Esta seção, comandada pelo nosso correspondente no velho oeste paulista, Vicentônio Regis do Nascimento Silva, publicará semanalmente um breve perfil de alguns escritores destacados, porém pouco badalados, da literatura brasileira. É sabido que a nossa mídia é seletiva, onde apenas alguns autores aparecem, muitas vezes, mais do que merecem. Assim, Tiro de Letra também adota o critério da seletividade, só que ao contrário da grande mídia: vamos dar publicidade àqueles escritores que realmente merecem e precisam ser conhecidos pelo público. Abordamos hoje mais um dos expoentes da literatura brasileira.
Escrever sempre constitui um desafio bélico a quem redige, a quem publica e a quem lê. Quem redige, espera ser lido. Quem publica, se preocupa com a venda de seu produto e, talvez em segundo plano e dependendo do espírito do editor, em ser aclamado pela crítica. Quem lê, espera uma narrativa envolvente ou, no caso de leitores profissionais e de experiências profundas, descobrir novos estilos e apontar novas construções metafóricas ou sintáticas.
Quando folheei as primeiras páginas de “O fiel e a balança”, de Osman Lins, a primeira impressão que tive foi de cair em mais uma das armadilhas em que desemboquei quando, pensando se tratar de linguagem uniforme e de recursos idênticos, procurei o Graciliano Ramos de “Vidas Secas” e de “São Bernardo” em livros que mais se aproximavam de uma angústia exteriorizada pela linguagem. Nesse item, Osman Lins se mantém no mesmo patamar de Graciliano ao narrar as desventuras de um pai em busca da reconstrução do cotidiano após a morte do filho.
Os primeiros parágrafos densos do livro descrevem – e, numa análise mais apurada, poderia se acrescentar que retratam – o clima tenso, melancólico e arredio das pessoas em torno de um caixão. A morte do filho arrebenta os laços urbanos de Bernardo que, aceitando o oferecimento do cargo de administrador em terras afastadas, se muda para o campo e, após a morte do benfeitor, enfrenta um entrevero com o irmão do ex-chefe que, a pau e pedra, quer retomar as terras para vendê-las.
Bernardo desconfia que Miguel Benício, o patrão, foi assassinado pelo irmão e, numa última tentativa de lealdade ao defunto, nega-se a partir do lugar chegando, em momentos decisivos, a repelir as investidas obscuras que lhe são travadas. Numa manhã, seus poucos bois aparecem mortos.
Nestor, irmão do ex-patrão, envia-lhe mensageiros pedindo que deixe as terras e estipula uma data ao fim da qual, não obedecendo às solicitações, será expulso. Bernardo despacha a esposa para um lugar seguro e espera, com a ajuda de Antônio Chá, auxiliar que não desgruda dele, os algozes que aparecem armados e em maior número.
Bom romancista que, conforme já mencionado, lapida uma linguagem cheia de frases longas e orações que parecem sem fim – aumentando, com esse recurso, o sofrimento e a sensação de angústia – Osman Lins resgata a dignidade do homem de princípios sólidos que, mesmo diante da ameaça explícita, não se perde em medos.
O desfecho da guerra entre Bernardo e Nestor provavelmente estimularia à dedução da morte de Bernardo. Contudo, extasiado pela coragem e audácia do adversário, um dos jagunços atira no irmão do ex-proprietário quando se preparava, na realidade, para atirar em Bernardo. O clímax da cena se concentra não no tiro, mas na flecha de incredulidade que atravessa o capanga. Um homem como esse, diz o assassino sobre Bernardo, símbolo destemido dos perseguidos, dos oprimidos e dos pobres, merece viver.
Penso que é precipitado identificar ou imaginar a defesa de eventual alegoria de combates entre capitalismo e socialismo, ricos e pobres ou machismos díspares, mas realço, na qualidade textual que se impregna na configuração do personagem, uma espécie de vitória do oprimido/destemido sobre a força opressora representada pela esperteza, pela astúcia e pela falta de controle de Nestor, irmão do ex-proprietário.
Esse jogo de forças de Osman Lins – de linguagem árida e que nos faz querer desistir da leitura – se imortaliza não pelo aspecto geográfico, pela perda do filho, pela reconstrução da vida ou pela defesa de princípios, mas por descrever, retratar ou eternizar os momentos de superação dos conflitos sociais, elevando o grau de compreensão de quem também, mesmo sem saber, se mostra esmagado. ___________
Vicentônio Regis do Nascimento Silva é crítico literário, contista, cronista e educador. Assina as colunas Ficções, publicada semanalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP), e Perfil Literário na página Tiro de Letra (WWW.tirodeletra.com.br). Colabora no Poiésis (Saquarema – RJ) e no Assis Notícias (WWW.assisnoticias.com.br/livros). Recebeu, entre outros prêmios literários, os da Academia de Letras de São João da Boa Vista (São João da Boa Vista – SP), concurso literário Felippe D’Oliveira (Santa Maria – RS) e UFF de Literatura (Niterói – RJ).
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