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Grandes entrevistas
WILLIAM BURROUGHS

Entrevista conduzida por Conrad Knickerbocker, publicada na Paris Review, nº 35, outono de 1965 e republicada no livro Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, de onde foi extraída

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Apresentação:                                               
Apitos e fogos de artifício saudaram o advento do ano-novo de 1965 em Saint Louis, e stripteasers saíram correndo dos bares na Gaslight Square para dançar na rua quando soou a meia-noite. William Seward Burroughs III, que havia ficado sozinho vendo televisão aquela noite, estava dormindo em seu quarto no Chase-Park Plaza Hotel, o mais elegante de Saint Louis. Depois de vinte anos de ausência, ele havia retornado de Tânger à sua cidade natal. Ao meio-dia do dia seguinte, estava pronto para a entrevista. Vestia um terno leve de cor cinza, com colete, da Brooks Brothers, uma camisa de Gibraltar listrada de azul e cortada em estilo inglês, e uma gravata azul-escura com pontinhos brancos. Seus modos eram não tanto pedagógicos como didáticos ou forenses. Ele poderia ser o sócio majoritário de um banco privado, mapeando o curso de fortunas enormes porém anônimas. Um amigo do entrevistador, avistando-o do outro lado do saguão, pensou que ele era um diplomata inglês. Aos cinqüenta anos, ele está em boa forma; diariamente faz um complicado exercício abdominal e caminha bastante. Seu rosto não demonstra excesso de carne. Sua expressão é severa, seus traços são intensos e marcados. Ele não sorriu durante a entrevista e riu só uma vez, mas dá a impressão de ser capaz de muito riso sarcástico em outras circunstâncias. Sua voz é sonora, seu tom razoável e paciente; sua pronúncia é mid-Atlantic, o tipo de inflexão desregionalizada que os americanos adquirem depois de muitos anos no exterior. Fala elipticamente, em rajadas curtas e claras. Sobre a cômoda de seu quarto havia um rádio transistor europeu, diversos volumes de ficção científica, e Romance de ]oseph Conrad, The day Lincoln was shot de ]im Bishop, e Ghosts in american houses de ]ames Reynolds. Uma câmera Zeiss Ikon num surrado estojo de couro estava largada sobre uma das camas geminadas, ao lado de um exemplar de Field & Stream. Na outra cama estavam uma grande tesoura, recortes de crônicas sociais de jornal, fotografias e um álbum de recortes no qual estivera trabalhando quando o entrevistador chegou. Ele tinha começado três desses álbuns alguns meses antes, em Tânger. Eles consistiam em material datilografado, fotografias e matéria impressa, dispostos en collage em livros contábeis franceses. Um era dedicado a Gibraltar e os outros dois, a assuntos gerais. Uma máquina de escrever Facit portátil descansava na escrivaninha, e aos poucos percebia-se que o quarto, apesar de bem-arrumado, continha uma enorme quantidade de papel. Depois de uma breve discussão sobre o uso do gravador para preparar entrevistas em “cutup” (1), ele se instalou numa cadeira perto de uma janela. Fumava incessantemente, alternando um maço de English Ovals com um de Benson & Hedges. A medida que a entrevista progredia, o quarto se enchia de fumaça. Ele abriu a janela. A temperatura do lado de fora era de vinte e um graus, o dia de ano-novo mais quente da história de Saint Louis; uma jaqueta amarela voou e pousou no parapeito. Do quarto, no décimo segundo andar, avistavam-se os amplos telhados das casas de uma série de ruas particulares com portões nas duas extremidades, outrora o bairro mais distinto de Saint Louis. Num desses lares, no número 4664 da Pershing Avenue, é que ele nasceu. A tarde luminosa avançou. Os gritos débeis das crianças se ergueram das largas alamedas de tijolos onde ele havia brincado quando menino.

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- Você cresceu aqui?

Sim. Freqüentei a John Burroughs School e a Taylor School, estive no Oeste por um tempo, e daí fui para Harvard.

- Alguma relação com a firma de máquinas de calcular?

Meu avô. Veja, ele não inventou exatamente a máquina de calcular, mas a engenhoca que a fazia funcionar - ou seja, um cilindro cheio de óleo e um pistão perfurado que se move sempre para cima e para baixo com a mesma velocidade. Um princípio muito simples, como a maioria das invenções. E isso me deu algum dinheiro, não muito, mas algum.

- O que você fez em Harvard?

Estudei literatura inglesa. Com Tohn Livingston Lowes, Whiting. Freqüentei o curso de Kittredge. Essas são as principais pessoas de que me lembro. Morei na Adams House e então me cansei da comida e mudei para Claverly Hall, onde vivi os últimos dois anos. Não escrevi nada durante a faculdade.

- Quando e por que você começou a escrever?

Comecei a escrever por volta de 1950; tinha trinta e cinco anos na época; não parecia haver nenhuma motivação forte. Eu estava simplesmente me esforçando para pôr no papel, num estilo mais ou menos direto e jornalístico, alguma coisa sobre minhas experiências com o vício e os viciados.

- Por que se sentiu compelido a registrar essas experiências?

Eu não me senti compelido. Não tinha mais nada a fazer. Escrever me deu alguma coisa que fazer todos os dias. Não acho que os resultados tenham sido de modo algum espetaculares. Junky na verdade, não é bem um livro. Eu não tinha experiência com livros, naquela época.

- Onde foi isso?

Na Cidade do México. Eu estava vivendo perto da Sears, Roebuck, logo virando a esquina da Universidade do México. Tinha estado no exército por quatro ou cinco meses e estava lá por conta das forças armadas, estudando dialetos nativos. Fui para o México em parte porque as coisas estavam ficando muito difíceis com a situação das drogas na América. Conseguir drogas no México era muito fácil, de modo que eu não precisava ficar correndo atrás delas, e não havia nenhuma pressão da lei.

- Por que você começou a tomar drogas?

Bem, eu estava simplesmente entediado. Eu não parecia ter muito interesse em me tornar um executivo de publicidade bem-sucedido ou fosse lá o que fosse, ou em levar o tipo de vida que Harvard reserva para a gente. Depois que me tornei viciado em Nova York, em 1944, as coisas começaram a acontecer. Tive problemas com a lei, me casei, mudei para Nova Orleãs e depois fui para o México.

- Parece haver um bocado de voyeurismo classe média neste país, e no mundo literário, no que se refere ao vício, uma inequívoca reverência pelo viciado. Você aparentemente não partilha de nenhum desses pontos de vista.

Não, isso em geral não tem sentido. Penso que as drogas são interessantes principalmente como meios químicos para alterar o metabolismo e assim alterar aquilo que chamamos realidade, que eu definiria como um padrão mais ou menos constante de percepção.

- O que você pensa dos alucinógenos e das novas drogas psicodélicas, o LSD-25?


Penso que são extremamente perigosas, muito mais perigosas do que a heroína. Podem produzir estados de ansiedade insuportáveis. Tenho visto pessoas tentarem se atirar de janelas, ao passo que o viciado em heroína está interessado acima de tudo em ficar olhando para o seu próprio dedão. Fora a privação da droga, a maior ameaça para ele é uma overdose. Eu experimentei a maioria dos alucinógenos, sem ter reações de ansiedade, felizmente. O LSD-25 produziu em mim efeitos similares aos da mescalina. Como todos os alucinógenos, o LSD me proporcionou uma expansão da consciência, mais um ponto de vista alucinado do que uma verdadeira alucinação. Você pode olhar a maçaneta de uma porta e ela vai parecer girar, embora você esteja consciente de que isso é efeito da droga. E também cores como as de Van Gogh, com todas aquelas contorções e a fragmentação do universo.

- Você leu o livro de Henry Michaux sobre a mescalina?

A idéia dele foi entrar em seu quarto, fechar a porta e controlar as experiências. Eu tive as minhas experiências mais interessantes com mescalina quando fui para fora e passeei: cores, crepúsculos, jardins. Entretanto, produz uma ressaca terrível, coisa enjoativa. Deixa a gente doente e interfere na coordenação. Já tive todos os efeitos interessantes de que preciso, e não quero mais nenhuma repetição daquelas reações físicas extremamente desagradáveis.

- As visões das drogas e as visões da arte não se misturam?

Nunca. Os alucinógenos produzem estados visionários, ou uma espécie disso, mas a morfina e os seus derivados diminuem o grau de consciência dos processos íntimos, pensamentos e sentimentos. São anestésicos, pura e simplesmente. São absolutamente contra-indicados para o trabalho criativo, e incluo nesse grupo o álcool, a morfina, os barbitúricos, os tranqüilizantes - todo o espectro de drogas sedativas. Quanto a visões e heroína, tive um período alucinatório bem no começo do vício, por exemplo, a sensação de estar me movendo em alta velocidade através do espaço, mas, assim que o vício se estabeleceu, não tive mais visão nenhuma, e muito poucos sonhos.

- Por que parou de tomar drogas?

Eu estava vivendo em Tânger, em 1957, e tinha passado um mês num quarto minúsculo na casbá, olhando para o dedão do meu pé. O quarto estava cheio de caixas vazias de Eukodol; de repente me dei conta de que não estava fazendo nada. Estava morrendo. Estava simplesmente pronto para me acabar. Então voei para Londres e me entreguei ao dr. John Yerbury Dent para tratamento. Tinha ouvido falar de seu sucesso com o tratamento a base de apomorfina. A apomorfina é simplesmente a morfina fervida em ácido clorídrico; não vicia. O que a apomorfina fez foi regular meu metabolismo. É um regulador metabólico. Curou-me fisiologicamente. Eu já tinha me curado uma vez, em Lexington, e, embora eu estivesse afastado das drogas quando saí, havia um resíduo fisiológico. A apomorfina eliminou isso. Tenho tentado fazer com que pessoas neste país se interessem por ela, mas sem muito sucesso. A grande maioria - assistentes sociais, médicos - tem uma mentalidade policial no que se refere ao vício. Um oficial de justiça da Califórnia escreveu-me recentemente para perguntar sobre o tratamento de apomorfina. Vou lhe responder detalhadamente. Sempre respondo a cartas assim.

- Você teve alguma recaída?

Sim, umas duas. Breves. As duas foram corrigidas com apomorfina, e agora a heroína não é uma tentação para mim. Simplesmente não estou mais interessado nela. Tenho visto muita por aí. Conheço pessoas que são viciadas. Não tenho que usar nenhuma força de vontade. O dr. Dent sempre disse que força de vontade é uma coisa que não existe. Você tem que chegar a um estado mental em que não a quer ou não precisa dela.

- Você encara o vício como uma doença, mas também como uma realidade humana fundamental, um drama?

Ambos, absolutamente. Da mesma maneira como qualquer pessoa acaba se tornando alcoólatra. Eles começam a beber, isso é tudo. Gostam e bebem, daí se tornam alcoólatras. Fui exposto à heroína em Nova York - quer dizer, eu estava andando com pessoas que a usavam; experimentei; os efeitos eram agradáveis, continuei usando e me tornei viciado. Lembre-se de que, se puder ser obtida com facilidade, você terá um número infinito de viciados. A idéia de que o vício é de alguma maneira uma doença psicológica é, penso, totalmente ridícula. É tão psicológica quanto a malária. Ê uma questão de exposição. As pessoas, de modo geral, tomarão qualquer tóxico ou qualquer droga que lhes dê um efeito agradável, se estiver ao seu alcance. No Irã, por exemplo, o ópio era vendido em lojas até bem recentemente, e eles tinham três milhões de viciados numa população de vinte milhões. Existem também todas as formas de vício espiritual. Qualquer coisa que puder ser feita quimicamente poderá sê-lo de outras maneiras - isto é, se tivermos conhecimento suficiente dos processos envolvidos. Muitos policiais e agentes de narcóticos são viciados justamente no poder, em exercer uma espécie suja de poder sobre pessoas indefesas. O tipo sujo de poder: chamo isso de droga limpa - a legalidade; eles são a lei, a lei, a lei... e se perdessem esse poder, sofreriam sintomas excruciantes de privação. O quadro que temos de toda a burocracia russa, pessoas que estão exclusivamente preocupadas com poder e vantagens, isso deve ser um vício. Suponha que o percam? Bem, toda a vida deles foi assim.

- Você pode ampliar sua idéia de vício como imagem?

É apenas uma teoria e, eu sinto, inadequada ainda. Não acho que alguém realmente entenda o que é um narcótico ou como ele age, como ele mata a dor. Minha idéia é uma espécie de punhalada no escuro. Do modo como entendo, o que foi atingido na dor é, claro, a imagem, e a morfina deve de alguma forma, substituir isso. Sabemos que ela cria uma cobertura em torno das células e que os viciados são praticamente imunes a certos vírus, à gripe e a doenças respiratórias. É simples, porque o vírus da gripe tem que fazer um furo nos receptores das células. Como eles estão recobertos, quando a pessoa é viciada, o vírus não consegue penetrar. Tão logo a morfina é suprimida, os viciados aparecem imediatamente com resfriados e freqüentemente com gripe.

- Alguns esquizofrênicos também resistem a doenças respiratórias.

Há muito tempo atrás imaginei que houvesse similaridades entre o vício em fase terminal e a esquizofrenia terminal. Foi por isso que sugeri que viciassem essas pessoas em heroína, suprimissem a droga e verificassem se elas poderiam ser motivadas; em outras palavras, que eles descobrissem se elas atravessariam o quarto e pegariam uma seringa. Não é preciso dizer que não consegui ir muito longe, mas acho que seria interessante.

- Os narcóticos, então, desorganizam a percepção normal...

... e instalam em seu lugar uma fissura desordenada por imagens. Se as drogas não fossem proibidas na América, seriam o vício perfeito da classe média. Os viciados fariam o seu trabalho e voltariam para casa para consumir a gigantesca dose de imagens que os espera nos meios de comunicação de massa. Os junkies adoram ver televisão. Billie Holiday disse que sabia que estava largando as drogas quando deixou de gostar de ver TV. Ou então eles se sentam e lêem um jornal ou uma revista e, por Deus, o lêem de ponta a ponta. Conheci um velho junkie em Nova York que costumava sair e comprar um monte de jornais e revistas, alguns doces e vários maços de cigarros; daí ele se sentava em seu quarto e lia todos aqueles jornais e revistas de uma só vez. Indiscriminadamente. Cada palavra.

- Você parece estar fundamentalmente interessado em ultrapassar o aparato consciente, racional, para o qual a maioria dos escritores dirige os seus esforços.

Não sei para onde a ficção normalmente se dirige, mas estou me dirigindo deliberada mente para toda aquela área do que chamamos sonho. O que é um sonho precisamente? Uma certa justaposição de palavra e imagem. Recentemente fiz uma porção de experimentos com álbuns de recortes. Leio no jornal alguma coisa que me lembra ou que tem relação com alguma coisa que escrevi. Então recorto a fotografia ou o artigo e o colo no álbum de recortes, ao lado de um trecho do meu livro. Ou, se eu estou andando por uma rua e de repente vejo uma cena do meu livro, fotografo-a e coloco-a num álbum de recortes. Vou lhe mostrar algumas. Descobri que, quando estou preparando uma página, quase invariavelmente sonho à noite com alguma coisa relacionada a essa justaposição de palavra e imagem. Em outras palavras, tenho me interessado precisamente na movimentação de palavra e imagem em linhas de associação muito, muito complexas. Faço uma porção de exercícios naquilo que chamo de viagem no tempo, tomando coordenadas, tal como o que fotografei no trem, o que eu estava pensando naquele momento, o que estava lendo e o que escrevi; tudo isso para ver o quanto eu consigo me lançar de volta, completamente, naquele determinado ponto do tempo.

- Em Nova Express você indica que o silêncio é um estado desejável?

O estado mais desejável. Num certo sentido, um uso especial de palavras e imagens pode conduzir ao silêncio. Os álbuns de recortes e a viagem no tempo são exercícios para expandir a consciência, para me ensinar a pensar em blocos de associação mais do que em palavras. Recentemente passei um tempo estudando sistemas hieroglíficos, o egípcio e o maia. Todo um bloco de associações... bum!... assim! As palavras - pelo menos do jeito que as usamos - podem ser obstáculos ao que chamo de experiência incorpórea. Já é tempo de pensarmos em deixar o corpo para trás.

- Marshall McLuhan disse que você acreditava que a heroína era necessária para transformar o corpo humano num habitat que inclui o universo. Mas pelo que me tem dito, você não está absolutamente interessado em transformar o corpo num habitat.

Não, a heroína diminui a consciência. O único benefício para mim, como escritor (além de me pôr em contato com toda aquela fauna do submundo) (2), veio depois que me livrei dela. O que quero fazer é aprender a ver mais o que está lá fora, a olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa percepção do que nos cerca. Beckett quer ir para dentro. Antes ele estava numa garrafa e agora está na lama. Eu aponto na outra direção: para fora.

- Você já foi capaz de pensar em imagens, com a voz interior silenciada por algum período de tempo?

Estou ficando mais hábil nisso, em parte através do meu trabalho com os álbuns de recortes e pela tradução das relações entre palavras e imagens. Tente isto: Memorize cuidadosamente o significado de uma passagem, então leia-a; vai descobrir que na verdade você pode lê-la sem que as palavras façam um som que seja no ouvido da mente. Experiência extraordinária, e que vai se estender aos sonhos. Quando você começa a pensar em imagens, sem palavras, você está bem a caminho.

- Por que o estado sem palavras é tão desejável?

Penso que é o sentido da evolução. Penso que as palavras são um enorme desvio, a maneira lenta e antiquada de fazer as coisas, um instrumento precário, e no futuro serão deixadas de lado provavelmente mais cedo do que pensamos. Isso é algo que vai acontecer na era espacial. A maioria dos escritores sérios se recusa a se adaptar às coisas que a tecnologia está fazendo. Eu nunca fui capaz de entender esse tipo de medo. Muitos deles têm medo de gravadores, e a idéia de usar qualquer meio mecânico com propósitos literários lhes parece uma espécie de sacrilégio. Essa é uma objeção aos cutups. Tem havido muito disso, uma espécie de reverência supersticiosa pela palavra. Meu Deus, eles dizem, você não pode cortar essas palavras.(3). Por que não posso? Percebo que é muito mais fácil que aqueles que não são escritores - médicos, advogados, engenheiros ou qualquer pessoa aberta, razoavelmente inteligente se interessem pelos cutups do que os que o são.

-Como você se interessou pela técnica do cutup?

Um amigo, Brion Gysin, pintor e poeta americano que viveu trinta anos na Europa, foi, tanto quanto sei, o primeiro a criar cutups. O seu poema cutup, Minutes to go, foi transmitido pela BBC e mais tarde publicado num panfleto. Eu estava em Paris no verão de 1960; isso foi depois da publicação lá de Almoço nu (Naked Lunch). Fiquei interessado nas possibilidades dessa técnica e comecei a experimentá-la. Claro que, pensando bem, The Waste Land foi a primeira grande colagem cutup, e Tristan Tzara também tinha feito alguma coisa nesse sentido. Dos Passos usou a mesma idéia nas seqüências de The camera eye, em U.S.A. Senti que estivera trabalhando em direção a essa meta; assim, foi uma grande revelação para mim quando realmente vi isso sendo feito.

- O que os cutups oferecem ao leitor que uma narrativa convencional não faz?

Qualquer passagem narrativa ou qualquer passagem, digamos, de imagens poéticas está sujeita a um sem-número de variações, e todas podem ser interessantes e válidas por si mesmas. Uma página de Rimbaud cortada e rearranjada lhe dará imagens bastante novas. Imagens de Rimbaud verdadeiras imagens de Rimbaud -, só que novas.

- Você deplora a acumulação de imagens e ao mesmo tempo parece estar procurando novas imagens.

Sim, é parte do paradoxo de qualquer um que esteja trabalhando com palavra e imagem, e, afinal de contas, é isso o que um escritor ainda faz. Um pintor também. Os cutups estabelecem novas relações entre imagens, e o nosso campo de visão conseqüentemente se expande.

- Em vez de se dar o trabalho de utilizar tesouras e todos esses pedaços de papel, você não poderia obter o mesmo efeito simplesmente fazendo livres-associações na máquina de escrever?

Sua mente não consegue ser tão abrangente desse modo. Agora, por exemplo, se eu quisesse fazer um cutup disto [pegando um exemplar do Nation], há muitas maneiras de fazê-la. Eu poderia ler entrecruzando as colunas; poderia dizer: "Os nervos dos homens de hoje nos cercam. Cada expansão tecnológica que sai é elétrica e envolve um ato de ambiente coletivo. O próprio sistema do meio ambiente nervoso humano pode ser reprogramado com todos os seus valores individuais e sociais porque ele é essência. Ele programa logicamente tão rápido quanto qualquer cadeia de rádio é engolida pelo novo meio ambiente. A ordem sensorial". Você descobre que muitas vezes tem tanto sentido quanto o original. Você aprende a deixar palavras de fora e a fazer conexões. [Gesticulando] Suponha que eu cortasse isso aqui no meio, e colocasse isso aqui em cima. A sua mente simplesmente não poderia executá-lo. É como tentar manter muitos movimentos de xadrez na mente, você simplesmente não conseguiria fazê-lo. Os mecanismos mentais de repressão e seleção também estão operando contra você.

- Você acredita que uma audiência futuramente possa ser treinada para responder a cutups?

Claro, porque os cutups tornam explícito um processo psicosensorial que está acontecendo o tempo todo de qualquer jeito. Alguém está lendo um jornal, seu olho segue a coluna do modo aristotélico apropriado, uma idéia e uma sentença de cada vez. Mas subliminarmente ele está lendo as colunas de ambos os lados e está consciente da presença da pessoa sentada ao seu lado. Isso é um cutup. Eu estava sentado numa lanchonete em Nova York tomando meu café com roscas. Estava pensando que a gente realmente se sente um pouco encaixotado em Nova York, como que vivendo numa série de caixas. Olhei pela janela e lá estava um grande caminhão de mudanças. Isso é um cutup - uma justaposição do que está acontecendo fora com o que você está pensando. Faço disso uma prática quando ando pela rua. Digo: Quando cheguei aqui vi aquela placa, eu estava pensando isso, e quando volto para casa datilografo tudo isso. Uma parte desse material eu uso e outra não. Tenho literalmente milhares de páginas com anotações aqui, cruas, e mantenho um diário também. Num certo sentido isso é viajar no tempo. A maioria das pessoas não vê o que está acontecendo à sua volta. Esta é a minha principal mensagem para os escritores: Pelo amor de Deus, mantenham seus olhos abertos. Percebam o que está acontecendo à sua volta. Quero dizer, estou andando pela rua com amigos. E pergunto, "Você viu aquele tipo que acabou de passar?" Não, eles não o viram. Tive momentos muito agradáveis no trem, vindo para cá. Não viajava de trem há anos. Descobri que não havia cabines coletivas. Peguei uma cabine individual; então pude instalar minha máquina de escrever e olhar pela janela. Estava tirando fotos, ao mesmo tempo. Também notei todas as placas e o que eu estava pensando naquele instante, percebe. E consegui algumas justaposições extraordinárias. Por exemplo, um amigo meu tem um apartamento em Nova York. Ele disse, "Toda vez que saímos de casa e voltamos, se deixamos a porta do banheiro aberta, aparece um rato na casa". Eu olho pela janela, lá está o Serviço de Controle de Peste.

- O problema central na discussão dos cutups parece estar na base lingüística em que operamos, a sentença declarativa afirmativa. Vai custar um bocado para se mudar isso.

Sim, infelizmente é um dos grandes erros do pensamento ocidental, toda essa proposição do isso-ou-aquilo. Você se lembra de Korzybski e de sua idéia da lógica não-aristotélica? O pensar isso-ou-aquilo simplesmente não é um pensar acurado. Esse não é o modo como as coisas ocorrem, e sinto que a construção aristotélica é uma das grandes algemas da civilização ocidental. Os cutups são um movimento em direção à derrubada disso. Posso imaginar que seria muito mais fácil obter uma aceitação dos cutups por parte, possivelmente, dos chineses, porque, você vê, eles têm várias maneiras de ler qualquer ideograma dado. Já é um cutup.

- O que vai acontecer com a trama normal, na ficção?

A trama sempre teve a função definida de direção de palco, de levar as personagens daqui para lá, e isso vai continuar, mas as novas técnicas, como o cutup, vão envolver muito mais da capacidade total do observador. Vão enriquecer toda a experiência estética, expandi-la.

- Nova Express é um cutup de muitos escritores?

Joyce está lá. Shakespeare, Rimbaud, alguns escritores de quem as pessoas não ouviram falar, alguém chamado Jack Stern. Há Kerouac. Não sei, quando você começa a fazer esses foldings (4) e cutups você perde a conta. Genet, claro, é alguém que admiro muito. Mas o que ele está fazendo é prosa clássica francesa. Ele não é um inovador verbal. Também Kafka, Eliot; e um dos meus favoritos é Joseph Conrad. Minha história, They just fade away, é um folding (em vez de cortar, você dobra) de Lord Jim. Na verdade, é quase um recontar da história de Lord Jim. Meu Stein é o mesmo Stein de Lord Jim. Richard Hughes é um outro favorito meu. E Graham Greene. Como exercício, quando faço uma viagem, como a de Tânger para Gibraltar, anoto isso em três colunas, num caderno de anotações que sempre carrego comigo. Uma coluna conterá simplesmente um relato da viagem, o que aconteceu: cheguei ao terminal aéreo, o que foi dito pelos funcionários, o que ouvi no avião, em que hotel me registrei. A coluna seguinte contém minhas memórias: ou seja, o que eu estava pensando no momento, as lembranças que foram despertadas pelos meus encontros. E a terceira coluna, que eu chamo minha coluna de leituras, dá citações de qualquer livro que eu tenha levado comigo. Tenho praticamente uma novela inteira só das minhas viagens para Gibraltar. Além de Graham Greene, tenho usado outros livros. Usei The wonderful country de Tom Lea em uma viagem. Vejamos... e The cocktail party de Eliot; In hazard de Richard Hughes. Por exemplo, estou lendo The wonderful country, e o herói está exatamente cruzando a fronteira para o México. Bem, exatamente nesse ponto eu chego na fronteira espanhola, então eu anoto isso na margem. Ou estou num barco ou num trem e estou lendo The quiet american (O americano tranqüilo); olho em torno e vejo se há algum americano tranqüilo a bordo. Com certeza, lá está um tipo tranqüilo de rapaz americano, de cabelo à marujo, bebendo uma garrafa de cerveja. É extraordinário, se você mantém realmente seus olhos abertos. Eu estava lendo Raymond Chandler, e uma das suas personagens era um pistoleiro albino. Meu Deus, se não havia um albino na sala. Ele não era um pistoleiro. Quem mais? Espere um minuto, vou checar os meus livros de coordenadas para ver se há alguém que esqueci - Conrad, Richard Hughes, ficção científica. um bocado de ficção científica. Eric Frank Russell tem escrito uns livros muito, muito interessantes. Aqui está um, The star vírus; duvido que você tenha ouvido falar nele. Ele desenvolve um conceito aqui do que ele chama deadliners (5), que têm esse estranho tipo de olhar esquálido. Eu li isso quando estava em Gibraltar, e comecei a encontrar deadlíners por toda a parte. Na história há uma lagoa de peixes, e vários jardins de flores. Meu pai sempre foi muito interessado em jardinagem.

- Em vista de tudo isso, o que acontecerá com a ficção nos próximos vinte e cinco anos?

Em primeiro lugar, penso que vai haver mais e mais fusão de arte e ciência. Os cientistas já estão estudando o processo criativo, e penso que toda a fronteira entre arte e ciência irá se romper e que os cientistas, estão ficarão mais criativos e os escritores, mais científicos. E não vejo razão alguma por que o mundo artístico não possa absolutamente fundir-se com a Madson Avenue (6). A arte Pop é um passo nessa direção. Por que não podemos ter aúncios de publicidade com belas palavras e belas imagens? Algumas das mais belas fotografias em cores já aparecem nos anúncios de uísque, tenho notado. A ciência também vai descobrir para nós como se formam na verdade os blocos de associação.

- Acha que isso irá destruir a magia?

De forma alguma. Eu diria que vai aumentá-la.

- Já fez alguma coisa com computadores?

Não fiz nada, mas tenho visto alguma poesia de computador. Posso pegar um desses poemas de computador e tentar achar correlatos - isto é, imagens para acompanhá-los; é bem possível.

- O fato de que venha de uma máquina diminui o seu valor para você?

Penso que todo produto artístico se sustenta ou não por aquilo que está lá.

- Então você não fica irritado pelo fato de um chimpanzé poder fazer uma pintura abstrata?

Se ele fizer uma boa, não. As pessoas me dizem, "Ah, é tudo muito bom, mas você o conseguiu por cutup". Digo que isso não tem nada a ver, como eu consegui. O que é qualquer texto se não um cutup? Alguém tem que programar a máquina; alguém tem que fazer o cutup. Lembre-se de que primeiro fiz uma seleção. De centenas de sentenças possíveis que poderia ter usado, escolhi uma.

- Por falar nisso, uma imagem do Nova express me volta continuamente, e não a entendo muito bem: o quarto cinza, "irrompendo no quarto cinza".

Vejo aquilo muito como o quarto-escuro fotográfico onde as fotografias da realidade são na verdade produzidas. Implícita em Nova express está uma teoria de que o que chamamos realidade é na verdade cinema. É um filme - o que chamo um filme biológico. O que aconteceu é que o submundo e também a polícia de Nova, romperam o cerco aos guardas e entraram no quarto escuro onde os filmes são processados, onde eles estão em condição de velar negativos e impedir eventos de acontecer. Eles são como a polícia de qualquer lugar. Tudo bem, você tem uma situação ruim aqui, onde a quadrilha de Nova está a ponto de explodir o planeta. Então o Garoto Heavy Metal (Heavy Metal Kid) chama a polícia de Nova. Uma vez que você os tem lá dentro, meu Deus, eles começam a agir como qualquer polícia. São sempre uma corporação ambivalente. Lembro-me de uma vez na América do Sul em que dei queixa na polícia de que uma câmera fotográfica tinha sido roubada e eles terminaram me prendendo. Eu não a tinha registrado ou algo assim. Em outras palavras, uma vez que você os tem em cena, eles realmente começam a meter o nariz. Uma vez que a lei começa a fazer perguntas, é uma coisa sem fim. Por "polícia de Nova", leia "tecnologia", se quiser.

- Mary McCarthy comentou das origens marginais das suas personagens em Naked lunch (Almoço nu). Quais são as outras derivações delas?

O submundo marginal foi exatamente o que pretendi criar - um tipo de folclore bunda, de botequim, de cidade pequena, do meio-oeste, muito a minha própria formação. Esse mundo era uma parte integral da América e não existia em nenhum outro lugar, pelo menos não da mesma forma. Minha família era sulista do lado de minha mãe. Meu avô era um pastor metodista itinerante, com treze filhos. A maioria deles rumaram para Nova York e foram muito bem-sucedidos na publicidade e em relações públicas. Um deles, um tio, era um mestre criador de imagens, Ivy Lee, agente de publicidade de Rockefeller.

- É verdade que você fez um bocado de interpretações teatrais para criar suas personagens quando estava terminando Naked Lunch?

Desculpe, não há uma descrição acurada da criação de um livro, ou um evento. Leia os romances de "Alexandria" (O quarteto de Alexandria), de Durrell para quatro maneiras diferentes de olhar a mesma coisa. Gysin me viu colando fotografias na parede de um hotel em Paris e usando um gravador para interpretar várias vozes. Na verdade, ele foi escrito principalmente em Tânger, depois de eu ter me curado com o dr. Dent, em Londres, em 1957. Voltei para Tânger e comecei a trabalhar sobre um monte de anotações que tinha feito num período de anos. A maior parte do livro foi escrita nessa época. Fui para Paris por volta de 1959, e tinha uma pilha enorme de manuscritos. Girodias estava interessado, e me perguntou se eu podia ter o livro pronto em duas semanas. Esse é o período a que Brion está se referindo quando, de manuscritos num período de anos, eu montei o que se tomou o livro a partir umas mil páginas, ou algo assim.

- Mas você realmente se pôs de pé e representou, digamos, o dr Benway

Sim. O dr. Benway data de uma história que escrevi em 1938 com um amigo meu, Kells Elvins, que já morreu. Esse é mais ou menos o único texto literário que escrevi antes de Junky (Junkie). E nós positivamente representamos a coisa toda. Decidimos que essa era a maneira de escrever. Agora qui está esse cara, o que ele diz, o que ele faz? O dr. Benway meio que emergiu muito espontaneamente enquanto compúnhamos esse texto. Uma coisa que tenho pensado em fazer com os meus álbuns de recortes é manter fichas de cada personagem, quase como fichas policiais: hábitos, idiossincrasias, lugar de nascimento, fotografias. Isto é, se vejo alguém numa revista ou jornal que se parece com o dr. Benway (e muitas pessoas representaram o dr. Benway, espécie de atores amadores), eu pego suas fotografias. Muitas das minhas personagens surgem para mim primeiro fortemente como vozes. É por isso que uso um gravador. Elas também passam de um livro para outro.

- Alguns deles têm suas origens em pessoas reais?

Maria Hambúrguer {Hamburger Mary) é uma. Havia um lugar em Nova York chamado Hamburger Mary's. Eu estava no Hamburger Mary's quando um amigo me deu um lote de syrettes (7) de morfina. Essa foi minha primeira experiência com morfina, e então montei todo um quadro da Maria Hamburguer. Ela também é uma pessoa real. Não gosto de dar o seu nome por medo de ser processado por difamação, mas ela era uma cientóloga que começou numa espelunca de hambúrguer em Portland, no Oregon, e hoje tem onze milhões de dólares.

- E quanto ao Garoto Heavy Metal (Heavy Metal Kid)?

Aí de novo, origens bastante complicadas, parcialmente baseado na minha própria experiência. Eu senti que "heavy metal" (8) era uma espécie de expressão derradeira do vício, que há alguma coisa de fato metálica no vício, que o estágio final alcançado não é tão vegetal como mineral. É cada vez mais inanimado, em todo caso. Veja, como disse o dr. Benway, eu agora decidi que a heroína não é verde, mas azul. Algumas das minhas personagens me vêm em sonhos, Papai Pernalonga [Daddy Long Legs], por exemplo. Uma vez, numa clínica, tive um sonho em que vi um homem nessa clínica decadente, e seu nome no sonho era Papai Pernalonga. Muitos personagens me vieram assim num sonho, e então eu os elaboro a partir daí. Eu sempre escrevo todos os meus sonhos. É por isso que tenho aquele caderno ali ao lado da cama.

- Antes você mencionou que se a heroína não lhe tivesse dado nada mais, pelo menos ela o havia posto em contato com a fauna do submundo.

Sim, o submundo, os ladrões da antiga, punguistas, e pessoas assim. Eles são uma raça em extinção; restam muito poucos desses da antiga. É, bem, eles eram um espetáculo.

- Qual a diferença entre o junkie moderno e o junkie de 1944?

Uma coisa, todos esses jovens viciados; isso era bastante desconhecido em 1944. A maioria dos que conheci eram homens de meia-idade ou velhos. Eu conheci alguns dos antigos punguistas e gatunos e "artistas-do-troco". Estes tinham um conto chamado "A nota", um golpe de troco. Eu nunca consegui descobrir como funciona. Um homem que conheci enganou todos os caixas da Grand Central Station de Manhattan com esse golpe. Começa com uma nota de vinte dólares. Você lhes dá uma nota de vinte dólares e quando recebe o troco você diz, "Bem, espere um pouco, eu devo estar sonhando, afinal de contas eu tenho trocado". Primeira coisa que você sabe, o caixa perde dez dólares. Um dia esse "artista-de-troco" foi à Grand Central, mesmo sabendo que estava queimado, mas quis trocar vinte dólares. Bem, um cara tocou o alarme, e eles o prenderam. Quando chegaram à corte de justiça e tentaram explicar o que tinha acontecido, nenhum deles pôde fazê-la. Eu guardo histórias como essa nos meus arquivos.

- No seu apartamento em Tânger?

Não, está tudo aqui neste quarto.

- Para, no caso de Tânger explodir, estar tudo a salvo?

Bem, mais do que isso. Eu preciso de tudo. Trouxe tudo. É por isso que tenho que viajar de navio e de trem, porque, bem, só para lhe dar uma idéia, esta é uma pasta fotográfica. [Bate]. Aquilo tudo são fotografias e mais fotografias. Quando me sento para escrever, posso de repente pensar em alguma coisa que escrevi três anos atrás que deve estar naquela pasta ali. Talvez não esteja. Estou sempre percorrendo essas pastas. É por isso que preciso de um lugar onde eu possa realmente espalhá-las, para ver o que é o quê. Eu estou procurando um determinado papel, freqüentemente isso me toma muito tempo, e algumas vezes não o acho. Aquelas gavetas da cômoda estão cheias de pastas. Todas aquelas gavetas dos armários estão cheias de pastas. Está muito bem organizado. Aqui está uma pasta, o FILME DE 1920, que em parte contém algumas idéias para filmes. Aqui está TODOS OS TRISTES VELHOS SHOWMEN; tem alguma coisa sobre ladrões de banco nela. Aqui está A GAZETA DA POLÍCIA DE NOVA. Esta é ANALOG, que contém material de ficção-científica. Esta é o DIÁRIO DE BORDO DO CAPITÃO. Eu tenho estado interessado em histórias do mar, mas sei tão pouco sobre o mar, hesito em fazer muito. Eu coleciono desastres marítimos como o do Mary Celeste. Aqui está uma pasta sobre o sr. Luce.

- Você admira o sr. Luce?

Eu não o admiro absolutamente. Ele montou um dos maiores bancos de palavras e imagens do mundo. Quero dizer, lá estão milhares de fotos, milhares de palavras sobre qualquer coisa que seja, tudo em seus arquivos. Todas as melhores fotos vão para os arquivos. Claro, elas são reduzidas a microfotos agora. Tenho me interessado pelo sistema maia, que era um calendário de controle. Veja, o calendário deles postulava realmente como todo mundo deveria se sentir num certo tempo, com dias de sorte, dias de azar, etc. E sinto que o sistema de Luce é comparável a isso. É um sistema de controle. Não tem nada a ver com reportagem. A Time-Life-Fortune é uma espécie de organização policial.

- Você disse que o seu próximo livro será sobre o oeste americano e um pistoleiro.

Sim, tenho pensado nisso há anos e tenho centenas de páginas de anotações sobre todo o conceito do pistoleiro. O duelo de revólveres era uma espécie de contenda Zen, uma verdadeira contenda espiritual como a arte da esgrima Zen.

- Esse seria um cutup, ou uma narrativa mais convencional?

Eu usaria cutups intensamente na preparação, porque eles me dariam todo o tipo de facetas de personagem e lugar, mas a versão final seria uma narrativa linear. Eu não gostaria de ficar atolado em detalhes factuais demais, mas gostaria de pesquisar no Novo México ou Arizona, embora as cidades de lá tenham se tornado atrações turísticas sintéticas. Ocasionalmente tenho a sensação de estar me repetindo no meu trabalho, e gostaria de fazer alguma coisa diferente - quase uma mudança deliberada de estilo. Não sei se isso é possível, mas quero tentar. Tenho pensado no faroeste durante anos. Quando menino, fui para a escola, no Novo México, e durante a guerra estive mobilizado em Coldspring, no Texas, perto de Conroe. Aquilo é um lugar genuinamente selvagem, e conheci algumas verdadeiras personagens lá. Por exemplo, um camarada que na verdade vivia no leste do Texas. Ele estava sempre tendo problemas com seus vizinhos, que suspeitavam que ele estivesse roubando gado, penso que com boa razão. Mas ele era competente com uma arma, e não havia ninguém que se levantasse contra ele. Finalmente, foi morto. Estava bêbado e foi dormir debaixo de uma árvore, perto de uma fogueira de acampamento. O fogo incendiou a árvore, que caiu em cima dele. Estou interessado em estender os formatos de jornal e revista para os assim chamados materiais literários. Veja, esta é uma das minhas tentativas. Isto vai ser publicado numa pequena revista, The Sparrow.

- [lendo]: "The CoIdspring News; todas as notícias que cabem nós imprimimos; domingo, 17 de setembro de 1899; Editor: William Burroughs". Aqui está Bradley Martin de novo.

Sim, ele é o pistoIeiro. Ainda não tenho certeza do que vai acontecer depois que Clem o acusar de roubo de gado. Acho que Clem vai para Coldspring e lá há um tiroteio entre ele e o pistoleiro. Ele vai matar Clem, obviamente. Clem é praticamente um homem morto. Clem vai ser liquidado, e pensa que pode enfrentar Bradley Martin, e Bradley Martin vai matá-lo, isso é certo.

- Outras personagens suas vão reaparecer? O dr. Benway?

Ele seria o médico local. Isso é o que eu gostaria de fazer, veja, usar todas essas personagens numa pura história de faroeste. Lá estariam o sr. Bradley, o sr. Martin, cujo nome é Bradley Martin; lá estaria o dr. Benway; e teríamos aqueles vários espetáculos itinerantes de vigarice e medicina que surgem com o Garoto Subliminar (Subliminal Kid) e todos os trapaceiros. Esse seria o grande dia para todos aqueles jecas.

- Você pensa no artista como um trapaceiro?

Num certo sentido. Veja, um verdadeiro trapaceiro é um criador. Ele cria um cenário. Não, um trapaceiro é mais um diretor de cinema do que um escritor. O Garoto Amarelo (Yellow Kid) criou todo um cenário, todo um elenco de personagens, uma corretora inteira, um banco todo. Era exatamente como um estúdio de cinema.

- E quanto aos viciados?

Bem, vai haver um bocado de vício de morfina. Lembre-se de que havia uma quantidade muito grande de viciados naquele tempo. Jesse James era viciado. Começou a usar morfina para um ferimento no pulmão, e não sei se foi permanentemente viciado, mas tentou se matar. Tomou dezesseis grãos de morfina, e isso não o matou, o que demonstra uma tolerância incrível. De modo que deve ter sido viciado em alto grau. Um bronco, caipira brutal isso é o que ele era, como Dillinger. E havia tantas velhas senhoras gentis que não se sentiam bem se não tomassem o seu infuso do dr. Jones todo dia.

- E quanto ao Menino Verde (Green Boy), Izzy Empurrão (Izzy the Push), Tony Verde (Green Tony), Sammy Açougueiro (Sammy the Butcher) e Willie Dedo-Duro (Willie the Fink)?

Veja, todos eles poderiam ser personagens de faroeste, exceto Izzy Empurrão. Os edifícios não eram suficientemente altos naquela época. Defenestração, incidentalmente, é um fenômeno muito interessante. Algumas pessoas que são propensas a isso não vão viver em edifícios altos. Elas chegam perto de uma janela, alguém na sala ao lado ouve um grito, e elas se foram. "Caiu ou pulou", é a frase. Eu acrescentaria, "ou foi empurrado".

- Que outros tipos de personagem lhe interessam?

Não as pessoas dos anúncios de publicidade ou televisão, nem o carteiro americano ou a dona-de-casa classe média; tão pouco o rapazola lutando para ser alguém na vida. Todo o mundo das altas finanças me inteessa, os homens como Rockefeller, que eram tipos de organismos especializados que podiam existir num determinado meio ambiente. Ele era realmente uma máquina de fazer dinheiro, mas duvido que pudesse fazer dez centavos hoje, porque requeria o velho capitalismo do laissez-faire. Era um organismo monopolista especializado. Meu tio Ivy criou imagens para ele. Não consigo entender por que pessoas como J. Paul Getty tem que aparecer com uma imagem tão chocha e desinteressante. Ele decide escrever a história de sua vida. Nunca li nada tão insípido, tão completamente destituído de qualquer brilho. Bem, afinal de contas, ele foi um grande playboy na juventude. Devia haver alguma coisa acontecendo. Nada disso está no livro. Aqui está ele, o único homem de enorme fortuna que opera sozinho, mas não há ninguém para apresentar a imagem. Bem, sim, mesmo eu não me importaria de fazer esse tipo de serviço. Eu gostaria de pegar alguém como Getty e tentar achar uma imagem para ele que fosse de algum interesse. Se Getty quer construir uma imagem, por que ele não contrata um escritor de primeira classe para escrever sua história? Nesse sentido, a publicidade tem um grande caminho pela frente. Eu gostaria de ver uma história de Norman Mailer ou John O'Hara que apenas faça alguma menção de um produto, digamos, Southern Comfort (9). Eu posso ver a história de O'Hara. Seria sobre alguém que entrou num bar e pediu Southern Comfort; eles não tinham, e ele se mete numa longa, estúpida discussão com o garçom do bar. Não deveria ser forçada; a história tem que ser interessante em si mesma, de modo que as pessoas leiam isso como lêem qualquer história na Playboy, e Southern Comfort teria a garantia de que as pessoas olhariam aquele anúncio por um certo número de minutos. Entende o que quero dizer? Eles vão ler a história. Agora, há muitas outras idéias; você poderia ter histórias em quadrinhos em série, histórias seriadas. Bem, tudo o que temos que fazer é ter James Bond fumando uma certa marca de cigarros.

- Você uma vez não trabalhou para uma agência de publicidade?

Sim, depois que saí de Harvard, em 1936. Tinha feito algum trabalho de pós-graduação em antropologia. Tive um relance da vida acadêmica e não gostei nada dela. Parecia haver muita intriga de faculdade, chás de faculdade, bajulação do chefe do departamento, e assim por diante. Aí passei um ano como redator nessa pequena agência de publicidade, desde então extinta, em Nova York. Tínhamos um bocado de contas bem estranhas. Havia um produto chamado Cascata (de ação purgativa) para intensificar a atividade do cólon, e uma coisa chamada Endocreme. Supostamente fazia as mulheres parecerem mais jovens, pois continha alguns hormônios sexuais femininos. A Comissão de Comércio Interestadual estava sempre no encalço. Como você pode ver, recentemente tenho pensado muito sobre publicidade. Afinal de contas, eles estão fazendo o mesmo tipo de coisa. Estão interessados na manipulação precisa da palavra e da imagem. De qualquer modo, depois desse jogo da publicidade, estive no exército por pouco tempo. Fui dispensado honrosamente, e então aqueles serviços estranhos, habituais em tempo de guerra: garçom de bar, exterminador, repórter, e serviços de fábrica e escritório. Daí o México, um lugar sinistro.

- Por que sinistro?

Eu estive lá durante o governo de Alemán. Se você entrava num bar, havia pelo menos umas quinze pessoas lá dentro carregando armas. Todo mundo andava armado. Embebedavam-se e eram uma ameaça para qualquer criatura viva. Quero dizer, sentado num salão de bar, você tinha que estar sempre pronto para se jogar no chão. Tive um amigo que foi alvejado, morto. Mas ele pediu por isso. Estava brandindo sua pequena automática 25 pelo bar, e um mexicano o estourou com uma 45. Eles registraram a morte como causa natural, porque o assassino era um figurão político. Não houve escândalo, mas era realmente o quanto valia a sua vida ao entrar num salão de bar. E tive aquele acidente terrível com Joan Vollmer, minha mulher. Eu tinha um revólver que estava planejando vender a um amigo. Eu o estava examinando e ele disparou - matando-a. Começou um rumor de que eu estava tentando acertar num copo de champanhe na cabeça dela, no estilo de Guilherme Tell. Absurdo e falso. Então houve um grande desarmamento. A Cidade do México tinha um dos índices de homicídio per capita mais altos do mundo. Uma outra coisa, toda vez que você se virava tinha um tira mexicano com a mão estendida, achando algum erro nos seus papéis, ou em alguma coisa, simplesmente qualquer coisa a que ele pudesse se agarrar. "Papéis muito ruins, senor". Realmente era um pouco demais, o governo de Alemán.

- E do México?

Eu fui para a Colômbia, Peru e Equador, apenas dando uma olhada: eu estava particularmente interessado na região amazônica do Peru, onde tomei uma droga chamada yagé, Bannisteria caapi, um alucinógeno tão poderoso quanto a mescalina, creio. A viagem toda me deu uma tremenda quantidade de material. Muitas dessas experiências entraram em The ticket that exploded, que é uma espécie de intermediário entre Naked lunch e The soft machine. Não é um livro com o qual eu esteja satisfeito, no que se refere a sua forma atual. Se chegasse a ser publicado nos Estados Unidos, eu teria que reescrevê-la. The soft machine, que sairá aqui no devido tempo, é uma expansão das minhas experiências sul-americanas, com prolongamentos surrealistas. Quando eu o reescrevi, recentemente, incluí cerca de sessenta e cinco páginas de narrativa linear relativas ao dr. Benway, e ao Marinheiro (The Sailor), e vários personagens do Naked lunch. Essa gente emerge por toda parte.

- Então da América do Sul você foi para a Europa. A mudança geográfica é tão importante como já foi uma época para a literatura americana?

Bem, se eu não tivesse coberto tanto chão, não teria encontrado as dimensões extras de personagem e extremidade que fazem a diferença. Mas penso que a era do expatriado está definitivamente encerrada. Está ficando cada vez mais desconfortável, cada vez mais caro, e cada vez menos compensador viver no exterior, pelo menos no que me diz respeito. Agora estou particularmente interessado em condições tranqüilas para escrever - em poder me concentrar - e não tanto no lugar em que estou. Para mim, Paris é hoje uma das cidades mais desagradáveis do mundo. Eu simplesmente a detesto. A comida é intragável. Ou é muito cara, ou você simplesmente não consegue comê-la. Para conseguir um bom sanduíche às três horas da tarde, tenho que pegar um táxi e percorrer todo o caminho até a Margem Direita. Aqui tudo o que tenho que fazer é pegar o telefone. Eles me mandam um club sandwich e um copo de leite desnatado, que é tudo que eu quero para o almoço, afinal de contas. Os franceses se tornaram muito enjoados e estão ficando cada vez mais e mais enjoativos. A Guerra da Argélia, e todos aqueles milhões de pessoas trazidas de volta para a França, e todas elas profundamente insatisfeitas. Não sei, acho que a atmosfera lá está desagradável e não conduz a nada. Você não consegue um apartamento. Não consegue um lugar tranqüilo para trabalhar. O melhor que pode conseguir é um quartinho insignificante de hotel em algum lugar. Se eu quiser ter alguma coisa como isto, me custa trinta dólares por dia. A principal coisa que descobri depois de vinte anos fora de Saint Louis é que o padrão de serviço daqui é muito melhor que o de Nova York. Estas são acomodações do Claridge's ou do Ritz. Se eu pudesse pagá-lo, mantê-lo, este seria um lugar ideal para mim. Não há um som aqui. Tem sido muito proveitoso para o trabalho. Tenho bastante espaço aqui para espalhar todos os meus papéis em todas essas gavetas e prateleiras. Ê calmo. Quando quero alguma coisa para comer, pego o telefone. Posso trabalhar direto sem interrupções. Levanto de manhã, pego o telefone lá pelas duas horas da tarde e como um sanduíche, e trabalho direto até a hora do jantar. Também é interessante ligar o aparelho de TV de vez em quando.

- O que encontra nele?

É um verdadeiro cutup. Ele "flicka" (10) exatamente como faziam os filmes antigos. Quando as falas chegaram a eles aperfeiçoaram a imagem, os filmes ficaram tão bobos como olhar pela janela. Um bando de italianos em Rabat tem uma estação de televisão, e nós podíamos captar o seu sinal em Tânger. Eu simplesmente ficava lá sentado, boquiaberto, assistindo. Com borrões e contrações e estática visual, alguns dos seus faroestes ficavam muito, muito estranhos. Gysin tem experimentado com o princípio de "flickagem" num aparelho que ele chama "Máquina-do-Sonho". Costumava haver um na vitrine da The english Bookshop na Rue de Seine. Helena Rubenstein ficou tão fascinada que comprou um par, e Harold Matson, o agente, pensa que é uma idéia de um milhão de dólares.

- Descreva um típico dia de trabalho.

Eu me levanto lá pelas nove horas e peço o café da manhã; detesto ter que sair para o café da manhã. Trabalho normalmente até as duas ou duas e meia, quando gosto de almoçar um sanduíche e um copo de leite, o que leva mais ou menos dez minutos. Aí, trabalho direto até as seis ou sete horas. Então, se estou vendo pessoas ou saindo, eu saio, tomo alguns drinks, volto e talvez leia um pouco e vou para a cama. Vou para a cama bem cedo. Não me obrigo a trabalhar. É simplesmente o que quero fazer. Estar completamente só numa sala, saber que não haverá interrupções e que tenho oito horas é exatamente o que quero - sim, simplesmente paraíso.

- Você compõe na máquina de escrever?

Eu uso a máquina de escrever e uso tesouras. Posso me sentar com tesouras e velhos manuscritos e colar fotografias durante horas; tenho centenas de fotografias. Normalmente, dou um passeio todos os dias. Aqui em Saint Louis tenho tentado tirar fotografias de 1920, alamedas e tudo mais. Esta [apontando] é uma fotografia fantasmagórica da casa em que eu cresci, vista novamente depois de quarenta e cinco anos. Aqui está uma foto de um antigo fosso de cinzas. Era uma grande diversão, para as crianças, sair para a alameda depois do Natal e fazer uma fogueira no fosso de cinzas com todos os restos dos pacotes e papéis de embrulho. Aqui, estas são estórias e fotografias das colunas sociais. Estive fazendo um cutup de coberturas sociais. Diverti-me bastante juntando esses nomes; você consegue alguns nomes muito incomuns nas colunas sociais.

- Você disse recentemente que gostaria de se estabelecer nas montanhas Ozarks. (11) Estava falando sério?

- Eu gostaria de ter um lugar lá. É uma região muito bonita no outono, e eu gostaria de passar períodos de tempo, digamos a cada mês ou cada dois meses, em completa solidão, apenas trabalhando, o que requer uma situação isolada. Claro, eu teria que comprar um carro, em primeiro lugar, e você incorre numa despesa considerável. Só posso pensar em termos de um apartamento. Pensei possivelmente em um apartamento aqui, mas mais provavelmente eu vou arranjar um em Nova York. Eu não estou voltando para Tânger. Simplesmente não gosto mais de lá. Ela se tornou simplesmente uma cidade pequena. Não há vida lá, e o lugar não tem mais nenhuma novidade para mim. Eu estava lá sentado e pensei, meu Deus, poderia estar tanto em Columbus, Ohio, como aqui, pelo interesse que a cidade tem para mim. Estava só sentado no meu apartamento trabalhando. Poderia ter um apartamento melhor e melhores condições de trabalho em algum outro lugar. Depois das dez da noite, não há ninguém nas ruas. Os moradores antigos como Paul Bowles e aquelas pessoas que já estão lá há anos e anos meio que vagam desesperadamente perguntando, "Para onde poderíamos ir se saíssemos de Tânger?". Não sei, a cidade simplesmente me deprime agora. Não é sequer barato lá. Se viajar para algum lugar será para o Extremo Oriente, mas só para uma visita. Nunca estive a leste de Atenas.

- Isso me lembra, eu queria perguntar a você o que está por trás do seu interesse em sistemas mais exóticos como o Zen, ou as teorias do orgônio do dr. Reich?

Bem, essas teorias não convencionais freqüentemente tocam em alguma coisa que está acontecendo e que Harvard e o MIT não conseguem explicar. Não estou dizendo que as endosso entusiasticamente, mas estou interessado em qualquer tentativa que aponte nessa direção. Usei esses acumuladores de orgônio e estou convencido de que alguma coisa acontece ali, não sei exatamente o quê. É claro que o próprio Reich passou da conta, disso não há dúvida.

- Você mencionou a cientologia antes. Você tem um sistema para viver, ou está procurando algum?

Não estou muito interessado num esquema manipulativo tão cruamente tridimensional como o de L. Ron Hubbard, apesar de ele ter os seus méritos. Eu o estudei e vi como funciona. É uma série de truques manipulativos. Eles lhe dizem para olhar em volta e ver o que você acha. Os resultados são muito mais sutis e bem-sucedidos que o de Dale Carnegie. Mas chegar ao ponto de eu viver por um sistema, não. Ao mesmo tempo, eu não penso que alguma coisa aconteça neste universo a menos que algum poder - ou indivíduo - a faça acontecer. Nada acontece por si mesmo. Acredito que todos os eventos são produzidos pela vontade.

- Então você acredita na existência de Deus?

Deus? Eu não diria. Penso que existem inúmeros deuses. O que nós na terra chamamos Deus é um pequeno deus tribal que criou uma terrível confusão. Certamente forças operando através da consciência humana controlam eventos. Um escritor de Luce pode ser um agente de sabe Deus que poder, uma força com um apetite insaciável por palavras e imagens. O que essa força pretende fazer com tamanho e tão tremendo monturo de dejetos de imagem? Eles têm um escritório normal de escalação. Para entrevistar Mary McCarthy, eles mandarão uma tímida menina da Vassar (12) que está apenas tentando se dar bem na vida. Tiveram vários tipos de pirados para mim. "Pombas, Bill, você tem baseado?" Baseado, meu Deus! "é claro que não", eu lhes dizia. "Eu não sei do que você está falando." Então eles vão embora e escrevem um artigo nojento para os arquivos.

- Em alguns aspectos, Nova express parece ser uma receita contra doenças sociais. Você vê a necessidade, por exemplo, de tribunais biológicos no futuro?

- Certamente. A ciência posteriormente será forçada a estabelecer tribunais de mediação biológica, porque as formas de vida vão se tornar mais incompatíveis com as condições de existência à medida que o homem penetra mais fundo no espaço. A humanidade terá que passar em última análise, por alterações biológicas, se formos sobreviver de alguma forma. Isso irá requerer leis biológicas para decidir que mudanças fazer. Nós simplesmente teremos que usar nossa inteligência para planejar mutações, ao invés de deixa-las ocorrer ao acaso. Porque muitas dessas mutações - veja o tigre de dentes de sabre - estão fadadas a ter uma engenharia de desenhos muito ruim. O futuro, sim, decididamente. Acho que existem possibilidades inumeráveis literalmente inumeráveis. A esperança está no desenvolvimento da experiência incorpórea e mais tarde em se afastar do próprio corpo, das coordenadas tridimensionais e concomitantes reações animais de medo e fuga, que inevitavelmente levam a feudos tribais e a dissenção.

- Por que você escolheu uma guerra interplanetária como conflito em Nova express, em vez da discórdia entre nações? Você parece fascinado com a idéia de que um poder supraterrestre esteja exercendo um aparato de controle, como os gnomos da morte.

Eles são organismos parasitários que ocupam um hospedeiro humano, assim como um rádio-transmissor, que dirigem e controlam. As pessoas que trabalham com encefalogramas e ondas cerebrais chamam a atenção para o fato de que, tecnicamente, um dia será possível instalar no cérebro, na hora do nascimento uma antena de rádio que controlará o pensamento, o sentimento, e as percepções sensoriais, na verdade não apenas controlarão o pensamento, mas tomarão impossíveis certos pensamentos. Os gnomos da morte são armas da quadrilha de Nova, que por sua vez está provocando os tiros da guerra fria. A quadrilha de Nova está usando esse conflito numa tentativa de fazer explodir o planeta, porque quando você vai ao fundo da questão, sobre o que a América e a Rússia estão realmente discutindo? A União Soviética e os Estados Unidos futuramente irão se compor em grupos sociais intercambiáveis, e nenhuma das duas nações está moralmente "correta". A idéia de que qualquer pessoa pode dirigir sua própria fábrica na América é ridícula. O governo e os sindicatos - ambos equivalem à mesma coisa: sistemas de controle - lhe dizem quem ele pode empregar, quanto ele pode lhes pagar, e como ele pode vender seus produtos. Que diferença faz se o estado é proprietário da fábrica e o mantém como superintendente? Independentemente de como a coisa é feita, o mesmo tipo de pessoa estará no cargo. O seu aliado, hoje, é um inimigo, amanhã. Postulei esse poder - a quadrilha de nova - que nos obriga a ficar correndo em volta das cadeiras enquanto toca a música.

- Você vê esperança para a raça humana, mas ao mesmo tempo está alarmado com os instrumentos de controle, que se tornam cada vez mais sofisticados.

Bem, ao mesmo tempo em que se tornam mais sofisticados, eles também se tornam mais vulneráveis. A Time-Lite-Fortune aplica um sistema de controle mais complexo e eficaz do que o calendário maia, mas que também é muito mais vulnerável porque é vasto e mecanizado. Nem mesmo Henry Luce sabe o que está acontecendo no sistema agora. Bem, uma máquina pode ser redirecionada. Um sargento técnico pode foder todo o mecanismo. Ninguém pode controlar a operação inteira. É demasiado complexa. O capitão vem e diz, "Tudo certo, rapazes, estamos indo para cima". Agora, quem sabe que botões apertar? Quem sabe como levar as caixas de Spam (13) até onde elas estão indo, e como preencher os formulários? O sargento sabe. O capitão não sabe. Enquanto houver sargentos por aí, a máquina pode ser desmantelada, e nós ainda podemos sair vivos disso tudo.

- Freqüentemente, na sua obra, o sexo parece equacionado à morte.

Isso é uma extensão da idéia de sexo como uma arma biológica. Sinto que o sexo, como praticamente toda manifestação humana, tem sido degradado para finalidades de controle, ou na verdade para finalidades anti-humanas. Todo esse puritanismo. Como é que vamos chegar a descobrir cientificamente alguma coisa sobre sexo, quando a priori o assunto não pode nem mesmo ser investigado? Não se pode nem mesmo pensar ou escrever a esse respeito. Essa era uma das coisas interessantes de Reich. Ele foi uma das poucas pessoas que alguma vez tentou investigar o sexo - o fenômeno sexual, de um ponto de vista científico. Existe essa pruriência e esse medo do sexo. Não sabemos nada sobre o sexo. O que é? Por que dá prazer? O que é o prazer? Alívio de tensão? Bem, possivelmente.

- Você é irreconciliavelmente hostil ao século xx?

Não, absolutamente; embora eu possa me imaginar como tendo nascido em muitas circunstâncias diferentes. Por exemplo, tive um sonho recentemente em que eu retornava à casa da família e encontrava um pai díferente e uma casa diferente de qualquer uma que já tivesse visto antes. Assim mesmo, num sentido onírico, o pai e a casa eram bastante familiares.

- Mary McCarthy o caracterizou como um utopista ácido. Isso é correto?

Definitivamente, pretendo que aquilo que digo seja interpretado literalmente, sim, quero tornar as pessoas conscientes da verdadeira criminalidade dos nossos tempos, tornar bem visíveis os sinais. Todo o meu trabalho é dirigido contra aqueles que se dispõem, por estupidez ou desígnio, a fazer o planeta explodir ou torná-lo inabitável. Como as pessoas de publicidade de que falamos, estou interessado na manipulação precisa de palavra e imagem para criar uma ação, não para sair e comprar uma Coca-Cola, mas para criar uma alteração na consciência do leitor. Você sabe, eles me perguntam se eu continuaria a escrever, se estivesse numa ilha deserta e soubesse que ninguém jamais veria o que escrevi. Minha resposta é enfaticamente sim. Eu continuaria a escrever por companhia. Porque estou criando um mundo imaginário - é sempre imaginário - no qual eu gostaria de viver.
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Notas:
(1) Cutup: é um procedimento de criação bastante mencionado por Burroughs ao longo da entrevista. Trata-se de uma técnica análoga à montagem cinematográfica, consistindo na justaposição de materiais diversos numa nova estrutura que altera o significado d e cada um deles, em função do novo contexto.

(2) A expressão empregada no original é carny world, cuja tradução literal seria mundo carnavalesco, o que, no Brasil, tem outra conotação. No caso, Burroughs está se referindo ao submundo de drogados, pirados e marginais de sua época, composto por artistas, vigaristas, batedores de carteira, ladrões antigos, etc. .. como se verá mais adiante.

(3) No original, cut up these words.

(4) Folding: significa exatamente dobradura. Burroughs utiliza o termo para designar um processo de criação análogo ao cutup. Neste caso, o texto, em vez de ser recortado, é dobrado e acrescido de outros textos.

(5) Deadliners: neologismo criado a partir do termo deadline, em inglês, prazo final, linha intransponível pelos prisioneiros, além da qual os guardas podem atirar. A expressão equivalente em português seria limítrofe ou linha fatal.

(6) A Madison Avenue é a avenida de Manhattan onde se concentram todas as grandes agências de publicidade de Nova York.

(7) Marca comercial de uma ampola desmontável, que vem com uma agulha hipodérmica e contém uma dose única de medicamento.

(8) Heavy metal; literalmente, metal pesado, intenso, de alta densidade. Designa uma das correntes do rock and roU e, por extensão, o estilo de vida dos que apreciam essa música, onde o peso do som sobrepuja suas qualidades rítmicas, harmônicas e melódicas. Nesse sentido, é empregado também no Brasil

(9) Um aperitivo americano

(10) o termo original, flick, em inglês, também é utilizado no Brasil, por profissionais de cinema. Indica o efeito oscilatório da imagem quando a luz pisca durante a projeção, seja por problemas técnicos ou do próprio negativo. O resultado é semelhante ao da estroboscopia, porém com menor intensidade. O aparelho a que Burroughs se refere algumas linhas depois, Máquina-da-Sonho (no original, Dreamachine), lida diretamente com a luz estroboscópica.

(11) Ozarks: uma cadeia de montanhas que atravessa os estados de Missouri, Arkansas e Oklahoma.

(12) (*) Vassar: uma universidade americana, considerada "espera-marido",

(13) Spam: abreviação de Spiced Bam, marca de um presunto bem condimentado.
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(Tradução de Alberto Alexandre Martins)

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