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Como escrevo?
José Saramago

"Tenho uma disciplina que consiste em escrever duas páginas diárias. Formalmente não escrevo mais do que isso. Pode parecer pouco, mas duas páginas diárias, ao fim de um ano, serão um livro com 800 páginas. Mesmo que pudesse continuar depois da segunda página, não continuo. Apenas acabo a oração, o período ou a frase, e o resto fica para amanhã. (...) Todos os meus livros começam, digamos, – não quero chamar de inspirações, a palavra inspiração não significa nada – diria mais por iluminações. É como se de repente, numa superfície escura, uma luz tivesse iluminado qualquer coisa. Para chegar ao livro, tem tanto de reflexão quanto de deixar, simplesmente, que a idéia ande na cabeça. E chega sempre o momento em que, de repente, se tornam claros, se me apresentam os pontos fundamentais por onde vai passar a história. (...) Em caso nenhum há modelos preexistentes à criação da personagem, quer se trate de personagens femininas ou de personagens masculinas. Em nenhuma delas (as personagens) eu poderia dizer que uma pessoa inspiradora, ou que tenha uma relação - quanto ao caráter que mostre ter depois na história que conto – será aí a pessoa A, B ou C. Não. São personagens que nascem no próprio ato de criação. (...) Chega esse momento em que vejo os pontos de apoio de toda a narrativa. Mas na construção do livro, cada palavra necessita da palavra anterior. Se estiver a escrever o capítulo terceiro e tiver uma idéia estupenda para o capítulo décimo-quinto, não vou escrever logo este capítulo. Tenho de chegar ao fim do capítulo catorze para começar o quinze. Não faço um borrão inicial, uma história breve, para alongá-la depois, enriquecê-la com episódios. Não reescrevo, não volto atrás para introduzir um capítulo mais, nem para tirar um que porventura não faça falta. Meu livro vai crescendo por uma espécie de necessidade interna. Quando chego à última palavra, o livro está feito."

Fonte: Correio Braziliense, 23/11/1997 - Armando Mendes

"Para resumir, o meu processo é, digamos que, isso varia de linha contínua. E digo isso para significar o seguinte, eu não sou do tipo de escritor, e isso não tem nada a ver com a qualidade final da obra, evidentemente, não sou do tipo de escritor que escreve 80 páginas para depois transformá-las em 200 ou em 250 ou em 400. Quer dizer, o processo de reescrita que pode levar, por um lado, à ampliação, mas também pode levar, por outro lado, à redução. Aquilo que acontece comigo é que eu começo a escrever, e vou escrevendo, vou escrevendo. E não há caso nenhum, em nenhum dos meus livros que, tendo chegado ao fim, eu tenha dito: este capítulo está a mais ou este capítulo precisa ser desenvolvido ou, ao contrário, preciso reduzi-lo. O livro que eu vou escrevendo é o livro que vai ficar... Não há plano. Eu não diria que há plano. Eu costumo dizer que a única coisa que eu sei quando começo um livro, além das informações, dos dados concretos quando preciso deles, quando se trata de um romance que vai para os lados da História, é evidente que é necessário, enfim, é necessário que aquilo tenha sentido histórico, então eu preciso ler, estudar, recolher dados. Mas, o que eu costumo dizer que a única coisa que sei verdadeiramente é que vou de Lisboa para o Porto, mas isso não significa que vá pela auto-estrada, ou que vá em linha reta, de avião, pode significar que eu tendo que chegar ao Porto, que é meu ponto de destino, o da viagem e o do livro, eu passo por Castelo Branco antes, que fica quase na fronteira com a Espanha. O modo como chegar é que fica dependente do próprio processo da escrita, quer dizer, eu posso, em dada altura, fazer uma incursão lateral, posso parecer até que voltei atrás, porque é, digamos, vamos lá ver, vou ver se encontro uma maneira mais flagrante de dizer isso, uma palavra, cada palavra, nasce da anterior, e essa palavra não pode existir, sem que exista a anterior e todas as outras anteriores. Por isso eu sou, literalmente, não é que sou literalmente incapaz, mas não sou capaz mesmo, de modo nenhum, se estou a escrever o capítulo terceiro, de um livro, por exemplo, mas que sei que haverá uma história qualquer mais para adiante, e que seria o capítulo 24, por exemplo, eu não interrompo a leitura, não interrompo a escrita do capítulo terceiro para, por uma espécie de inspiração súbita, ir escrever o capítulo 24, porque, para mim, isso é completamente impossível, porque o capítulo 24 depende do 23 em tudo. Não apenas na sucessão, na ordem numérica, mas nos múltiplos fios – e nós que estamos aqui sabemos disso – de que se compõem uma narrativa. Se há alguma espécie de lei, é para além desse sentido de que tem que se chegar ao Porto, mas estou livre para decidir o caminho que eu quiser, eu diria, por exemplo, como quem vai atravessar a corrente de um rio e tem meia dúzia de pedras que lhe permitem ir para o outro lado, passando de pedra em pedra. O que eu sei é que ao longo da história que eu vou contar há meia dúzia de pedras fundamentais e tem que passar por lá, senão cai na água. E, por outro lado, à medida que escrevo, vou antecipando, em pequeníssimos resumos, o capítulo seguinte. Em pequeníssimos resumos, que não tem mais do que quatro, cinco, seis linhas. É a única coisa, digamos, que eu faça... Eu sei que o capítulo seguinte daquele que eu estou a fazer, terei que dizer isso, assim e assim, mas de modo nenhum articular toda a história que vou contar num "x" número de capítulos, seguindo depois. Aquilo que eu não faço é uma espécie de “guião”, eu estou em cada momento livre para não escrever aquilo que pensava, num outro momento, que iria escrever. E é esse sentimento de liberdade, aquilo que um crítico português chamou – e muito bem, e eu não tinha pensado nisso, e os críticos servem justamente para isso, para dizer como é que nos devemos pensar – ele designou a minha escrita de escrita desprogramada. E é de fato uma definição exemplar. É de fato uma escrita que se comporta desprogramadamente.

Fonte: Programa Roda Viva, da TV Cultura, 07/09/1992

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