assistência ao secretário da cultura. Esse conselho era composto de 16 representações culturais: tinha circo, tinha filatelia, antropólogos, e tinha escritores, e bailarinos, atores, etc. Eram 16 seções. Na minha seção, de literatura – cada seção tinha sete representantes de órgãos diferentes – eu era o representante da UBE naquela ocasião e me elegeram presidente da seção de literatura. Os dezesseis presidentes se reuniram para constituir o conselho e nessa ocasião eu fui eleito o presidente do conselho. Então nós tínhamos muita proximidade com o secretário e as nossas reivindicações foram possíveis. Tanto assim que - foi no governo do Franco Montoro - nós conseguimos realizar o maior congresso de escritores da história do Brasil. Nós reunimos em São Paulo mil e duzentos escritores.


DP: Isso foi em 1985?

FL: É, em 85. Nesse congresso estiveram escritores de todos os estados do Brasil, sem exceção, porque eu fiz questão de ser o mais federativo possível. Nenhum estado ficou sem representação nesse congresso. Também proporcionamos a vinda de escritores da Europa, professores de língua, de literatura...


DP: Isso tudo foi financiado pelo Estado, é isso?


FL: Estado. ...dos Estados Unidos, da África. Todos os povos que vinham sendo libertados naquela ocasião, esses povos fizeram se representar aqui. Então eu tive um grupo de angolanos, um grupo de Cabo Verde, tive grupos de Moçambique – os de fala portuguesa – todas as nações novas, recém-criadas, se fizeram representar no nosso congresso.

DP: Onde que foi o congresso?


FL: O congresso foi no teatro ali na... que é teatro até hoje, do Estado, ali na Rui Barbosa.


DP: Sérgio Cardoso.


FL: É, Sérgio Cardoso.


DP: Tem o registro desse...?


FL: Tem. Nós temos os anais a serem publicados, mas até hoje não conseguimos. Pedimos muitas vezes à Imprensa Oficial, mas ela não quis bancar. E a Secretaria, nem sonhar!


DP: E isso tem em que, tem em cassete, fitas cassete desse evento, ou nem isso?

FL: Não, não. São... porque eram várias mesas e cada secretário fazia um relatório e a cada componente de mesa eu pedi que levasse textos escritos. Para te dar um exemplo, estava lá Fernando Henrique numa das mesas, Fernando Henrique Cardoso. Noutra mesa estava o Weffort, e assim sucessivamente. O Florestan Fernandes estava noutra mesa. Naquela época a nação brasileira estava muito politizada, porque estava
saindo de uma ditadura, então as reivindicações eram muito altas naquele tempo, e tal. Foi possível fazer. Tanto que nosso congresso terminou no dia da morte do Tancredo Neves, dia 21 de Abril. Mas, quando abrimos o congresso, no domingo anterior, quem solicitou para vir abrir e falar pela primeira vez à nação como presidente da república, foi o presidente Sarney - a primeira vez que ele falou ao Brasil foi no congresso dos escritores, aqui.


DP: E quais eram as pautas que estavam em discussão nesse congresso?


FL: Eram temas muito ligados à liberdade de expressão, ligados à formação de grupos de estudo da literatura brasileira, grupos de estudo relativos à convivência com a sociedade brasileira, ao ensino... Nós reivindicávamos muito a volta às humanidades, ao ensino, porque o governo militar tinha exaurido as universidades das humanidades em favor de um projeto que tornava a universidade uma espécie de anexo das indústrias. A universidade era destinada a preparar mão–de–obra qualificada para a indústria, nada mais do que isso. Então, esse nome “universidade” até nem deveria existir, porque universidade significa universalidade do pensamento. O entrecruzamento de pesquisas, de ideias, etc. Mas o projeto que os militares desenvolveram era de
tornar a universidade única e exclusivamente preparadora de mão–de–obra especializada para a indústria brasileira que, enquanto isso, estava destruindo a natureza brasileira sem nenhuma fiscalização: os rios morreram, as florestas acabaram... Foi por aí.

DP: E depois desse encontro em 85 não teve nada com este poder de agregação?

FL: Tivemos, mas também o dia seguinte foi pobre porque nós fizemos o primeiro congresso de escritores do Mercosul aqui em São Paulo. Isso junto à Secretaria de Cultura do Município.

DP: Já que você falou sobre a Secretaria Municipal de Cultura, quer dizer, o projeto original do Departamento de Cultura, cunhado pelo Mário de Andrade - você que acompanhou várias gestões, acho que com mais atenção, com mais acuidade desde a década de 1960 - eu acredito - o que você considera desses... se houve muita descontinuidade, se um pouco, aquele espírito “andradeano” que estava balizando a ação da...?

FL: É, ele foi um pioneiro em muitos aspectos, por isso o nome dele aqui é muito bem posto.


DP: Você acha que é pertinente?


FL: Ele desenvolveu o comércio da literatura. É o maior missivista, o maior escritor de
cartas da história do Brasil. Eu já fiz até um livro sobre essas cartas do Mário de Andrade e naquela ocasião já havia 26 livros já editados de cartas dele. E continuaram a ser editados. Eu mesmo estou envolvido agora na edição de dois livros de cartas a Mário de Andrade, e com as respostas. Um deles é pela Academia Paulista de Letras, em associação com a Academia rio-grandense-do-norte de Letras. É a correspondência entre Câmara Cascudo e Mário de Andrade.

DP: E toda a documentação, eu achei que estivesse toda centralizada no IEB3, ou não?

FL: Está no IEB. Mas agora está no IEB porque as do Mário estavam com a família, e a da família estava aqui no IEB, porque é o que o Mário recebia. Agora ambas vão ficar disponíveis.
Há um rapaz que vai traduzir as cartas, porque eram manuscritas e é preciso ter toda uma técnica, porque as pessoas às vezes não escrevem tão nitidamente como se fosse datilografado ou impresso, e há a pessoa para traduzir e fazer umas notas para ajudar o leitor. Mas é uma coletânea que tem muita importância, porque ambos discutiam justamente a cultura brasileira, na parte do folclore, na parte da herança cultural... Tudo isso está muito bem tratado nessa correspondência.

DP: E com relação às instituições culturais, enfim, as instituições culturais municipais, você acha que a Biblioteca, que fez parte, originalmente, do Departamento de Cultura,você acha que ela esteve sempre afinada com esses propósitos?


FL: É, eu acho que não só aqui, mas no resto do Brasil, a coisa é assim: por exemplo, a Biblioteca Estadual de Belo Horizonte, essa aqui... As pessoas, funcionários mais dedicados é que tem tocado as bibliotecas para a frente, porque o governo – o governo eu digo o poder executivo e o legislativo – têm feito ouvidos moucos, não ouvem os apelos para salvar a biblioteca, melhorar a biblioteca, dar salários condignos, e ao mesmo tempo contratar pessoal estritamente dedicado ao problema do livro, e ao
problema do acesso do público aos livros. É preciso incrementar mais ainda. Eu tenho da Biblioteca Municipal, da Biblioteca Mário de Andrade, eu tenho uma lembrança também positiva e negativa, porque eu sou frequentador da Biblioteca e sei das riquezas que tem aqui. Eu acho que, tirando a Biblioteca que está no Rio de Janeiro – a Biblioteca Nacional –, não há outra que se compare a esta em matéria de acervo e de raridades de obras que estão aí. Mas falta muito: o edifício – eu mencionei aqui a carta do Antônio Ermírio de Moraes, “vamos salvar a Biblioteca” – porque realmente é preciso um investimento muito profundo aqui para restabelecer a dignidade da literatura na cultura de São Paulo e na cultura do Brasil. É engraçado que na época da abertura, nós tivemos aqui uma reunião – e eu me lembro muito – em que veio o Gilberto Freyre, e eu era o coordenador da mesa. Depois que ele falou, havia milhares e milhares de estudantes, isto daqui estava superlotado, não havia uma cadeira vaga, e as pessoas em pé, ou sentadas no chão, ou onde podia.

DP: Isto foi em 1981, 80, ou antes, 79?

FL: Foi na época da abertura.

DP: Porque eu tenho escutado algumas fitas da Semana do Escritor.

FL: Foi no início da década de oitenta. Ele veio aqui e foi recebido com um calor muito grande, e depois que ele falou eu comecei a receber as perguntas, algumas provocativas, e outras de grande ternura para ele. E ele ia respondendo a medida em que eu recebia os bilhetes que eram apanhados, os bilhetes enviados pelo público. E em determinado momento, eu falei: “Professor, aqui estamos com uma questão, mas não é uma pergunta, é uma declaração de amor”. Aí ele falou assim: “Leia”. Aí eu falei: “Não, o senhor mesmo então lê”. Aí ele pegou e leu. Foi outro delírio, naquela ocasião.

DP: E como foi esse momento, do ponto de vista dos escritores, esse momento desta transição?

FL: Bom, os escritores estavam mais bem organizados do que estão hoje. Porque todo o Brasil estava atento a reivindicações, aquela coisa toda, depois desmobilizou um pouco.

DP: Mas o fato dos anos todos da ditadura não pulverizaram demais os grupos sociais?


FL: É, mas a abertura favoreceu a nossa atividade. Esse congresso que nós realizamos seria impossível em outra ocasião. Esse congresso era, digamos, paralelo a outro que houve em São Paulo em 45, nos términos da ditadura. Quando abriu depois da ditadura Vargas, fizeram um congresso aqui em São Paulo em Janeiro de 45.


DP: Que acho que foi aqui, não foi? Na Biblioteca?

FL: Eu tenho a impressão que sim, foi em Janeiro de 45. O congresso reunia mais advogados do que escritores, sabe, na participação daquela luta contra a ditadura, e tudo – e o Carlos Lacerda era um dos líderes que estava aqui – mas o organizador do congresso era uma instituição da qual nós fomos continuadores, que era a ABDE, a Associação Brasileira de Escritores. Essa associação agiu muito no Brasil, e inclusive essa batalha por direitos do escritor, direitos autorais, foi sustentada muito tempo por essa associação e aqui havia um ramo. A União Brasileira de Escritores na verdade nasceu depois que o governo Dutra cancelou o registro do Partido Comunista, e a Associação Brasileira de Escritores era praticamente dominada pelos comunistas. Então ficaram todos na clandestinidade. Ficou um grupo aqui em São Paulo, e havia uma Associação de Escritores de São Paulo, dirigida pelo Paulo Duarte, e a outra era dirigida pelo Afonso Schmidt. Um dia os escritores falaram: “Olha, nós somos tão poucos, e somos tão separados, porque é que a gente não faz uma união?”. Aí fizeram a União Brasileira de Escritores. O grupo da antiga ABDE se uniu à Associação Paulista de Escritores e formou a União Brasileira de Escritores, e a União foi se multiplicando em outros estados, também, da mesma forma.

DP: E hoje é a instituição que melhor representa, que tem maior representatividade?


FL: É, porque tem as Academias, mas as Academias não são instituições políticas propriamente ditas, e nem se destinam à defesa do escritor, defende mais a língua portuguesa. A Brasileira, como a Paulista, como a Mineira, que são as que eu conheço,são estatutariamente designadas para defender a língua portuguesa e conservar alíngua portuguesa. E tem um lado, assim, só podem ser acadêmicos quarenta pessoas. A nossa União Brasileira de Escritores é aberta a qualquer escritor, de modo que no momento nós temos no nosso fichário três mil e trezentos escritores registrados. Então, é outro tipo de organização de escritores. E agora estamos organizando um congresso brasileiro, que está com a Lei de Incentivo. Acho que nós vamos conseguir organizar um congresso de escritores. Possivelmente, para dezembro deste ano vamos trazer gente do país inteiro, e mais uma mesa vai discutir a integração da América do Sul, também de escritores.


DP: E quais você acha que são as questões que hoje mobilizam mais os escritores, em relação às questões que mobilizavam os escritores no início da década de oitenta?

FL: Pois é, ainda agora nós temos, por exemplo, o problema da leitura. Nós queremos nos associar não só ao magistério, aos professores de primeiro e segundo grau, principalmente, porque entendemos que, para fazer um grupo forte de eleitores no Brasil, a única forma é começar no ensino fundamental. Quando a pessoa se habitua a ler, não só por obrigação, mas por um prazer, ele não larga mais a leitura. E aí é preciso, portanto, que o ensino seja adequado para as pessoas se iniciarem nessa aventura da leitura.

DP: E como os escritores participariam deste processo?

FL: Pois é, nós vamos estabelecer uma mesa em que vamos convidar escritores e pedagogos, pessoas da área do ensino, porque o Brasil, em muitos aspectos, é uma pirâmide invertida. Cuidou-se sempre da universidade porque a elite precisava formar doutores, mas a base ficou deserta em muitos aspectos. O processo de alfabetização brasileira, hoje, ainda é muito precário, e nós passamos vergonha perante outras nações quando somos contrapostos a alunos de nossos vizinhos. Veja você, há pouco tempo eu vi uma estatística de horas de ensino na América, e o Brasil só tem competido em baixa taxa de carga horária, com o Haiti. Quer dizer, nós estamos piores do que o Paraguai! Nós desprezamos muito os nossos vizinhos, nós estamos piores do que a Bolívia no número de horas que a criança tem no seu ensino fundamental. E também a UNESCO faz verificações anuais ou periódicas do aproveitamento dos estudantes nas escolas e o Brasil sempre está muito mal colocado. Aquela questão de pôr aluno brasileiro para ler e entender o que está lendo, o Brasil está lá numa rabeira muito grande. Isso tudo seria por que o brasileiro não é inteligente? Ao contrário! Não! É porque aqueles que venceram a barreira da leitura, muitos estão brilhando de uma forma incrível. Basta dizer este ano faz cinquenta anos do Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Na Europa fizeram uma lista dos cem livros do século XX mais importantes, cem livros - isso foi em 154 nações - o único brasileiro que entrou foi o Guimarães Rosa, mas entrou um brasileiro.

DP: Qual foi o número um desta lista? Quem é o número um?


FL: Não, eles não fizeram.

DP: Ah, sim, sem uma colocação.

FL: Eles fizeram os cem livros mais importantes do século XX. Esse questionário foi distribuído para jornalistas culturais, escritores e pessoas ligadas à cultura. Então os livros foram reunidos num conjunto de cem. E destes, o que foi lembrado do Brasil, foi o Grande Sertão: Veredas, que está fazendo cinquenta anos agora. E então se nós entramos numa lista dessas é porque encontraram méritos nesta obra, que acho que muitos países não alcançaram. Então não é a questão do Brasil não ter fornecimentos para estar entre os países mais importantes, falta uma política de educação sistemática e uma política de leitura. E sempre há pessoas metidas nisto, mesmo dentro do governo eu tenho notado que há pessoas muito preocupadas. E mesmo antes, anteriormente, durante a ditadura, o Paulo Freire mesmo teve uma certa importância naquela coisa de alfabetização de adultos e numa metodologia que até foi imitada por outros países, então é um ponto a mais do Brasil - é ter uma pessoa que se tornou notória no mundo, de um modo geral, pelo método que ele introduziu para a alfabetização de adultos, e de crianças também.


DP: E Fábio, em relação à Biblioteca, você chegou a comentar que você teve momentos, você tem memórias, que são memórias ambivalentes, memórias felizes e memórias... Eu queria que você nos contasse um pouco, reconstituísse.


FL: Durante a Grande Guerra Mundial e depois da Grande Guerra nós recebemos muitos estrangeiros refugiados e um deles se tornou um dos maiores críticos literários do Brasil, e se tornou o primeiro a criar uma bibliografia crítica da literatura brasileira, que foi o Otto Maria Carpeaux. Pois bem, quando ele faleceu, eu conheci a viuva dele e ela me pediu para que eu arranjasse um lugar para localizar a biblioteca dele. Não é uma grande biblioteca, mas só o nome dele tornava sedutora essa...


DP: Não era grande em termos quantitativos?


FL: É, porque ele na verdade, pelo que consta, ele tinha uma biblioteca na Áustria, ali por volta de 1937, 38, ele tinha uma biblioteca de trinta mil livros. Quando os nazistas entraram na Áustria, em Viena, aí subtraíram toda a sua biblioteca. Então essa é uma história que está ligada aqui à nossa biblioteca: é que entre esses livros estava um exemplar do qual ele conta a história – que é quase anedótica – da primeira edição d’O Processo, de Kafka. Acontece que ele saiu de Viena a Berlim, naquele tempo, para receber os direitos autorais de um editor. Ele encontrou esse editor com a mão na cabeça e falou assim: “Olha, eu fui publicar um livro que o Max Brod me aconselhou a editar, e tinha um autor iniciante aí, e eu fali, porque ninguém comprou um exemplar desse livro”. E estavam lá, montes e montes desse livro, lá, acumulados. “Você pode levar o que você quiser, porque isso depois vai ser cortado em papel”. Então ele pegou um exemplar, que ele tinha começado a ler enquanto ele esperava a audiência com o seu patrão, com o seu editor, e levou um exemplar.Quando os nazistas requisitaram toda a sua biblioteca - ele era amigo de um americano que estava fazendo uma pesquisa sobre a República de Weimar e usava a  biblioteca do Carpeaux. Então esse americano falou assim: “Olha, você faz uma lista dos livros que você acha mais interessantes para o seu uso e eu vou reclamar ao governo alemão, e dizer que eram livros que eu tinha emprestado para você, para ver se eles me devolvem”. Nesse ínterim ele não conseguiu mais viver em Viena e foi para a Bélgica, porque ele estava já em conexão com o Papa e com o governo da Igreja Católica para fugir da Europa. Então ele foi para a Bélgica e esqueceu da biblioteca dele e de tudo, e estava tratando de arranjar um jeito de emigrar. O que acontece? Ele recebe uns pacotes de livros, porque o americano tinha conseguido salvar, e estava esse volume
do Kafka. Ele vem para o Brasil - o Brasil não estava preparado para receber refugiadosde guerra e muito menos intelectuais – eu acho que ele foi para uma fazenda do Paraná, passou muito mal lá, tentou trabalhar em São Paulo, mas não conseguiu e, numa carta que ele escreve ao Tristão de Ataíde – ele escreve em francês, ele não
sabia português ainda – aí o Tristão arranjou para ele colaborar no Correio da Manhã, e o Aurélio Buarque de Holanda traduzia os artigos dele do francês para o português. Depois ele mesmo passou a escrever em português – aliás, eu tenho cartas dele, já em português, etc. – e aí ele, depois, se tornou um grande escritor, em português, como o Paulo Rónai, os dois – o Paulo Rónai veio da Hungria, e ele veio da Áustria. Pois bem, esse exemplar, ele conta a história dos três encontros que ele teve com o Kafka. Uma era a história desse livro. Esse exemplar estava na biblioteca que foi cedida aqui. Acontece que na ocasião em que essa biblioteca foi entregue...


DP: Isso foi quando, Fábio, em que ano? Você fez essa mediação?


FL: Eu sei que era secretário, era o Sábato Magaldi, e o chefe de gabinete dele era o Alexandre Eulálio, já falecido, mas é uma pessoa das mais cultas que eu já conheci. E então, eu tinha contato aqui com a May Negrão, até combinamos de ela mandar encadernar os livros que estavam estragados pelo uso...

DP: E quais eram as exigências da mulher? Tinha algum tipo de exigência em relação ao encaminhamento?


FL: Não, ela queria receber pela compra e nenhuma outra instituição do Brasil estava disposta a comprar.


DP: Não estava?


FL: É, só aqui em São Paulo, essa Biblioteca que pôde abrigar a biblioteca dele. O que isso significou? É que eu tinha solicitado, até que houvesse um salão especial só para a biblioteca do Carpeaux. E o que acontece? Eu não sei, porque eu acho que deve ter faltado recurso e os livros foram classificados em sua classificação universal, então desapareceram: os contos foram para a seção de contos, crônicas para a de crônicas, ensaios para a de ensaios...


DP: Isso quer dizer que a gente não tem a noção desse conjunto?


FL: Não. Eu fiz na ocasião um artigo e aí eu dou algumas peculiaridades dessa biblioteca, porque eu tinha a lista que foi utilizada para – naturalmente foi nomeada uma comissão para avaliar – mas enfim, essa obra única do Kafka, talvez dos poucos exemplares que existem da primeira edição do livro dele, está aqui na seção de Obras Raras. Então essa é fácil localizar, e tão fácil que por duas vezes, uma eu recebi um jornalista, e até um presidente da Tchecoslováquia, e eles ficaram muito curiosos para saber que tinha uma primeira edição do Kafka aqui em São Paulo. Esse é um aspecto, acho que curioso. Outro aspecto curioso dessa Biblioteca é que aqui, antes de ser escritor conhecido, o João Antonio vinha aqui estudar. Ele era um menino pobre, e vinha estudar aqui – ele tinha escrito uns contos, e dava para os amigos avaliarem. O Caio Porfírio Carneiro e a Ilka Brunhilde Laurito eram os dois amigos que ele tinha, e confidentes. Acontece que a casa em que ele morava no subúrbio de São Paulo incendiou-se e ele perdeu o livro que ele tinha escrito. Mas ele tinha dado um manuscrito para o Caio, ainda em rascunho, e a Ilka Brunhilde Laurito tinha outro, então juntando esses dois pedaços, recompôs. E aqui numa sala, ele veio e reescreveu o livro todo, nessa Biblioteca. Então o primeiro livro dele, do João Antônio, que é o mais famoso dele, o título é Malagueta, Perus e Bacanaço foi escrito aqui dentro, foi recomposto aqui.


DP: Incrível, reinventado aqui dentro.


FL: É, reinventado aqui dentro. E há outro aspecto, também, que me liga afetivamente à Biblioteca. Primeiro, várias entregas do Prêmio Juca Pato foram feitas aqui. É sempre um ato festivo da União Brasileira de Escritores junto com a Folha de São Paulo. Tem um busto do Juca Pato, que é uma personagem do Belmonte, que era um ilustrador muito importante na história de São Paulo, e aí, na década de 1930, quando está alto o nazismo, ele fazia uma personagem careca, de óculos – uma espécie de homem da classe média – mas ele dizia que era careca de tanto levar na cabeça. E o Juca Pato era a pessoa que sempre levava a pior nas coisas dele. Era um tipo de uma charge que o Belmonte fazia no jornal aqui. E essa personagem inspira a estatueta que nós damos anualmente; a Folha, juntamente com a União Brasileira de Escritores. Então várias entregas – antigamente era no auditório da UBE, depois que nós saímos daquele lugar onde tinha auditório passou a ser feita aqui, e sempre grandes personagens ganharam esse troféu, principalmente durante a ditadura, a escolha era sempre algumas pessoas que eram contra a ditadura, porque assim elas tinham condições de falar num auditório muito grande.


DP: E você saiu do país quando, Fábio? Você se exilou?


FL: Ah, eu saí do país em 1970 e voltei em 76.

DP: E nesse período você manteve contato com os escritores brasileiros, quer dizer, o teu diálogo permaneceu ainda vivo?


FL: É, por cartas, e etc., embora essas cartas às vezes não chegassem porque eram censuradas. Eu tenho um caso de censura. Por exemplo, eu era da Academia Mineira de Letras, antes de ser daqui de São Paulo. O Juscelino Kubitschek não logrou êxito na Academia Brasileira – perdeu por um voto – então se tornou candidato na Academia Mineira de Letras. E me pediram o voto – eu estava em Portugal naquela ocasião – e eu mandava e nunca chegava. Eu escrevia para o Juscelino - ele mandou para mim um pedido, por telegrama - e eu escrevi dizendo que estava seguindo o voto, mandei e não  chegou. Um dia lá em Portugal eu fui abordado por um jornalista, ele me convidou para almoçar. E eu, sempre saudoso do Brasil, ver um jornalista brasileiro... Era da Manchete, e perguntou se eu podia mandar o voto. Eu falei: “Olha, já mandei, mas eu acho que o Correio não liberou essa correspondência”. Então ele pôs no malote da Manchete e chegou.


DP: Então foi teu voto...


FL: Um. Claro, ele teve acho que a unanimidade dos votos lá em Minas. Mas o meu voto chegou pelo malote da Manchete.


DP: E tua saída do país, como que foi esse processo? Você foi convidado a se retirar, é isso?


FL: Não, mas é um convite porque eu com quatro filhos, mulher, sogra morando comigo, sete pessoas numa casa, e proibido de lecionar, o que é que eu ia fazer? Não tinha como manter a família.


DP: E aí você foi para Portugal?

FL: Na primeira eu fui para os Estados Unidos. Fiquei dois anos, voltei, depois fui... Portugal não dava para ir com a família, porque eu tinha uma bolsa que dava mal e mal para eu sobreviver. Aí fiquei um tempo em Portugal. Tem uma história, porque ainda
havia restos da ditadura Salazar lá, com o Marcelo Caetano. Então tem uma história complicadíssima...


DP: Merece um depoimento à parte!


FL: É quase um livro. Mas deu certo é que, depois da bolsa, eu voltei ao Brasil...


DP: Você permaneceu lecionando lá?


FL: Eu estava com uma bolsa, fazendo uma pesquisa de quatro meses, em Lisboa. Depois eu vim para o Brasil para ver os meus filhos e fui para o Rio Grande do Sul e lá duas pessoas se uniram – uma do estado e outra da união – e me deram chance de dar um curso lá, de dois meses. Então eu fiquei lecionando lá, quase que clandestinamente no Rio Grande do Sul, e sobrevivi lá. Enquanto isso eu estava em contato com Portugal para lecionar, também. Porque houve uma vaga na área de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, no Porto. Mas o diretor do Porto era um homem conservador, ele era complicado, não escrevia uma linha. Eu passava telegrama para ele e ele me convidou, mas era assim, indefinido. Então eu fui, numa aventura assim, “vamos ver no que é que dá”. Porque outras pessoas diziam: “Não, vai dar certo”. Enfim, meu dinheiro acabou, e eu fiquei lá sem, até que de Lisboa eu telefonei para o Arnaldo Saraiva, que depois acabou sendo meu assistente, e o Arnaldo: “Vem, porque as aulas já começaram”. Aí eu fui, e comecei a dar aulas. Dei aula uns três meses sem receber nada, depois recebi tudo. O dinheiro líquido: eles não assinavam nada, naquela ditadura ninguém queria ser responsável.


DP: E quais foram os teus livros, que foram os livros que deflagraram este...

FL: Isso daí era muito misterioso, porque na ocasião eu estava até em Brasília, porque eu estava na Universidade de Minas, e fui convidado a dar um curso de cultura brasileira em Brasília. E em Brasília, naquele tempo, a cultura brasileira era dada num grande espaço que unia todas as humanidades. Então o pessoal de literatura, de psicologia, de direito, etc., todos tinham cultura brasileira. Então eu dava aula para mais de cem pessoas nesse núcleo básico. Eu estava até com entusiasmo, o pessoal me recebeu muito bem, então eu comecei a trabalhar com entusiasmo, quando – naquele ano todo mundo ouvia a Hora do Brasil, que era onde saía o nome dos cassados – e saiu o meu nome numa lista. Aí o hotel onde eu estava virou uma Meca, todo mundo ia para lá para perguntar, alunos, professores e colegas, etc.


DP: Isso foi em...


FL: 1969. Porque o AI-5 foi em 1968, em 69 eu estava em Brasília. Ah, tinha havido o sequestro do embaixador americano e a cidade ficou cercada também. Para sair de lá eu precisei da ajuda de um amigo meu, que era promotor – hoje até é Ministro do Tribunal Eleitoral – e ele conseguiu que eu tivesse um cartão que me desse passagem para sair de Brasília. Só mais uma coisa sobre a Biblioteca: também nós fomos despejados, a União Brasileira de Escritores e não pudemos contratar ninguém, nem advogado, porque nenhuma pessoa do governo estadual, federal ou municipal estava a postos. Tinha morrido o Airton Senna e o Brasil ficou fechado três dias. Aí aproveitaram, o Oficial de Justiça foi à UBE e nos despejou. Então nós nos reunimos aqui. Durante seis meses todas as segundas-feiras a gente se reunia aqui, com a ajuda do pessoal daqui, em uma sala do segundo andar, e a gente então fazia a reunião da UBE, durante seis meses, até arranjarmos outro lugar para ficar. A Biblioteca também nos abrigou nestas circunstâncias de urgência.


DP: A Biblioteca sempre teve essa capacidade de acolher...

FL: Pois é. Então ela está muito na memória dos escritores, e, evidentemente, além do prazer de frequentá-la e buscar livros. Também houve para mim uma vez, um momento decepcionante. Quando eu estive nos Estados Unidos eu fiz amizade com um italiano, que dava aula de Literatura Espanhola do Siglo de Oro. E ele veio me visitar em São Paulo e eu fui mostrar para ele o que nós tínhamos de mais precioso.


DP: O que você mostrou, Fábio?


FL: Ele buscou as edições que havia aqui do Dom Quixote e não tinha nenhuma naquela ocasião. Mas uma pessoa falou: “Não, porque aqui tem uns livros”, e me mostrou lá em cima, realmente havia um monte de livros a serem classificados. Podia ser que tivesse ali um Dom Quixote.


DP: Isso aqui, na Biblioteca? E você, ao mostrar a cidade, isso era na verdade a primeira pergunta que eu ia lhe fazer, você não é de São Paulo, não é? Você é de Minas?


FL: É, mas eu estou aqui há praticamente trinta anos.


DP: Então você chegou em São Paulo na década de 70?


FL: É. Eu cheguei, na verdade, no início de 1977. Em 76 terminou o meu período no exterior. Quando eu estava exilado, e eu já não aguentava mais; eu queria voltar para o Brasil. Aí eu voltei, tentei trabalhar em Belo Horizonte, foi impossível, e aí vim dirigir uma faculdade particular aqui em São Paulo.


DP: Qual faculdade?


FL: Paulistana de Ciências e Letras, lá na Vila Mariana. E dirigi durante uns dez anos, mas nesse intervalo também dei aula na Unicamp, na pós-graduação, e depois na PUC
de Campinas também. E depois foi nesse tempo, logo depois, que eu também dirigi o Instituto Nacional do Livro. Eu fui para Brasília, fiquei lá um ano e meio, mas deixei minha casa fechada aqui, com uma pessoa tomando conta, porque sempre que podia eu vinha a São Paulo, fixei raízes aqui. E depois houve um tempo que eu dei um curso especial nos Estados Unidos, já morando em São Paulo.


DP: E a cidade? Qual foi o impacto da cidade quando você chegou aqui?


FL: Bom, para mim foi muito difícil adaptar. A gente forma um conceito, às vezes errôneo. Achava que São Paulo, como era muito dinâmica, tudo aqui fosse fácil para resolver, não houvesse a burocracia que eu achei aqui, que é pior. Então na universidade é horrível. Eu, que já tinha tido experiência em algumas universidades do Brasil e em algumas americanas - umas seis, duas portuguesas -, eu vi que a pior burocracia era a de São Paulo.


DP: Por quê?


FL: É o estado cartorial. Então você precisa carimbar tudo quanto é documento, você tem que dar dinheiro para um monte de pessoas. Esse estado permanece ainda, o Brasil todo é um estado cartorial. Isso é uma reforma que o Brasil precisa fazer para se modernizar. Não pode é ter uma burocracia tão espalhada, porque aí vem o que o Foucault chama de “os micro-poderes”. O sujeito que é encarregado de bater o carimbo, ele vira poderoso. Então é engraçado porque eu, por exemplo, quando dirigia
a faculdade particular, o ministro Hélio Beltrão, da Desburocratização, emitiu uma... eu não sei como denominar o ato dele, mas era um ato público que tornava desnecessário o reconhecimento de firma, que é uma coisa absurda. O reconhecimento de firma é tão absurdo, porque a única pessoa que pode declarar se essa firma é sua ou não é você. Agora, você paga uma pessoa para dizer a você que a sua firma é sua. É um negócio “kafkiano” nesse aspecto. Então o Hélio Beltrão suprimiu o reconhecimento de firma. E eu assinava, anualmente, mais de uma centena de diplomas, porque havia vários cursos: curso de Psicologia – que era o maior – havia curso de Letras, curso de Ciências, etc. Então eu assinava os diplomas e cada aluno tinha que reconhecer a firma, tinha que ir reconhecer na USP, porque a USP é que era encarregada de fazer o
reconhecimento desses diplomas. Pois quando veio a desburocratização eu falei: “Agora está bom, vai direto na USP”. Eles juntaram os diplomas, um funcionário da USP devolveu tudo e disse que precisaria reconhecer firma. Então a lei do ministro não estava valendo. É o poder, os mini-poderes que o Foucault fala, o poder do burocrata, não é?


DP: E a cidade enquanto, enfim, em termos das ofertas culturais, quais foram as suas primeiras referências importantes? A Biblioteca faz parte desse circuito?


FL: Ah, sim, porque na verdade eu nunca tinha morado em São Paulo, mas eu era colaborador do suplemento d’O Estado de São Paulo, mesmo quando morava em Minas. Havia uma coluna em que toda semana eu publicava um comentário nessa coluna do Suplemento Cultural d’O Estado de São Paulo. Então às vezes eu vinha aqui e recebia - o Estado de São Paulo funcionava aqui perto - eu recebia o meu salário e dava um pulo na Biblioteca. Coisa que eu gostava era a Biblioteca, e visitar os sebos, para ver se tinha obra rara, para gente poder comprar mais barato, mais acessível.


DP: E funcionava? Nesses momentos todos, esses fragmentos de experiências que você teve da Biblioteca, ela teve um funcionamento adequado?


FL: Sim. Olha, eu não posso, definitivamente, dizer nada contra a Biblioteca e contra o funcionalismo, porque todas as pessoas sempre foram muito gentis, a não ser em uma ou outra ocasião em que o tal aspecto burocrático é mais importante do que o aspecto real, que é o acesso à obra.


DP: E teve situações, você viveu situações como essa aqui? Viveu?

FL: É, porque eu tinha que mostrar documento... Pior do que mostrar é deixar o documento. Mostrar, eu não me oponho não, mas deixar o documento, eu acho isso uma violência. Isso já, na época também da ditadura nós fomos, um grupo, para dar uma entrevista na TV Cultura, e aí ordenaram que deixasse o documento e eu falei que não ia deixar. Aí os outros todos - que já até tinham entregue - como o Dalmo Dallari e outros, disseram: “Não, eu quero o meu documento de volta”. Então eu mostrava, mas deixar o documento, eu não deixo. Isso aqui, sempre que a burocracia era mais ou menos cravejada pelos princípios da ditadura, eu me opunha.


DP: E nesse momento as instituições, durante a gestão do Sábato Magaldi - porque ele ainda pegou um momento difícil - como é que essas instituições culturais funcionaram? Tinham certo grau de autonomia? Elas conseguiram realizar projetos relevantes, no seu ponto de vista?


FL: Isso aí eu não posso depor, porque eu não estava por dentro da realização. Mas eu acho que essa Biblioteca, por exemplo, a Dona Maria Helena Milliet, sempre que eu vinha ela me chamava para tomar um café e tudo. Portanto, ela acolhia com um apreço especial porque eu era presidente da União Brasileira de Escritores e formamos amizade, ela sempre se propunha a ajudar a gente, etc. Agora, o que eu acho é que é preciso haver uma reforma geral: precisa contratar pessoas, precisa melhorar o prédio e precisa de situações atraentes para o leitor.


DP: O que seria isso, Fábio? Isso inclusive era uma pergunta que a gente tem colocado.


FL: É... salas confortáveis e espaço para a pessoa anotar; essas coisas todas e, evidentemente, a coleção mais enriquecida, a coleção de livros. Precisa fazer compras,
não se louvar apenas nas doações ou coisas assim; tem que fazer compras, melhorar o acervo. Nós temos um exemplo histórico no Brasil de que a pessoa, querendo, pode fazer o melhor acervo da literatura brasileira, que é o José Mindlin, que parece que ontem foi eleito para a Academia Brasileira. Mas ele tem uma biblioteca de primeiras edições de tudo o que há de precioso no Brasil, que já se publicou, até na cidade. E foi buscando em sebo, em todo lugar, onde fosse. Olha, uma pessoa foi capaz de fazer aquilo, por que é que uma Biblioteca, que já tem um arcabouço inicial, não pode fazer uma coisa igual, ou até melhor? Pode fazer! Agora, eu acho que nós temos é que motivar a Câmara Municipal e os prefeitos e os secretários, principalmente, a fazer isso como ponto de honra: melhorar a Biblioteca, tornar a Biblioteca, senão a melhor, uma das melhores do Brasil, e quem sabe, da América.


DP: E você continua usando biblioteca pública?


FL: Quando eu não tenho acesso a determinados textos, aqui e no Rio.


DP: O que você acha que é o diferencial de ler numa biblioteca ainda hoje, mesmo tendo a sua biblioteca própria?


FL: O livro está na cabeça das pessoas que leem, quase que de uma forma religiosa, então, o templo que você frequenta é uma biblioteca, é quase a religião da leitura, porque aqui está a memória dos principais livros que se produziram no Brasil. Então você entra aqui com o respeito de uma casa de livros.


DP: Você acha que cria uma disposição maior para esse deslocamento que a literatura promove, essa relação com o outro, com a alteridade? Você acha que a Biblioteca permanece ocupando esse lugar?


FL: É. Agora eu acho que ela precisava ter, primeiro, apoio financeiro e técnico maior por parte do governo; segundo, publicidade, é preciso o povo saber que, se ficar aqui, vai ficar muito bem, vai se instruir. E nessa linha de revitalização da Biblioteca, eu acho que esse auditório, por exemplo, deveria ser usado sempre para discutir o problema do livro, o problema da leitura, pegar classes de alunos e trazer para conversar, de todos os graus: ensino fundamental, segundo grau, da universidade, da pós-graduação. Porque tem gente no Brasil que chega à pós-graduação sem ter lido um livro, por mais paradoxal que isso pareça, mas essa é uma verdade. Então é preciso tornar isso importante, porque, sem o livro, nenhuma civilização avançada se concretiza, não há possibilidade.


DP: Você lembra de algum exemplo de pequenas cidades do interior, que você tenha conhecimento como ex-presidente da UBE, de ações de integração, onde a Biblioteca passa a ocupar um lugar importante?


FL: Isso foi quando eu estava no Instituto Nacional do Livro. Eu tinha um projeto de transformar toda biblioteca pública num centro cultural. Porque aí, quando a cidade é pequena, ela tem uns núcleos culturais mínimos, mas são vitais; que tenha, por exemplo, uma banda de música - então em um sábado que a banda toque na biblioteca, torna aquilo alegre. Uma hemeroteca bem organizada, as pessoas que vão consultar jornais, pessoas que muitas vezes são bons leitores, mas não têm dinheiro para assinar um jornal, um livro, então eles são induzidos a ir à biblioteca, onde há um jornal diário para ler. Pode ler o que for, pode ler página de esportes, pode ser página de crimes, mas é importante que a biblioteca seja o referente dela. Então o meu projeto era transformar todas numa espécie de centro cultural em que vários acontecimentos, por exemplo, numa cidade que tem um violinista, que é considerado o maior do local, da região, leve para dar um show ali dentro; um cantor que seja destacado no grupo, ele vai cantar lá. Então a biblioteca fica como um referente de coisa refinada, coisa civilizada. As famílias tomam um banho, mudam a roupa e vão lá para ver um grupo que a professora institui de representação, um pequeno teatro, de leitura ou de declamação, isso tudo pode ser feito: a biblioteca como instrumento de re-socialização do núcleo urbano ou das pequenas cidades. Nas grandes cidades também ainda persistem o que nós chamamos de núcleos culturais independentes: são associações de pessoas que vêm - imigrantes, ou pessoas que constituem um grupo especializado de alguma coisa - então se torna a biblioteca um lugar para reunião, para discussão, etc. Enfim, aquilo é vitalizado, é dinamizado com a frequência de pessoas, com a frequência. Aí a biblioteca fica como o grande centro cultural da cidade ou da região. Eu acho que as bibliotecas todas deveriam passar por um arejamento cultural muito grande e diálogo com as professoras. É claro que nós temos que, primeiro, salvar as professoras da miséria em que elas estão. Segundo: uma reciclagem delas, para que elas também possam conhecer, porque o efeito de inércia, a violência com que elas são tratadas no seu salário, no desrespeito dos alunos, etc., elas se retraem e deixam de se entusiasmar. Você tem que reciclar todo o corpo de professores para eles terem auto-estima elevada e contribuir para construir um Brasil novo, um Brasil que é baseado no trabalho intelectual.


DP: E você tem contato com o público jovem, com jovens leitores?


FL: Quando eu estava na União Brasileira de Escritores, eu passei a frequentar e a ser frequentado pelo grupo da União Metropolitana de Estudantes. Então fizemos alguns trabalhos conjuntos, julgamos concursos literários deles, eles faziam concurso de poemas, por exemplo, e então a entidade se unia a eles para incrementar isso assim.


DP: E você acha que uma mudança na relação da criança e do jovem, hoje, em relação ao livro, você tem uma explosão do mercado editorial para essa faixa, para esse p úblico, para esse nicho. Agora eu me pergunto se há maior familiaridade, maior intimidade com o livro hoje, com relação à tua geração.


FL: O discurso negativo sempre fala que o Brasil está muito atrasado, mas não é tanto assim, porque, considerando o Brasil do passado, hoje o leque de pessoas que lê é muito maior. Vou dar um exemplo: quando Manuel Bandeira fez cinquenta anos, ele já era o poeta mais lido no Brasil. Lido e decorado. Então, Luís Camilo de Oliveira Torres, que era historiador e era jornalista no Rio, resolveu fazer uma “vaquinha” para editar um livro do Manuel Bandeira, porque naquele tempo o escritor financiava o seu próprio livro, quando ele não era comercial. Então ele fez uma “vaquinha”, fez uma edição, se não me engano, do Estrela da Manhã, que é um livro que ele publicou aos cinquenta anos. Deu para publicar 56 exemplares. Isso está nas memórias do Manuel Bandeira. Outro exemplo: o Carlos Drummond de Andrade. Em 1928 ele publicou na Revista Antropofágica aquele poema “Tinha uma pedra no meio do caminho”, e ficou como um lema: quem gostava do modernismo citava aquilo, quem não gostava dizia: “isso é uma besteira”, e citava aquele poema. Depois ele até reuniu num volume todos os artigos a favor e contra que ele recebeu. Pois bem, ele depois se tornou chefe de gabinete do Ministro da Educação, que era o Gustavo Capanema, que fez uma revolução na área
do ensino, da arquitetura e tudo o mais. Deu oportunidade ao Oscar Niemeyer e aquela coisa toda. Em 1940 o Drummond publicou já um dos seus livros importantes, e aí era um homem conhecidíssimo já, no Brasil. Já tinha publicado dois ou três livros e publicou Sentimento do Mundo, em 40. Eu localizei há tempos uma crônica do Rubem Braga, que estivera em São Paulo, e pegou numa redação um volume que o Drummond tinha mandado e ficou com o livro. Então ele dizia: “Aquele livro foi uma edição de cento e cinquenta exemplares”. Você imagina para o Brasil todo cento e cinquenta exemplares.


DP: Se a gente acha hoje três mil, pouco...


FL: Pois é. Então, é claro que no Brasil, se 1% dos brasileiros lesse, seriam 1.860.000 exemplares numa edição. Nós nunca tivemos isso de um livro literário. Então veja você, nem 1% de pessoas consomem um livro, best sellers, essas coisas, não consome. Porque se 1% comprasse... Ontem eu vi que é projeção do IBGE para a data de hoje, que começa o nosso inverno, é que o Brasil estaria com 186 milhões de habitantes. Então seria 1.860.000 brasileiros, se 1% lesse.

DP: E essas feiras todas, literárias, as Bienais, o que você acha?


FL: Ah, isso é importante. A Bienal está marcando cada vez mais como um centro comercial do livro. Mas durante muitos anos, nós da UBE junto com a Câmara Brasileira do Livro, fazíamos a parte cultural. Então durante a semana a gente promovia debates e conferências sobre os temas da época. Então cada ano, ou cada Bienal, a gente escolhia aquilo que seria, digamos, mais agradável ao público. E fizemos algumas vezes. Mas ultimamente a parte comercial está engolindo a parte cultural.


DP: Virou uma grande feira...


FL: Grande feira, pois é.


DP: E em relação, eu estava vendo o site da UBE, que vocês têm, com regularidade vocês promovem esses debates com os escritores. Continuam promovendo isso com uma certa...


FL: Nós temos o seguinte: nós tínhamos um jornal, que chama O Escritor, que agora virou uma revista – que está muito bonita, ainda mais na parte gráfica, porque a família do Portinari cedeu para nós as ilustrações. Então a capa, no primeiro número da revista saiu com o Mário de Andrade e o número então foi dedicado ao Mário; a segunda, Manuel Bandeira, retrato do Portinari; e a terceira, agora, vai ser o Drummond, já está praticamente saindo. E as ilustrações são desenhos do Portinari, que ilustram uma ou outra matéria, uma ou outra página, que a família nos cedeu. Então nós estamos fazendo uma revista nesse nível. E durante um tempo, também, eu propus à diretoria, em que toda reunião da diretoria alguém tomava a palavra para indicar aos colegas um livro que ele tenha lido e gostado muito. Então você fala: “Olha, eu li essa semana o livro tal e achei muito bom por isso, por isso e por aquilo”. Então é uma forma de as pessoas dizerem do prazer que tinham sentido durante a semana pela leitura de um livro ou de outro. Agora, as pessoas até estão escrevendo sobre o livro de que agradou, sem essa noção de que seja livro de best seller, ou que esteja saindo agora: pode ser livro do passado, do presente. Toda leitura torna o livro presente. Se você ler hoje o Dom Quixote, esse é o dia em que você está conhecendo o Dom Quixote, então é a novidade, para a sua vida de leitora.


DP: Na tua biblioteca pessoal, quais são os teus livros, quais são os livr
os que representam o teu núcleo duro?


FL: Bom, isso aí é engraçado, porque a gente tem muitas fases. Eu acho que aqueles a que eu volto sempre é. Por exemplo, o Machado de Assis, que é o autor símbolo do Brasil. Estou fazendo muito com o Guimarães Rosa, com Clarice Lispector, isso para falar dos contemporâneos. Mas eu gosto muito, por exemplo, do Raul Pompéia também. O Ateneu é um livro que eu já li muitas vezes. Eu gosto do Lima Barreto, pela figura dele, eu acho uma figura interessante. E também do Aluísio Azevedo, esse na prosa. E na poesia o Drummond, evidentemente, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima. O Jorge de Lima me acompanhou muito. Eu o conheci pessoalmente, eu tenho até duas obras que ele me dedicou, com muita generosidade. Há autores que me acompanham muito. O Cassiano Ricardo, eu o conheci aqui em São Paulo. Eu era muito novo, vim visitá-lo. Ele me dedicou depois um poema, está no Jeremias sem chorar, tem um poema dedicado a mim. Então são autores que eu frequento muito. Mas eu não frequento livros só de literatura, eu leio muito ciências sociais e muita História do Brasil.


DP: O que você lê de ciências sociais e de História do Brasil, Fábio?


FL: Eu tenho uma formação marxista muito sólida. Durante uma época, então, eu li Marx. E eu dei aula de economia, então eu li os clássicos da economia e eu gostava muito de ler, na história das doutrinas econômicas, história econômica, o Schumpeter, que é um autor também austríaco. E também na área da sociologia, da História doBrasil, da história econômica, eu li muito Celso Furtado, li o Caio Prado e o Sérgio Buarque de Hollanda, por exemplo, eu tenho muita frequência do trabalho dele. Na área da crítica então – eu já escrevi sobre ele – o Augusto Maia, um refinadíssimo escritor do Rio Grande do Sul; o Brito Broca, que era paulista; o Eduardo Frieiro, que era mineiro; o Eugenio Gomes, que é baiano. E também eu acho que o Brasil esqueceu, o Eugenio Gomes era um autor, um ensaísta refinadíssimo. Foi o primeiro a, digamos, a introduzir a literatura comparada no Brasil. Ele comparava textos ingleses com os brasileiros, um baiano de grande mérito e não está sendo muito contemplado na história. E evidentemente outros autores, o Jorge Amado, o Érico Veríssimo. Eu já escrevi praticamente um livro sobre um e outro, sobre o Jorge Amado e sobre o Érico Veríssimo.


DP: E Fábio, a tua formação, você estudou sempre em escola pública, ou não? Porque me chama a atenção que os mineiros têm uma relação com a literatura muito singular, que se destaca em relação a todos os outros.


FL: É, eu fiz. O ginásio não. Naquele tempo eu morava em uma cidade muito pobre, a gente ia estudar na capital e ia para internatos. Eu fiquei interno alguns anos. Era o meu Carandiru daquela época, porque internato era uma coisa horrível, mas pude estudar bastante.


DP: E a relação com a literatura começou aí?


FL: É, e na universidade eu fiz Direito, primeiramente; depois eu fiz Teoria da Literatura. Fiz pós-graduação, defendi tese, tudo isso primeiro na área do Direito e depois na área da Economia, e só em terceiro lugar que foi das Letras.


DP: E a tua geração é uma geração muito singular, porque as pessoas... na verdade esse conhecimento foi tramado, urdido, muito na relação com o coletivo. Existia uma dinâmica muito interessante de troca. Então eu queria que você falasse um pouquinho...


FL: Nosso grupo de estudantes, ao qual eu me liguei, era um grupo “boêmio”; gostava de beber, de cantar, essas coisas, mas todos nós trabalhávamos para nos manter. Não havia, digamos, dentro do nosso grupo, pais poderosos que pagassem para a pessoa
só estudar. Eu fiz concurso para o serviço público aos 18 anos. Quando eu me livrei do problema militar, aí eu entrei, eu vi um edital, fiz um concurso, e é engraçado: lá naquela época, como até hoje, matéria de concurso é sempre cargo que paga mal, os bons empregos são nomeados pelo gabinete. Mas nós éramos quatrocentos candidatos para 19 vagas, na Prefeitura. Nós fizemos prova uma semana: português, matemática, geografia, legislação municipal e datilografia. Uma semana de provas.


DP: E aí você passou...


FL: Eu fiquei entre os 19, entre os que foram aprovados.


DP: E nesse período você ficou trabalhando, você já estava na faculdade?


FL: É, aí eu entrei para a faculdade um ano depois – fiz concurso também, fui aprovado – e entrei para a Faculdade de Direito. Nós só comprávamos os livros, porque era gratuito o ensino, e pagávamos uma taxa de matrícula, mas o resto era gratuito.


DP: E a literatura, enfim, a tua relação como escritor começou, foi deflagrada aí?


FL: Eu descobri – justamente na universidade – foi a primeira vez que eu descobri o Mário de Andrade. Andando na rua, eu entrava nas livrarias e vi uns livros de ensaio dele. E comecei, foi a primeira pessoa, digamos, que me influenciou para o modernismo, foi o Mário de Andrade. Eu tenho obras, até hoje eu guardo os livros que eu comprei. Tem um aspecto até curioso: quando eu era interno, o colégio dava uma folga, porque era no centro da cidade, então o assistente de disciplina nomeava, só podiam sair três juntos do colégio e um era, digamos, o regente dos três. Então nomeava: “Olha, você fica tomando conta do grupo”, então a gente podia passear meia hora, quarenta minutos na cidade. E eu via na vitrine umas obras que eu ficava, assim, alucinado, e vi o Graciliano Ramos. Eu vi o Graciliano Ramos e vi o preço. Meu pai me dava um dinheiro para a merenda; então, diariamente, lá na cantina, eles me davam o dinheiro da merenda que o meu pai parcelava. Então eu deixava de merendar e guardava o dinheiro, porque eu vi o livro do Graciliano e – coisa de criança – achei que só tinha aquele da vitrine. Eu escondi o livro, entrei lá e pus atrás dos outros. Quando eu fiz o dinheiro que dava o preço do livro, aí eu fui lá e chamei o caixeiro e falei: “Eu quero aquele livro lá”, e mostrei para ele o livro escondido. Foi aí que eu comprei o livro do Graciliano. E o outro - foi também o meu pai que autorizou eu comprar - na Francisco Alves, que foi uma livraria muito importante no Brasil, foi até ela que deu
suporte econômico para a Academia Brasileira de Letras, no início. E eu fui à Francisco Alves e vi O Ateneu e comprei. Agora, no meu colégio, se esse livro caísse na mão de alguém, a turma da disciplina tomava, porque era proibido.
DP: Tinha uma biblioteca no colégio?


FL: É, tinha uma biblioteca, mas só podia ser lida com a pessoa pagando. Então nós tínhamos que alugar o livro e ler na hora do recreio, não podia ler nas horas de estudo, era só livro didático. Tinha que ler na hora do recreio, você tinha que eliminar o recreio e ficar lendo depois do almoço, geralmente, e era quase sempre vidas de santos, essas coisas. E se eles pegassem a gente lendo um livro, eles desapropriavam a gente. Mas eu consegui esconder esse Ateneu - até eu tenho esse exemplar em casa, escondido.


DP: Eu queria que você contasse - porque eu estava lendo uma matéria, nessa revista Entre Livros, sobre os livros que foram queimados, amaldiçoados ao longo da história. Aqui no Brasil, nesse período, os livros, bom, tem o Zero, que ficou...

FL: Ah! Bom, no período da pós-ditadura – aliás, há mais de um autor que fez a listagem dos livros proibidos, ou os livros que não puderam, ou foram apreendidos. Há muitos que nem estavam nas listas. A Civilização Brasileira sofreu muito essa ingerência, eles editavam um livro, a polícia ia lá e arrecadava tudo. O prejuízo era muito grande. A editora foi... o Enio Silveira até mudou, criou outra editora, para ver se ele sobrevivia com a outra, e a ditadura queimou muito livro, muito livro. Há poucos dias eu me encontrei, em Belo Horizonte, com o Thiago de Melo, e ele me contou que,
antes, bem antes da ditadura, ele e o João Cabral fizeram edições de prensa manual. Eram páginas soltas e eles engenhavam uma capa e aquilo ficava dentro. Chamava Hipocampo a editora deles. Ele disse que a polícia foi na casa dele e pegou todos os livros e queimou. Resultado: ele estava agora tentando recuperar as edições Hipocampo, e tinha duas que ele achava que eu podia arranjar para ele, que era do Emilio Moura e da Henriqueta Lisboa. Eu estou à procura desses exemplares, para ver se arranjo para ele.


DP: E você tem conhecimento de como que as bibliotecas públicas funcionaram, quer dizer, se teve algum tipo de cerceamento em relação à circulação dos livros?


FL: Houve o seguinte: logo depois do golpe eu estava em Belo Horizonte e até um exescritor e autor de livros didáticos era professor da Faculdade de Direito, foi presidente da UDN em Minas, ele era de Sergipe, Alberto Deodato. Ele foi nomeado para expurgar os livros da Universidade de Brasília. Isso saiu no jornal, a nomeação dele. Não sei se ele foi e se executou bem a sua função, mas isso eu me lembro bem que aconteceu. Isso, eu acho que macula muito a biografia de uma pessoa, ser nomeado para expurgar livros.

DP: Depois disso ele não pode exercer nenhuma função relacionada ao livro. E, Fábio,
eu ia te perguntar em relação aos novos, a geração de jovens escritores brasileiros:
cronistas, poetas, se você mantém uma relação...


FL: Sim, eu prestigio sempre o autor, que eu acho importante, novo. Por exemplo: há tempos, havia uma editora em São Paulo, não sei se ela ainda existe – há uns dois, três anos – chamava Cone Sul. Eles pegavam livros, pequenas novelas de estudantes e passavam por uma triagem e o que sobrasse eles davam para outra comissão, e dessa eu fiz parte duas vezes, para selecionar os melhores. Olha, encontrei livros de cair o queixo, da moçada: bem escrito, linguagem nova, renovadores, etc. Muitos! Também, uma vez, me procuraram na UBE, porque pegaram um concurso de terceira idade para frequentadores de clubes aqui de São Paulo e eu fui julgar as poesias desses meus colegas de terceira idade. Realmente, muita coisa muito ruim, muito ruim. Agora, um ou outro realmente bom. Então como sempre tem gente fazendo boa literatura.


DP: Você lê, enfim, literatura de blog, essas coisas de internet?


FL: Não. Isso, quando têm coisas que interessa, os meus filhos me mandam. Mas é mais na parte humorística, qualquer coisa assim, mas fazem. Porque eu dedico muito tempo para leitura, muito tempo. Eu durmo muito pouco, para mim quatro ou cinco horas é o bastante para que eu repouse. A minha cabeceira têm vários livros de vários assuntos. Leio sempre um pedaço cada um...


DP: Que você lê simultaneamente. E o que você está lendo agora?


FL: Ah, são uns vinte livros que estão lá na minha cama. Porque também têm pessoas que me pedem prefácios, pessoas que pedem coisas assim, então eu sou forçado a ler.

DP: E o fato de você ser escritor, faz com que a tua crítica seja uma crítica mais cuidadosa, em certo sentido, pelo fato de você também conseguir se colocar no lugar do escritor? A tua função como crítico literário, você acha que te dá um dispositivo a mais?


FL: É, eu não gosto mais de perder muito tempo, porque eu recebo em média uns 15 livros por semana, 15 a vinte livros por semana - não dá tempo para ler tudo. Então, oque eu faço é separar e doar esses livros para bibliotecas ou coisas assim. Eu não tenho tempo para ler tudo o que eu recebo - revistas, em grande quantidade. O que eu lamento no Brasil é a imprensa ter se distanciado da literatura. Antigamente, cada jornal – e havia muitos jornais em cada cidade – cada jornal tinha um suplemento literário, uma coluna literária durante a semana toda, e um crítico do jornal. Então a literatura estava em todos os jornais, em qualquer lugar do Brasil, em qualquer jornal, e havia muitos jornais. Hoje, quando eu vejo o que eles chamam de suplemento cultural – nem chama mais literário, chama cultural – é dedicado à música popular e a autores estrangeiros; brasileiro é uma exceção nos jornais brasileiros. Isso é uma falta de consciência nacional muito forte. Mesmo países que tem situação análoga à nossa não fazem isso. A gente vai no México, pega um suplemento literário, só excepcionalmente entra um estrangeiro. Você vai em Buenos Aires, que é uma cidade muito literária, os órgãos falam dos escritores de lá, no Uruguai também é a mesma coisa. Agora aqui, você pega um jornal e escritor brasileiro é exceção - ele entra ali de enxerido. O resto é porque eles já compram das notícias de editoras que já têm a publicidade feita. Então são press-releases que o jornalista recebe e repete. Então a mesma notícia sai em um, dois, três, quatro, cinco, dez jornais ou revistas, iguaizinhas, as mesmas palavras – de autores estrangeiros. A publicidade já vem pronta e, por comodismo, e porque o jornalista muitas vezes é forçado pela própria empresa a fazer a página literária, porque eles não querem pagar escritor, então o jornalista faz se valendo da publicidade que a editora já manda. Geralmente, a gente recebe o livro com uma informação sobre o autor, sobre o conteúdo do livro, etc. Há pessoas que fazem aquilo.

DP: Fábio, e para finalizar - a gente já te explorou em vários campos, em várias searas - queria que você pensasse, porque, como a gente está num movimento, que é um movimento de renovação da instituição, tanto em termos físicos, ela vai passar por uma reforma e restauro grande, como em termos do direcionamento, quer dizer, que tipo de perfil o acervo vai ter, quais são as ações que são mais eficientes no sentido de ter um braço, a biblioteca ter um braço, que é a extensão cultural, que reverta em prol da leitura, da relação com os livros? O que você idealiza como escritor, como cidadão paulistano, para essa Biblioteca?


FL: Hoje, os meios eletrônicos facilitam muitas coisas - pode haver aquilo que há nos Estados Unidos, uma inter-relação das bibliotecas. Vamos supor - uma pessoa chegue aqui e procure um livro que vocês não têm. Aí vocês informam e falam: “Olha, em tal biblioteca em Araraquara, ou Itu, ou Campinas tem esse livro, vou pedir, e o senhor volta aqui no dia tal, nós já teremos o livro aqui à sua disposição”. É uma forma de intercomunicação e intercâmbio entre as bibliotecas. Que seja um sistema integrado de bibliotecas públicas para que o consulente não saia decepcionado, que ele tenha uma resposta para as suas questões, para as suas buscas.


DP: E no sentido de atrair o público, que é um público mais qualificado - que acho que no passado já teve - quer dizer, o interessante é a Biblioteca conseguir ter esse ecletismo, de tanto atender às necessidades do aluno...


FL: Então, acho que, além da integração das bibliotecas entre si, deveria haver também um grande comércio do setor cultural com o setor pedagógico. As escolas devem fazer da Biblioteca um núcleo necessário de visita. É preciso que a Secretaria da Educação fale assim: “Olha, vamos aproveitar que nós temos tantas bibliotecas públicas, então cada professora, uma vez por semana, leva os alunos para visitar a Biblioteca, para saberem o que é uma biblioteca.”

DP: Na verdade são medidas simples, prosaicas, que fazem toda a diferença.


FL: Olha, o ensino fundamental bem dirigido é capaz de fazer a maior revolução que o Brasil já pode ter assistido na vida. Imagine uma geração de brasileiros que entra aos sete anos numa escola, e saia aos onze, doze anos, mas tendo tido noções de cidadania, noções de higiene... Porque hoje a sociedade é praticamente urbana, então você pega um grupo de alunos e vai mostrar o que é a cidade, e como ela deve ser proprietária da cidade, como ela vai lidar com o trânsito, como ela vai atravessar uma rua, como ela vai exigir da autoridade que cumpra a lei. Não é só o cidadão, todos têm que cumprir a lei. Então cria cidadão que é capaz de também bradar contra a delinquência, contra a associação das autoridades com a parte, digamos, podre da sociedade. Então, quando você vê que o cidadão vai se formando, ele vai respeitar as instituições, ele não vai depredar um monumento público, ele não vai pichar aquilo, mas, ao mesmo tempo, ele não vai deixar que a autoridade vá estacionar o carro no jardim, ele não vai gostar daquilo. É um complexo pelo qual a sociedade constrói o futuro dos seus filhos e de todas as gerações.


DP: Sabe que o Mário de Andrade... encontrei uma referência dele num texto em que ele falava isso em 1939, Fábio, que a criação de bibliotecas populares era uma atividade altamente necessária para o desenvolvimento da cultura brasileira e que, embora não resolvesse todos os problemas, disseminava no povo o hábito de ler, criando uma população urbana mais esclarecida, mais capaz de vontade própria e menos indiferente à vida nacional. Eu achei que ele era muito visionário.


FL: Pois é... Agora veja você, não tinha havido ainda a explosão urbana que houve. Então hoje nós temos que controlar essa explosão para tornar menos maléfica, tornar o ambiente da sociedade mais agradável para todos. O respeito ao outro é também uma coisa que se aprende na escola. Então esse individualismo exacerbado que está na nossa cultura pode ser combatido. Ele pode, mas é claro que não é com medidas violentas, porque senão você tem uma resposta violenta. Você tem que, evidentemente, são as instruções que a escola... Quando você forma, eu digo, o brasileiro de sete aos onze, doze anos numa escola, escola que lhe dê boa alimentação, que ensine a usar a água e a não tomar água infectada, que use o filtro, que ensine a usar a cidade e ensine a ajudar os outros num momento de crise, e ensine esporte. Esporte para o desenvolvimento do organismo da pessoa, o desenvolvimento físico e não para transformar-se num negociante do corpo dele, que acaba... Nós temos visto que os nossos grandes astros terminam dramaticamente, porque, passada a época da competição – que dura muito pouco – se ele não tem uma estrutura psicológica correspondente, ele cai no alcoolismo, cai na depressão, cai no hospital, etc. Quer dizer, ele não se preparou para atravessar a fase de glória que ele tinha e depois aceitar o término da glória. Tudo isso pode ser ensinado nesse primeiro grau, nesse grau fundamental. Quer dizer, não é só a pessoa escrever bem, fazer as contas, etc, mas é preciso analisar o espírito de convivência e de uso do espaço urbano e, ao mesmo tempo, quer dizer, uma espécie de alegria de viver, mas dentro de uma ordem que vêm da convivência. Você não vai ultrapassar o direito do outro, não é frutífero isso. Eu acho que, sem essa revolução do ensino, vai ser muito difícil reconduzir o Brasil a uma situação que a gente deseja. O potencial do Brasil é imenso. Nós temos uma natureza riquíssima e nós temos um povo muito capaz de fazer prodígios, mas é preciso dar estímulo a isso tudo, porque nós estamos sendo ocupados pela bandidagem nacional e internacional. As nossas reservas todas estão ambicionadas - o drama do Amazonas é que nós ainda não nos preparamos para defender esse território, que está sendo ambicionado e invadido por várias nações. Essa coisa do Amazonas não é de agora, não. No tempo do Império, o Império brasileiro defendeu mais o Amazonas do que a República. Eu lia, não faz muito tempo, um livro sobre a cobiça internacional em relação ao Amazonas, e o nosso diplomata que estava em Washington naqueles informes secretos que hoje agora estão à vista de quem quiser, você vê como eles já sabiam que estavam se preparando para invadir o Amazonas a um modo como eles fazem: você manda um grupo religioso, você manda um grupo de pesquisadores, você manda um grupo de não sei o quê, depois essa gente se assenta ali, depois forma um núcleo forte. Quando você vai e desconfia que eles estão exagerando, já tem um exército atrás deles, para defender esse, que foi o que eles fizeram com os espaços que eles tiraram do México. Então tiraram a Califórnia, tiraram o Texas, tiraram a Flórida. Então é assim: primeiro vai uma coisa inocente e depois você vai defender os seus patrícios que estão lá, não podem sair de lá.


DP: Fábio, eu vou voltar para a pergunta inicial, que é em relação ao Museu da Língua, que eu acho que é uma questão importante. Você fala que, na verdade, ele tem um fator, que é um fator de espetacularização e, se você acha que isso contribui para que a literatura, a relação de amor com a literatura fique mais presente, ou se isso, na verdade...


FL: Eu acho que... porque, mesmo na técnica do ensino, muita gente está querendo levar à criança que a vida é um prazer permanente. Então tudo tem que ser prazeroso: estudar tem que ser prazeroso, tudo o que se faça tem que ser prazeroso. Ora, não dá certo uma coisa dessas, não dá certo, porque há certas atividades que exigem concentração e renúncia, porque, para você concentrar-se no estudo, você tem que renunciar à alimentação, renunciar ao recreio, porque por um tempo você tem que ficar concentrado naquilo. Não é prazeroso ficar estudando o tempo todo, não é. Há situações extremas, mas vamos então ao outro extremo: o que o Japão, o que a Coréia do Sul fizeram? No Japão, um menino que vai fazer o que seria um vestibular e é reprovado, ele fica de tal forma envergonhado que muitos se suicidam, pelo excesso de exigência que a sociedade faz para que ele tenha logo um êxito. Nós não temos condições para fazer uma coisa dessas, nem devemos fazer, porque o Brasil é uma civilização diferente. Eu acho que é uma civilização que pode atingir os seus objetivos sem essa noção militarista. Mas ao mesmo tempo eu acho que uma responsabilidade pública deve estar em cada pessoa. Nós devemos usar as coisas públicas e defender as coisas públicas. Por exemplo, esse negócio de quebrar as coisas de telefone - por que quebrar aquilo? Não tem sentido você arrebentar uma coisa pública. Então você ocupar o espaço, como está agora em São Paulo, as calçadas, você tem que andar praticamente na rua, porque estão ali os camelôs, estão pessoas de bicicleta, outros estacionam o carro, estacionam motocicleta. A calçada, que é do pedestre, e é um espaço público, não pertence mais ao público, você tem que competir com os carros, porque não pode transitar por ali. A autoridade pública no Brasil não devolveu o espaço público para o cidadão.


DP: Como você vê, você idealiza ou vislumbra projetos onde a literatura esteja mais integrada no cotidiano, na vida da cidade?


FL: Pois é, aí é isso - é ensino fundamental. Você tem que descobrir o modo que leve o estudante a gostar de ler e sentir depois necessidade da leitura. Há muitos fatores que estão, como desde o início eu falei, com o mercado de trabalho mais exigente, as pessoas vão ter que saber usar o livro mais frequentemente. Mas isso não é uma coisa, uma obrigação onerosa, deve ser obrigação, mas que cause algum prazer na pessoa: prazer de reflexão, prazer de fantasia - a obra muitas vezes traz uma fantasia agradável, mesmo erótica, ela é capaz de despertar sentimentos eróticos muito interessantes, mas é preciso a pessoa usar o livro.


DP: Agradeço enormemente pela sua disponibilidade, pela tua presença, pelas tuas reflexões, em nome da Biblioteca. Então a gente finaliza este depoimento. Obrigada!


FL: É, então eu acho que a gente precisava dinamizar.


DP: Nós estamos abertos.


FL: A gente precisava levar uma mensagem às autoridades de um modo geral. Sempre tem no conjunto de uma Câmara, uma outra pessoa que seja letrada e que você se aproxime e fale: “Olha, põe um projeto assim ou assado e tal”. É preciso estimular os órgãos públicos – precisam se mexer mais. Precisam se mexer mais, porque, neste espírito inercial que temos aí, a gente não...


DP: A gente recebeu a diretora, Ângela Pérez Mejía, da biblioteca de Bogotá e – nossa!
Fábio, nós ficamos impressionados com ela! Ela é de uma vitalidade...


FL: Na Colômbia é porque entrou o negócio do narcotráfico porque, antes, a sociedade dos escritores tinha um lugar entre os ministros do governo. Então o governo tinha o ministério e tinha um representante dos escritores. Isso teve na Colômbia.


DP: Isto está enraizado na história da Colômbia? É Incrível isso!


FL: O Garcia Marques foi prêmio Nobel da literatura porque ele estava numa sociedade que cultiva o livro muito, muito mesmo.


DP: E a que você atribui esta diferença, já que temos tantas proximidades, como latinos?


FL: Aí foi a economia, o narcotráfico passou a ser mais importante do que todo o resto.


DP: Mas em relação ao Brasil, por que a Colômbia já tinha economicamente esta relação com o livro e...?


FL: Eu acho que eles tiveram outro rumo. A Argentina mesmo, ela, aí na década de 1920, 30, tinha uma renda per capita que era uma das maiores do mundo, então ali se leu muito.


DP: Até hoje, não é?

FL: Mas depois, com a decadência, aí veio aquele espírito militar e, principalmente, o governo autocrático.

DP: Mas mesmo assim eu acho que não sucumbiu a relação que as pessoas têm, você não acha? Lá na Argentina eu acho que eles permanecem com uma relação de muita familiaridade. O livro é...

 
FL: É, às vezes em que eu estive em Buenos Aires, eu gostava de conversar, por exemplo, com engraxates, com motoristas de táxi e você vê que eles têm letras, bem maior do que a do nosso corpo de trabalho braçal. Eles têm letras e discutem com até certa liberdade de pensamento. Mas eu não sei, o problema nesses países, e no nosso também, foi o problema fundiário. Formou uma aristocracia muito sólida, que até hoje não foi... O caso do Brasil, nunca houve a reforma agrária. A reforma agrária no Brasil não se fez até hoje e é um embargo muito grande. Então você vê o elogio do agronegócio, que é a coisa mais espantosa, porque dá divisas para o país e é a maravilha, etc, mas este agronegócio está fazendo o seguinte, pega latifúndios, milhares e milhares de quilômetros quadrados, destrói as florestas e destina ao gado e destina à soja, gado e soja para exportar, quer dizer, nós estamos destruindo a nossa natureza para alimentar os importadores e a população brasileira tem carências muito sérias. Então esse agronegócio não é um milagre assim tão... e agora eles estão entrando com experiências de alimentos geneticamente modificados. Não há ainda, digamos, respostas suficientes para dizer se vai construir ou vai destruir. Precisaria fazer uma experiência e depois coletivizar isso, mas, agora, coletivizando para depois ver se vai dar certo, nós podemos matar o nosso solo ou então a população, se esses alimentos degenerarem em qualquer coisa...

DP: Você conhece aquele projeto, que parece que está até bem sucedido, que chama, eu acho, Vagalume, que são moças que eu acho que fazem um programa de leitura, formação de leitores em populações ribeirinhas, que parece que viajam pelo Brasil inteiro? Tem muitas ações nesse sentido.

FL: Olha, havia ações já postas em uso no antigo Instituto Nacional do Livro, que eu fui diretor. Nós tínhamos uma frota de 29 kombis que levavam livros no Norte, então fazia 600 quilômetros para levar livros. O pessoal gostava, ficava esperando! O que aconteceu? Elas se acabaram e não houve renovação nenhuma – acabou a frota!

DP: Incrível! Por isso que a memória, eu acho que, no nosso caso, ela tem a função de resgatar, às vezes, coisas elementares, experiências que já foram bem sucedidas.

 
FL: É isso. Se você pegar uma Kombi e emprestar o livro e depois, na outra semana, buscar os livros e emprestar outros, aceitam. Isso desenvolve muito a divulgação dos livros. Essa experiência já existiu aqui no Brasil e foi, de governo em governo, piorando. Por isso que, depois que eu fiz um relatório lá, reclamando dessas coisas, vi que num ano não tinha nenhuma resposta, no outro – “Ah, porque o orçamento...” – não pôde, vai no outro ano, no outro, vem do mesmo jeito. Eu falei: “Bom, não tem condições”. Eu não tinha força política e eu falei: “Bem, não adianta!”.

DP: Muito bem!

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