João Gilberto Noll
Entrevistado no site www.escritoresdosul.com.br em junho de 2010 na primeira e reveladora entrevista da revista na celebração de seu primeiro aniversário.
Tão filósofo quanto escritor, João Gilberto Noll é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores nomes da literatura gaúcha, brasileira e até mesmo mundial. Profundo, ousado, clássico e simples ao mesmo tempo, ele dá um banho de simpatia, autenticidade e talento.
"A filosofia para mim é tão vital quanto a literatura. Só a poesia e a música estão acima delas. E o cinema também. Sim, a música, a poesia - ou a prosa de empenho poético - e o cinema são a trindade sagrada dos meus dias."
Nome completo:
João Gilberto Noll
Local e data de nascimento:
Porto Alegre, em 15 de abril de 46.
Como você se define?
Como um homem da palavra transfigurada.
Qual foi seu primeiro e decisivo ato literário?
A escrita do meu conto "Alguma Coisa Urgentemente", primeiro conto que escrevi para o meu primeiro livro, "O cego e a dançarina". Aliás, coloquei-o como o primeiro conto do livro. É um pouco o portal do meu trabalho. Que depois foi transformado no belo filme "Nunca fomos tão felizes", de Murilo Salles.
Você começou imitando alguém? Quem? Conscientemente eu não queria imitar ninguém, credo! Alguma influência certamente eu deveria ter. De quem? De tantos, de ninguém.
Você tinha muitos livros em casa quando pequeno? Gostava de ler? Imaginava-se escritor?
Eu lia muito. Livros eminentemente infantis, como a Gata Borralheira. Eu queria mesmo era ser cantor lírico. Literatura foi uma escolha já na minha adolescência solitária.
E a música na sua vida? Desde pequeno você era ligado à esta arte, sim? Por que você não seguiu com ambas as coisas: música e literatura?
Porque na época de escolher o que fazer da vida eu era muitíssimo tímido e a música pressupõe equipes quase sempre.
Prefere escrever em silêncio ou com uma música de fundo, por exemplo?
Prefiro escrever com uma música de fundo. Mas atualmente o silêncio tem sido mais convidativo para o ato da escrita.
Qual a sua relação com Porto Alegre hoje, depois de já ter conhecido tantos lugares mundo afora?
A minha relação com Porto Alegre hoje ainda é de amor e ódio, como sentimos com frequência as nossas coisas mais vitais.
Você tem uma frase que acho maravilhosa, onde você disse o seguinte: "Sou muito contemplativo e por causa disso sempre me senti muito acuado no mundo. Queria parar e ficar olhando, mas o olhar, para nossa época, é outro pecado. Olhar é não produzir, é ser paria. Gosto muito de observar. Isso traz problemas terríveis, não digo que não."
Além de ser considerado um pária, quais os maiores problemas de ser um grande observador em nossos dias?
Observar por tudo isso é visto como um ato de inutilidade pecaminosa. Na observação você rouba um pouco do conteúdo observado. É quando você sente como nunca a vontade de estar no lugar do outro ou até da paisagem. E isso é imperdoável, porque assim você está desacreditando um pouco no poder cristalizado da identidade.
Sua escrita é forte, direta, intrigante, veloz, com poucas personagens também. É o melhor caminho para acompanhar a rapidez do mundo de hoje? Pode valer como um tipo de "receita"? Já que, como você mesmo já disse, "hoje é completamente inviável escrever livros com tantos personagens e páginas como as obras de Balzac ou Flaubert, por exemplo"?
Sinceramente, eu não sei o que seja escrever "por receita". Escrever é uma tensão inadiável com o instante, é então o atrito com o instante para que imploda o sentido burocrático das coisas e irrompa o seu avesso.
Apesar disso, você acha que é preciso ler os grandes clássicos para ser um escritor?
Não há outro caminho para se ganhar densidade e fortuna mental.
Na história da literatura, quais as personagens mais bem construídas que conhece?
A G.H. de Clarice em "A paixão segundo G.H". O protagonista de "O Castelo", de Kafka. O Fabiano de "Vidas Secas", de Graciliano. O Holden de " O apanhador no campo de centeio", do Salinger.
Qual seu próprio livro predileto e por quê? Há algum que se arrepende? Por quê?
O meu livro predileto é "Lorde". Porque é um livro onde me dediquei a narrar o que estava próximo de mim, em Londres, sem usar recursos de flashbacks. Esse resultado de síntese me orgulha um pouco. Não gosto de "Canoas e Marolas", é uma ficção cansada.
Consegue ler os próprios poemas ou textos em geral na pele do leitor, não do escritor?
Ao conseguir esse distancimento, a fruição da leitura é bem maior.
Escrevendo, conseguiu mudar sua vida? Em que sua vida mudou?
Sem perceber fui renunciando a quase tudo para me dedicar à literatura. Em parte não me arrependo, porque a minha ficção está aí. Mas hoje me faz falta por exemplo uma vida social mais rica, com mais surpressas. Hoje estou indo atrás. E pouco a pouco tenho conseguido ampliar meu círculo de amizades e de fogosos momentos.
Você sempre é questionado sobre escritores que gosta, que lê, que recomenda, etc. Porém, para mim, você é tão filósofo quanto escritor. Quais os filósofos (e livros de filosofia) que realmente lhe influenciam?
De fato, a filosofia para mim é tão vital quanto a literatura. Só a poesia e a música estão acima delas. E o cinema também. Sim, a música, a poesia ou a prosa de empenho poético, e o cinema são a trindade sagrada dos meus dias. Sem eles a minha natureza humana seria vã. Gosto de Sto. Agostinho, do Platão dos "Diálogos", muito de Berkeley, de Hanna Arendt.
Aliás, por que você estudou letras na faculdade e não filosofia ou outro curso?
Porque era mais fácil conseguir lecionar literatura do que filosofia. Na época a filosofia já começava a sair dos currículos. Mas não é só isso: a literatura é arte e como arte elabora a transfiguração da realidade é o maior dos alentos.
Qual metafísica dos seus livros e qual metafísica deve ser combatida, como tantos filósofos buscaram?
A metafísica que dá ao homem um sentido celestial. A vida é antes de tudo materialidade e as árduas contradições humanas.
Desde 1980, nos primórdios de seus lançamentos, você vem ganhando prêmios, apologias, destaques na mídia. Qual a importância disso para você? Isso mexe com você de alguma forma? Você ainda liga para elogios, críticas, contentamentos e descontentamentos com seu trabalho ou escreve sem se preocupar com nada disso?
Ah, escrevo sem me preocupar com isso. Aliás, quando escrevo não me preocupo com nada, me preocupo apenas com o andamento do texto, que adquire uma certa autonomia, porque sem ela se cai na cópia mesquinha do real.
No Orkut, há uma comunidade de discussão a respeito de seus livros: Você acompanha, já teve algum interesse ou já leu alguma coisa para saber quais questões em suas obras são mais debatidas pelos seus leitores?
Não tenho acompanhado muito, não. Não faço parte das gerações que já pegaram essa prosmicuidade de comunicação eletrônica andando. Não consigo me comunicar sabendo que tem uma "multidão" me seguindo. Falando nisso, prefiro me expressar a me comunicar, um vício de escritor, eu acho.
E os filmes que são feitos a partir de sua obra? Você já disse numa entrevista que possui uma relação monogâmica com a literatura, mas em algum momento, vendo alguma adaptação de algum livro seu, já teve vontade ou pensou que poderia reescrever tal ou tal cena de modo melhor? O que você achou das adaptações que foram feitas até hoje?
Qual gostou mais? Qual lhe desagradou? Começo a ter vontade de fazer roteiros para cinema a partir de obras minhas, ou não necessariamente, talvez.
De onde você acredita que vem à sua tão enaltecida originalidade? Você já afirmou que é um trabalhador muito disciplinado, que senta e escreve por horas, que obedece à regras de produção como se fossem leis inquebrantáveis. A autencidade pode nascer de determinados esforços ou é algo que brota de você, sem nem mesmo que a procure, completamente fruto do inconsciente?
Leandro, você há de concordar, eu não sou a pessoa mais indicada para responder a esta pergunta. É preciso que alguém que me considere original, como você diz, diga onde essa qualidade pode ser encontrada no que escrevo. Eu simplesmente escrevo. Com as duas coisas de que você fala: com um sentido da improvisação típica do inconsciente, de quem não tem nada a perder, como alguns jazzistas e eu próprio, de gente que só pode contar com o inconsciente mesmo, com a "inspiração" de sua cidadania meio aviltada por fatores que não vêm ao caso aqui. Isso que você cita pode vir também de uma obsessão de que só na literatura ou na arte --- só em atividades que lidam com a transfiguração e não com a cópia da vida ---, pode surgir o redimensionamento da vida do narrador ou do autor, tanto faz, para o alcance de alguma superação, entende?
Você se considera um transgressor? Em que sentido? Que transfiguração estilística a literatura necessita?
Sou um transgressor simplesmente porque na adolescência fui internado numa clínica psiquiátrica por não querer continuar indo ao colégio. Sou transgressor porque nunca quis ser isso ou aquilo. Mas tudo ao mesmo tempo. Se eu fosse apenas uma coisa, por mais negativamente estigmatizada que fosse, tudo bem. Mas não ser isso ou aquilo, mas ser isso e aquilo é uma ofensa. Sou louco e sou são. Devoto da beleza masculina e feminina. É coisa demais para que um único ser humano possa conter. Isso tudo acontece assim não porque eu queira impressionar os intelectuais ou os formadores de opinião ou coisa que o valha. Eu diria que isso pode acontecer porque do fundo da noite o tudo e o nada me surpreendem num mesmo golpe. Sou impressionável diante da capacidade contraditória do humano. Sem a contradição seríamos seres embalsamados em nossas crenças. Sem que se precise fazer uma apologia da incoerência como método ou do sufoco relativista.
Na Bienal de Curitiba você disse que descobriu que todos os seus personagens eram um só. Ao mesmo tempo, você já disse que em "Berkeley em Bellagio", 40% é auto biográfico. Onde você se diferencia de seus personagens, afinal? Quem são os outros 60% deste livro, por exemplo?
Sinceramente, eu já não tenho nada a responder sobre esse tema. O que eu demonstro nos meus livros é a voz de um homem que habita em mim e que não sendo propriamente eu se transfigura em alguém que eu não poderia prever. É esse o meu protagonista. E por ele sou perdidamente apaixonado. Me leiam que vocês o conhecerão. Ele é no mínimo sedutor, verão! Éle não é o João que fala aqui. Ele é simplesmente todo o mundo e ninguém. Eu apenas o abrigo. Como um grávido.
Você, geralmente, sente-se tão angustiado, só e desencantado com a vida quanto seus personagens?
Geralmente me sinto, sim. Mas na minha existência de cidadão experimento um estado de limiar para alguma coisa melhor, que me devolveria o espírito de uma certa infância que seguramente nem vivi, mas que ainda está aqui, intacta, na pele imaterial desse homem que atua como o protagonista da minha ficção. Mas os meus personagens nem sempre são tão desencantados assim. Que desencanto existe por exemplo ao final do meu romance "A fúria do corpo", onde há uma coreografia amorosa entre aquela homem e aquela mulher num chafariz na praia de Botafogo? Que desencanto há ao final do meu livro mais recente "Acenos e Afagos", onde os dois amantes (dois homens) são sepultados juntos e debaixo da terra mantêm o tesão recíproco, vencendo a prórpia morte? Hein?
Você ainda escreve a mão? Se já parou, qual o último livro que escreveu assim?
Desde Berkeley em Bellagio escrevo no computadr. E não quero outra vida. Antes escrevia à mão não exatamente por escolha, mas por pobreza física mesmo. E depois havia o fato de que não parava quieto em um único lugar. Então precisava deixar a velha máquina de escrever para o momento final da escrita, quando parava enfim em um único lugar. Geralmente na casa de veraneio de meu irmão no litoral gaúcho, e no inverno. Porque na época eu era um sem-teto, condição-consequência da minha dedicação integral à literatura. E me excitava com a escrita como se com um corpo em êxtase. Literatura é uma atividade erótica, sim.
Gostaria de dizer mais alguma coisa ou deixar alguma mensagem aos leitores?
Eu queria deixar o meu silêncio mais amoroso. Que é a finalidade de toda a minha ficção.
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Observação: Lançamento de livro
Após esta entrevista, concedida à revista Escritores do Sul no início de junho, Noll lançou, em julho, mais um livro, "O anjo das Ondas", sobre o qual falou ao jornal Estado de São Paulo o que julgamos necessário para o complemento desta entrevista, sem ter que fazer uma nova entrevista exclusiva, repetindo praticamente as mesmas questões:
1)O livro aborda descobertas em geral e também as dúvidas que esses momentos provocam. A busca do caminho próprio seria, portanto, o tema principal?
Comecei a escrever o livro pensando no público juvenil. Mas no processo de criar o fluxo narrativo fui percebendo que eu estava escrevendo uma ficção sem buscar nenhum segmento específico de leitores. Era como os meus livros anteriores. Um trabalho fundamentalmente de linguagem, com um sempre vivo apelo sensual. De juvenil tem apenas a idade do protagonista, pois se trata de um adolescente. Eu diria que o protagonista é o mesmo de alguns livros meus, só que agora entre a nascente juventude e a inserção no mundo adulto. Voltando à sua pergunta, acredito, sim, que se trata de um personagem à cata de si mesmo, rumo às descobertas que farão dele o que chamam de alguém. A sua descoberta mais vital na fase que ele encarna é o da sexualidade e isso é feito na completa escuridão para que ele posssa como um cego se preparar contando apenas com a ardência do tato e a respiração ofegante. Para que ele possa ir se preparando para então se lançar ao encontro do outro corpo que já vem vindo, sim.
2) A solidão leva Gustavo a ver no amigo um pedaço de si mesmo. Um apoio provocado, me parece, tanto pelas indefinições típicas da idade mas também por essa fragmentação dos tempos modernos. Seria isso mesmo?
Gustavo tem o lado de dentro mais dilatado do que o seu relacionamento com o lado de fora. Dentro de si ele ainda brinca como uma criança. Seu imaginário é super povoado, hipertrofiado, eu diria, quem sabe levemente esquizo. Pois o que chamam de loucura é essa hiperatividade do universo interior, deixando pouco espaço para uma interlocução real, efetiva e duradoura. É a adolescência vivida em alto grau de solidão. Ele convive a duras penas com o pai e com a mãe. Almeja uma aventura que não encontra lugar no confinamento do lar. Aí ele parece, sim, com outros personagens meus que já atuam em estágios maduros da vida. Sentem uma aversão à domesticidade. A pessoa chegada com que ele se identifica é a avó, uma cantora lírica que vive em Londres e a qual ele espia durante a troca de roupa nos camarins. É apaixonado por ela. Ele vive estadas em Londres em completa ociosidade, em pura exaltação interior. É quando ultrapassa a sua solidão. Nem com a namorada ele conheceu tais situações.
3) A descoberta de que a realidade do mundo adulto é menos interessante que o universo infantil é um inevitável contraste com a ânsia de amadurecer que normalmente marca os jovens?
Esse contraste é o que move a narrativa. Às vezes ele quer avançar, vivenciar a completa autonomia. Em outros momentos ele tem vontado de recuar, de ir ao reencontro de uma fase penumbrosa, onde retomará contato com as coisas indistintas, condenadas à força dos outros, quase uma semimorte, quase uma ultraprecocidade para o fim. Sem dúvida, acho que sem qualquer pedagogia, o que vence ao final da narrativa é a aspereza da pele que por segundos alcança um laivo de fusão. Quando Gustavo pergunta: "É esse o meu lugar?".
4) Os mistérios da alma humana continuam te inspirando?
É a sondagem desses mistérios que fazem de mim um escritor. Talvez para o bem e para o mal. Não sei... Se um dia eu abandonar essa característica tentando ser um romancista de cunho sociológico ou histórico ou puramente político, você pode escrever, estarei me suicidando literariamente. E não faltou na formação da minha geração a crença numa obra mais engajada em questões exteriores à linguagem (e não falo aqui, por favor, numa visão abastardada, formalista, de incensar o reino do significante etc.). Não faltou a crença exclusivista em uma obra enfim de conteúdo explicitamente social. Hoje acredito antes de tudo na liberdade do escritor. Que cada escritor vai soprar no espaço em branco o seu próprio carma, a sua sabedoria cavada no atordoamento causado pelo tanto de mistério que nos constitui e humaniza.
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