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Perfil literário

Esta seção, comandada pelo nosso correspondente no velho oeste paulista, Vicentônio Regis do Nascimento Silva, publicará semanalmente um breve perfil de alguns escritores destacados, porém pouco badalados, da literatura brasileira. É sabido que a nossa mídia é seletiva, onde apenas alguns autores aparecem, muitas vezes, mais do que merecem. Assim, Tiro de Letra também adota o critério da seletividade, só que ao contrário da grande mídia: vamos dar publicidade àqueles escritores que realmente merecem e precisam ser conhecidos pelo público. Abordamos hoje mais um dos expoentes da literatura brasileira.

Paulo Mendes Campos

     Quando nos referimos à crônica invariavelmente nos deparamos com duas premissas: falta de limites e efemeridade.

     As regras de composição e de deslocamento são claras para outros gêneros, mas para a crônica os limites estéticos simplesmente não existem. De modo que se pode escrever uma ou oito páginas sem se preocupar com questões de efeito, de sentido único, de núcleos diferentes, de desenvolvimento cadenciado da trama. Além disso, se a Literatura é a manifestação da Liberdade, a crônica é o gênero da libertação por excelência: comporta da cena familiar à história, da crise econômica às mudanças sociais, da agricultura ao primeiro beijo, de problemas de alunos aos êxitos financeiros. O que diferencia os cronistas é a capacidade de imprimir qualidades peculiares. A genialidade atribuída a alguns escritores se deve pela sorte de se desvencilhar do arquétipo.

     Paulo Mendes Campos é um grande cronista pela capacidade ímpar de narrar sem sobrecarregar o enredo de informações truncadas que enfraquecem a pulsação, de transmitir leveza na abordagem da narrativa e de apresentar desfecho que, embora simples, ainda consegue provocar risos, comoções ou assombros. A linguagem coloquial lapidada com a soberania de quem adquire experiência no manuseio de um artefato – tanto de guerra como de paz – faz do desastre um fato pitoresco. Caso de “Salvo pelo flamengo”.

      Desconheço se a intensidade da paixão por futebol de Paulo Mendes Campos se igualava ou superava a de José Lins do Rego, mas o fato é que o início da crônica nos mostra declaração taxativa: “Desde garotinho que não sou Flamengo(...)”.

     Paulo Mendes Campos viajara a Suécia e esperava um companheiro brasileiro num hotel cujos atendentes especializaram-se na complicação da vida dos hóspedes. Em momento de dificuldades rodeado pelos ruídos da comunicação, impossibilitando a compreensão das tentativas de argumentar por gestos, sinais, símbolos e desesperos, ele e o companheiro reclamam uma reserva. O recepcionista fugia de explicações claras, aumentando ainda mais o nervosismo e a revolta.

     Eis que um gigante embriagado surge da penumbra, atravessa o saguão, puxa o conterrâneo pelo colarinho, esbravejando e apontando para o cronista e o amigo brasileiro que, numa hora destas, já não sabiam a quais santos recorrer. Fugir às pressas do hotel esquecendo as bagagens? Se ajoelhar e pedir perdão por terem nascido? Requerer asilo ao primeiro que passasse?

     O sueco larga o atendente, avança sobre os dois possíveis hóspedes e esbraveja qualquer coisa completamente desconhecida para ambos que se valem de gestos e se exprimem em inglês, idioma desconhecido para o gigante que entende apenas algumas palavras soltas.

     Quando se identificam americanos, os olhos do provável algoz tomam formas estranhas: ele não gosta nem de americanos nem de dólar. Engolem em seco prevendo o fim trágico até que, apelando para o último recurso, se dizem brasileiros.

       - Brazilian? Pergunta o gigante.

     Uma luz afasta o desespero: são brasileiros. Como é bom ser brasileiro, comemoraria em pensamentos qualquer um em idêntica situação! Confirmando e reconfirmando a origem dos interlocutores, dispara: - Flamengo! Flamengo?

      Quem ousaria discordar, de renegar ou de escolher outro clube?

      Essa é uma das raridades – uma obra de arte em simplicidade, elegância e comicidade – que fazem de Paulo Mendes Campos um escritor singular, refinado e hilário.
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Vicentônio Regis do Nascimento Silva é crítico literário, contista, cronista e educador. Assina as colunas Ficções, publicada semanalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP), e Perfil Literário na página Tiro de Letra (WWW.tirodeletra.com.br). Colabora no Poiésis (Saquarema – RJ) e no Assis Notícias (WWW.assisnoticias.com.br/livros). Recebeu, entre outros prêmios literários, os da Academia de Letras de São João da Boa Vista (São João da Boa Vista – SP), concurso literário Felippe D’Oliveira (Santa Maria – RS) e UFF de Literatura (Niterói – RJ).

WWW.vicentonio.blogspot.com

 

 

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