MARIO QUINTANA
Entrevista concedida à Edla van Steen e publicada no livro: Viver & escrever. V. 1. Porto Alegre: L&PM, 2008.
- Você se lembra de como ou quando descobriu que podia ou queria fazer versos?
Ser poeta não é uma maneira de escrever. É uma maneira de ser. O leitor de poesia é também um poeta. Para mim o poeta não é essa espécie saltitante que chamam de Relações Públicas. O poeta é Relações íntimas. Dele com o leitor. E não é o leitor que descobre o poeta, mas o poeta é que descobre o leitor, que o revela a si mesmo. O poeta que "me descobriu" foi o Antônio Nobre do Só. Tínhamos lá em casa aquela bela edição ilustrada por Antônio Carneiro, e não sei em que mãos estará agora. A propósito, o jornalista e poeta Egydio Squeff comprou num sebo um exemplar do Só onde estava escrito: "Este é o quarto exemplar do Só que eu compro. Os outros todos me roubaram." E vinha assinado em baixo: Álvaro Moreyra. Em meu primeiro livro, A Rua dos Cataventos, tenho, por dever e devoção, um soneto a ele dedicado e mais uma referência em outro poema. Isto bastou para acusarem em mim a influência de Antônio Nobre. Protesto: não há influência - há confluência, pois a gente só gosta de quem se parece com a gente. Porém, mais remota do que a presença de Antônio Nobre, está, entre as recordações da infância, a voz grave e pausada de meu pai a recitar-me o episódio do Gigante Adamastor. Aquele ritmo severo ensinava-me a profundidade da poesia e até hoje me assombra aquele verso: "Que o menor mal de todos seja a morte". Em compensação minha mãe, educada no Uruguai, recitava-me Espronceda e Becquer: "Ya se van las oscuras golondrínas". A par disso aprendi a ler muito cedo, sem quase saber que estava lendo. E ouso afirmar que as verdadeiras influências na minha formação foram Camões e O tíco-tico.
- Tentou alguma vez escrever conto ou romance?
Aos vinte anos ganhei o primeiro prêmio num concurso estadual de contos, entre duzentos e tantos concorrentes, promovido pelo Diário de Notícias, de Porto Alegre. Depois de algumas outras tentativas, reconheci que os meus contos só tinham um personagem: eu mesmo. Desisti.
- Conte um pouco de sua infância ou adolescência.
Não sei se tive infância. Fui um menino doente, por trás de uma janela. Creio que foi a ele que eu dediquei depois um soneto de A Rua dos Cataventos. O meu "elemento" era a poesia. Comecei a ser poeta como um cachorro que cai n'água e não sabia que sabia nadar. (Sabia.) E o meio familiar ajudou. Tanto meu pai e minha mãe, como meus irmãos Milton e Marieta, a quem dediquei meu primeiro livro, gostavam de poesia. Nunca tive a clássica incompreensão da família, de que tanto se vangloriam alguns poetas. Aliás, foi meu próprio irmão Milton, quinze anos mais velho do que eu, quem me ensinou a metrificar. Como tive a infância muito presa, devido à precariedade da saúde, quando pude soltei-me no mundo. Um choque. Fui criado num aviário e solto num potreiro. Daí talvez a explicação da minha posterior e prolongada boemia.
- De quem herdou os olhos azuis?
De meu bisavô holandês Van Ryter, morto num naufrágio como bom holandês.
- Seu primeiro livro - A Rua dos Cataventos - saiu publicado em 1940, quando você tinha 34 anos. Por que tão tarde?
Preguiça e consciência. Tudo o que prejudica a minha preguiça prejudica o meu trabalho. Consciência, porque eu sempre quis fazer uma coisa muito conscienciosa.
- Depois de A Rua dos Cataventos você publicou mais nove livros. Em São Paulo, durante a "Semana do Escritor Brasileiro", em 1979, você afirmou numa entrevista que o livro de que mais gosta é exatamente o primeiro. Explique a preferência, por favor.
Eu disse, ou creio que disse, que "era dos livros de que mais gostavam". É o livro de que mais gosta o público em geral. Augusto Meyer e Manuel Bandeira preferiam O Aprendiz de Feiticeiro. Carlos Drummond também (ele até fez um poema sobre O Aprendiz, intitulado "Quintana's Bar"). Por outro lado, Guilhermino César e os meus colegas poetas daqui acham que o meu melhor livro é Apontamentos de História Sobrenatural. Isto é ótimo, pois eu o escrevi, na maior parte, depois dos sessenta anos.
- Muitos poetas e escritores tiveram de pagar a edição dos seus primeiros títulos (alguns ainda são obrigados a isso). Fale do que aconteceu com você.
Como disse, eu ia deixando, adiando ... Erico Verissimo, então secretário da Editora Globo, pôs-me contra a parede. Meu irmão Milton disse-me que eu ia ficar como aquela personagem do Eça, muito gabado, muito louvado ... e nada! Reynaldo Moura, poeta e amigo, pôs-me em brios: "Se você não publicar nada vão achar que você é um boêmio. Se publicar, dirão: É um escritor! Meio extravagante ... " Ora, como eu tivesse escrito também sonetos e como o soneto era uma forma meio desmoralizada, eu fiz questão de estrear com um livro de sonetos para provar que os sonetos também eram poemas. (Provei.) Provei-o muito antes de outros fazerem "a descoberta do soneto".
- "Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente ... " Gostaria de comentar algo sobre a poesia de cunho social e político?
A poesia engajada? Eis aí uma questão com que, em certas épocas, costumam ser assaltados os poetas. Impossível não levá-la em conta quando se pensa no que fez pela abolição da escravatura um poeta como Castro Alves. Mas querer obrigar todos a serem Castro Alves é forte. E, convenhamos, uma boa causa jamais salvou um mau poeta. Essa gente poderá fazer mais pelo povo candidatando-se a vereadores. É muito de estranhar essa campanha contra o lirismo, isto é, contra 95% da poesia de todos os tempos. Nem se pense que o poeta lírico está fora do mundo. Os sentimentos que ele canta pertencem a todo o mundo, a toda a humanidade, são de todos os tempos e não apenas os de sua época - independentes de quaisquer restrições de nacionalidades, raças, crenças ou partidos políticos. Se não é assim, depois de resolvidos os problemas, o que seria dos poetas? Ficariam simplesmente sem assunto.
- Alguns autores escrevem a lápis, outros têm necessidade de ouvir o teclado da máquina. Quais são os seus hábitos para escrever? Costuma carregar algum caderninho no bolso?
Não sei pensar à máquina. Escrevo a lápis. Depois, com o queixo apoiado na mão esquerda, passo a coisa a limpo com um dedo só, na máquina. Não uso caderninhos.
- Em geral os poemas saem prontos, ou você tem apenas uma frase poética e constrói o poema em torno dela?
- Às vezes a frase nem é poética. Certa vez, por exemplo, disse-me um companheiro ao observar um nosso amigo, desses do tipo "mosquito elétrico", gesticulante, etc.: "Fulano parece um boneco de engonço". Pois bem, fui para casa e escrevi um dos meus poemas mais realizados, aquele que assim começa: "Os mortos são ridículos como bonecos de engonço a que cortassem os fios". Por outro lado, meu poema O Morituro, em Apontamentos de História Sobrenatural, saiu ali publicado na sua quarta versão. E olhe lá!
- O que gosta de ler atualmente (ou gostava antigamente)? Prefere prosa ou poesia?
Leio de tudo, noite adentro, intercaladamente, novelas, ensaios, poesia. Mas, para ser sincero mesmo, parece que já passei da idade de ler coisas sérias. Em minha adolescência devorei todo o Dostoiévski (como os adolescentes liam naquele tempo, antes da era analfabetizante das histórias em quadrinhos!). Abominava Camilo, embora gostasse de Herculano. Os meus colegas adoravam Vargas Vila e Coelho Neto, que eu detestava. Pois a minha principal característica foi sempre o bom senso. Foi esse mesmo bom senso que me afastou das questões metafísicas da adolescência, pois se nem Pia tão e outros craques da Antigüidade, se ninguém, em trinta séculos de pensamento, conseguiu decifrar o significado da vida - muito menos eu! Fiquemos com o mistério da poesia. Nem foi por outro motivo que dei ao meu penúltimo livro o titulo de Apontamentos de História Sobrenatural. Há pouco você me perguntou se bastava "uma frase poética", etc. A conquista da poesia moderna é a transfiguração, acabaram-se os temas poéticos. Antes só se podia falar em cisne, agora fala-se em pato e sapato. O cotidiano, escrevi eu no Sapato Florido, o cotidiano é o incógnito do mistério. Existe a lenda do Rei Midas, que conta que tudo quanto ele tocava se transformava em ouro. O verdadeiro poeta, tudo quanto ele toca se transforma em poesia. Há poetas que sempre leio, quero dizer, aos quais sempre volto: Cecília Meireles, GarcÍa Lorca, Guillaume Apollinaire.
- "Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos", você disse na Carta a um Jovem Poeta. O que vem a ser esse medo?
Tenho medo de ceder a injunções que não sejam a da pura expressão. Pois a gente sente necessidade é de expressão. A badalada comunicação é apenas uma decorrência disso. Um poeta deve escrever como se fosse o último vivente sobre a face da terra. - Então, para que escrever? - Por isso mesmo! Como o último vivente, ele não tem de pensar no que pensarão os outros. Às vezes - às vezes? - muita vez o poeta é induzido a modas, quando na verdade não há nada tão ridículo como os figurinos da última estação. Só nunca sai da moda quem está nu.
- Entre outros autores você traduziu Proust e Virginia W oolf. Foi amor pelas obras ou alguma necessidade financeira que o teriam levado à tradução?
Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução. Quando soube que Proust estava incluso no programa editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo que caísse em outras mãos. Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando, por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte (Sodoma e Gomorra). Por felicidade, o restante foi cair em excelentes mãos (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade). E Virginia Woolf? Pois foi isso mesmo: eu não tive medo de Virginia Woolf! Mrs. Dalloway é um denso, belo, misterioso poema. Brito Broca julgou a minha tradução à altura do autor. Fiquei contente de ter sido o outro livro de Virgínia (Orlando) traduzido por um poeta como Cecília Meireles. Em tempo: quem me introduziu na vida literária foi Cecília Meireles. Lembro que ela publicou a Canção do Meio do Mundo no suplemento do Diário de Noticias, com uma bela ilustração de Correia Dias. Outro que sempre fez muito por mim foi Augusto Meyer, o nosso último humanista. O que mais me admira em Augusto Meyer é a admiração que eu tenho por ele. Embora apenas quatro anos mais velho do que eu, sempre o considerei um mestre. A saudação que ele me fez de improviso na Academia Brasileira de Letras em 1966, o Aurélio Buarque de Holanda me confessou que era uma obra-prima, com o perdão da palavra. Não sei se foi gravada.
- No seu entender, o que é uma boa tradução?
Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às vezes na tradução castelhana. Mas a maior alegria que tive como tradutor foi quando a minha tradução dos Romans, Voltaire, um calhamaço enorme. Com jóias como Cândido e A princesa da Babilônia, foi remetida à apreciação de Paulo Rónai, especializado em literatura clássica francesa. Ele devolveu os meus originais com a seguinte nota: “É preciso ortografar”. A tradução de Voltaire foi também a meu pedido. Você há de espantar-se que eu, assombrado com Camões, envolto de Virginia Woolf, tenha me comprazido na luz mediterrânea de Voltaire. A culpa foi também de meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu adorasse Racine, a par de Shakespeare. Cheguei a começar por conta e risco uma tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de uma noite de verão, as quais infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se sabe. Bem, eu estava falando nas minhas atuais leituras. Há uma época de ler e uma época de reler, como diria o Eclesiastes. Agora, para descanso, estou na época de desler. E, como continuo insone (uma vez escrevi que não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna), agora leio principalmente para adormecer. É uma leitura de fora para dentro, como quem olha distraidamente a televisão. As outras leituras, as leituras de dentro para fora, excitam o cérebro e não são recomendáveis no meu caso. Leio ficção científica, uma espécie de volta a O tico-tico. A falar verdade, o que de melhor e pior se publica atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter escrito.
- Você gosta da literatura norte-americana?
Gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe, e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de país ou de planeta. Gosto de Gertrude Stein (Três Vidas eu já li outras tantas vezes).
- Só?
Só. Não esquecer que minha infância se passou na belle époque, quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a Alemanha apenas sabendo francês. Como eu lhe observasse que era pouco, ela respondeu: "Não vale a pena conhecer alemães que não saibam francês". Aproveito a ocasião para lançar o meu protesto contra essa idéia de tirarem a língua francesa do currículo escolar. O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. Se não fosse a França. o mundo ocidental teria perdido Dostoiévski. Imagine você o que teríamos de conhecimento da alma humana se não conhecêssemos Dostoiévski. Nada. Ou quase nada. Pois me lembrei agora de Shakespeare. Mas a minha queixa é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação. Enquanto isto, os livros brasileiros bons não são reeditados. Nem são reeditadas as traduções de bons livros estrangeiros. Onde está, por exemplo, a minha tradução de Poeira, de Rosamond Lehman, o meu Sparkenbrook, de Charles Morgan?
- Você tem sido bastante estudado pela crítica brasileira? O que pensa?
Nem tanto. Transcrevo aqui o final do meu verbete no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, de José Paulo Paes e Massaud Moisés: ( ... ) "O enganoso ar 'passadista' de boa parte da obra de M. Q., marginalizando-a no contexto da poesia brasileira posterior a 22, fez com que a crítica negligenciasse, as mais das vezes, o que há de refinadamente original no seu humor sutil e na sua diáfana melancolia". Dos que disseram bem do autor, isto é, dos que compreenderam e sentiram o autor, cito, por um dever de gratidão, o belíssimo estudo, com antologia crítica, de Fausto Cunha, em Leitura Aberta, quase uma terça parte do volume, e os estudos de Augusto Meyer em A Forma Secreta, Paulo Mendes Campos em O Anjo Bêbado. É muito significativo o meu verbete no Dicionário da Literatura Brasileira e Portuguesa, de Celso Pedro Luft.
- O trabalho crítico tem algum efeito sobre você ou na sua obra?
Nenhum.
- Quem teria sido o crítico mais sensível à sua poesia?
Augusto Meyer e Fausto Cunha. Os outros, os doutrinários, em vez de me julgarem pelo que eu sou, julgam-me pelo que eu não sou. É como quem olhasse um pessegueiro e dissesse: "Mas isto não é um trator!" Em todo caso, tive "o amor dos grandes", como escreveu Gustavo Corção a meu respeito: Cecília, Drummond, Augusto Meyer, Bandeira...
- Aliás, se não me engano, foi no prefácio dos Apontamentos de História Sobrenatural que você disse que nunca evoluiu. Que foi sempre o mesmo. Não acredita no aprimoramento técnico etceterá e tal?
No fundo, sou sempre o mesmo. Só acredito em poema escrito de dentro para fora, e não de fora para dentro, isto é, os que são como redações, que até podem tirar grau 10, mas não passam de temas escolares. Aliás, um tema é sempre um ponto de partida e nunca um ponto de chegada, da mesma forma que as bem-amadas são um pretexto para o amor. Quanto à técnica do poema, isto já é outra coisa. O poeta tem de criar ele mesmo a sua arte poética. Mas não se cristalizar nela. Aí seria então um poeta satisfeito. E um poeta satisfeito não satisfaz. Tenho tratado sempre de despojar-me. Muita vez sacrifiquei uma bela imagem em prol da unidade e do equilíbrio do conjunto. Em suma, para cada poema urna arte poética. É preciso evitar o excesso de inspiração. Ah, as associações de imagens! Elas vêm vindo, vêm vindo, até que o poema parece um desses altares barrocos, tão cheios de anjinhos que a gente não enxerga o santo. Mas escrevo tudo. Depois guardo. Deixo passar o tempo. Até esquecer o poema. Quando vou relê-la é como se fosse de outra pessoa. Aí vou cortando, para só deixar o que julgo essencial.
- Que critério deve ter um poeta ao selecionar poemas para uma antologia? O cronológico, como o adotado por você em Apontamentos de História Sobrenatural?
Ao compor a edição de meus outros livros, dividindo os poemas por afinidades entre eles, ao reuni-los depois num volume só, aconteceu que os críticos apressados, ao ler Poesias, julgaram o todo pela primeira parte. Quando adotei em Apontamentos a ordem cronológica, descobri, pela reação dos leitores, que era a melhor. Pois bem se pode dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade nem a inquietude a constância".
- O que significam na sua obra os livros infantis?
Fazem parte do menino que faz parte de mim. O Pé de Pilão creio que é uma história que eu contei mais para mim mesmo. Foi escrito à maneira da poética infantil, porque as crianças gostam muito de rimar. As brincadeiras delas são rimas em parelhas. Assim: "Olha a Gabriela cuma cara de panela. Olha o João cuma cara de feijão." Coisas assim. Nada mais que duas linhas. Eu consegui escrever uma história dentro dessa poética infantil: duas linhas, ponto, duas linhas, ponto, duas linhas, ponto. E parece que não perdeu a naturalidade, porque as crianças gostaram. Já vai para a quinta edição. A propósito, na década de 20 vi Monteiro Lobato num famoso sebo do Largo da Sé (não sei se ainda existe). Disse-lhe que adotava os seus livros infantis. Resposta de Lobato: "Isto é que me deixa com a pulga na orelha: eu escrevo para criança e barbado é que gosta". Respondi-lhe que tinha "uma imundícia de sobrinhos" (vi que ele gostou da expressão, não sei se tomou nota), e que os meus sobrinhos eram doidos pelas suas histórias. De modo que eu comprava os livros para eles, mas antes os devorava (os livros). Ora, uns dez anos depois estava eu na minha cidade natal (Alegrete) e lá eram publicados, mais ou menos mensalmente, os Cadernos do Extremo Sul. Pediram-me colaboração. Tinha eu uns pensamentos. Mas achei que umas sentenças isoladas pareceriam algo pedante e ridículo, como se eu quisesse bancar o Marquês de Maricá. Resolvi enquadrá-los em quartetos. Eram dez ao todo. O diretor da publicação enviou-a a Monteiro Lobato. Monteiro Lobato leu e gostou. Entregou à UJB, que os distribuía pelos jornais do interior (pelo mundo, disse Lobato), e pediu-me em carta que arranjasse mais, para serem publicados em livro. Entreguei-me então esportivamente à luta com as palavras. Essa luta parece que não termina nem no outro mundo. É pelo menos o que está escrito no último soneto de A Rua dos Cataventos:
Hei de levar comigo uns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão.
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da expressão!
Por falar em conhecimentos ilustres, fui ao Rio em 1966 para lançar a minha Antologia Poética a pedido expresso de Manuel Bandeira, o qual me escreveu instando-me que fosse, pois não podia viajar porque já estava com oitenta anos e queria dar-me um abraço antes. Escrevi-lhe: "Isto não é um pedido. É uma ordem. Irei. Mas você não imagina como eu sou chato no intervalo dos poemas." A primeira vez que vi Manuel Bandeira foi no Rio, em 35, quando Egydio Squeff e eu estávamos sentados num banco do Passeio Público, ocultos por umas palmas. Bandeira passou, lento, cabisbaixo, mãos às costas. Gritamos: "Manuel!" Ele virou-se, olhou para o busto de Castro Alves e continuou imperturbável o seu caminho. A última vez que falei com Manuel Bandeira, por assim dizer não falei com ele. Era num almoço da Editora José Olympio e quem falou todo o tempo foi Ivan Pedro de Martins, que estava à nossa frente e nos fez uma preleção sobre poesia, aliás belíssima.
- Sei que você não gosta de dar entrevistas ...
Poeta lírico, falo do meu eu, nos poemas, como ser humano. Mas acho incorreto estar falando sobre minha pessoa. Creio que a minha vida íntima nem a mim interessa. Quando a gente fala sobre si mesmo é para se gabar ou para se queixar. No primeiro caso, ainda passa. Mas, no segundo, ninguém gosta de despertar piedade. Disse que minha infância transcorreu na belle époque, mas isso implica uma disciplina vitoriana em matéria de educação. Como eu era o caçula, todos me observavam, me aconselhavam, me dirigiam. Havia um mundaréu de coisas que não se podia dizer, que não se podia fazer. A tragédia dos da minha geração é que nascemos e fomos criados numa casa de intolerância.
- Mas aquele ambiente familiar de poesia a que você se referiu ...
Era um mundo paralelo. Meus pais, embora lhes agradassem meus poemas, temiam a "vida de poeta". Seria bom você ler, em Apontamentos de História Sobrenatural, "O Velho e o Espelho", em que se nota a comovente tragédia pai-filho. Mesmo depois que vim para um internato em Porto Alegre, notei que certo bedel se interessava muito pelo que eu fazia. Desconfiei. Preguei-lhe algumas mentiras. E, nas férias seguintes, meu pai me falou naqueles inocentes pecadilhos inventados. Na adolescência, como eu sempre fui eu mesmo, queriam saber de onde é que eu tirava "aquelas idéias". Tempos depois, vim a saber que meu pai fora à Biblioteca Pública do Estado informar-se sobre que livros eu lia. Consultado o fichário, verificou-se que as minhas leituras, feitas nas tardes e noites de sábado, eram os novelistas russos, os poetas simbolistas franceses, as revistas de arte européias. Dessas e de outras leituras formativas, falo eu a páginas tantas de A Vaca e o Hipogrifo, creio que para desculpar-me de certas acusações de europeísmo. Puxa! É o diabo ser diferente! Certa vez, numa redação, escrevi eu: "Vasco da Gama transportou as Colunas de Hércules para a Índia". Creio que o professor morreu sem acreditar que a imagem fosse minha mesmo.
- Então a poesia só lhe trouxe transtornos!
A poesia só pode trazer alegria, a alegria criadora que, como no ato genésico, apaga tudo o mais. Em todo caso, os tempos mudaram. O fato de a Câmara de Vereadores conceder-me unanimemente, na passagem de meus sessenta anos, o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre, pelo simples motivo de ser poeta, é uma prova de que outros ventos estão soprando. Tanto que, na minha fala de agradecimento, aliás brevíssima, disse eu: "Antes, ser poeta era um agravante. Depois, passou a ser uma atenuante. Vejo agora que ser poeta é uma credencial." Outra coisa que achei extraordinária - e no mesmo sentido - foi que Alegrete, minha terra natal, resolveu gravar um poema meu em praça pública: a principal da cidade. Fiquei numa situação terrível, aquilo já tinha sido votado, mas como é que eu ia escolher um poema? Se eu achava que não poderia escolher, muito menos outros poderiam. Mas eu não podia cometer a grosseria de recusar. Em discussões que tive com o prefeito e o presidente da Câmara, disse-lhes que não podia escolher um poema porque um engano em bronze (- um engano eterno. Discutiu-se, discutiu-se, e ficou assentado que ficaria apenas isto na placa: "UM ENGANO EM BRONZE É UM ENGANO ETERNO". MARIO QUINTANA (palavras com que o poeta se eximiu a que fosse gravado um poema seu, nesta praça, como justa homenagem de seus conterrâneos). ALEGRETE 1968. Acho que este é um monumento único no mundo - foi uma grande solução. E, depois disto, no caso de não sobrar nada do que fiz, eu lavo as mãos, Alegrete lava as mãos e a posteridade toma um banho de corpo inteiro nas águas do Ibirapoitã.
- Tenciona escrever, já escreveu um livro de memórias!
Se você conhecesse o meu eletroencefalograma... Bem, temo o perigo das falsas recordações. Embora não acredite na observação direta, acontece que tenho tal poder de visualização que às vezes não sei se aquilo que evoco eu vi mesmo ou foi algo que me contaram, ou apenas imaginei. Mas há muito descobri que a mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer. Como vê, nada disto leva a um livro de memórias, só pode levar a um livro de poemas.
o poema,
essa estranha máscara,
mais verdadeira do que a própria face ...
- Você falou nas homenagens oficiais que lhe valeu a poesia. Que me diz da Academia?
As homenagens que recebi foram espontâneas, não partiram de mim ou dos meus empenhos. Quanto aos prêmios literários, tanto o Fernando Chinaglia, 1966, para o melhor livro do ano, como o Prêmio Pen Clube de Poesia, 1977, para os Apontamentos de História Sobrenatural não dependiam de inscrição. Para a Academia é preciso o próprio candidatar-se, mexer os pauzinhos. Ainda mais, eu tenho a coragem de não animar-me a solicitar pessoalmente o voto a cada um dos acadêmicos, como é de praxe obrigatória. A vida do acadêmico, por outro lado, é dispersiva. As Academias são uma espécie de sociedades recreativas e funerárias. Você sabe como é, não precisa explicar mais. Nada como o silêncio e o recolhimento para a criação. Antes, nas histórias da literatura, vinha assim: "No Rio Grande, Érico Verissimo, Augusto Meyer, Alcydes Maya, Eduardo Guimarães e outros". Nesses outros eu me sentia orgulhosa e anonimamente incluído. Agora passei para os citados. O que importa em entrevistas, tevês, homenagens ... Isso é também uma vida dispersiva. Você não imagina a inveja que eu tenho de mim mesmo quando eu era os outros. Não gosto de estar sendo exibido como um macaco sábio. Sei que me acusam de introversão. Se eu fosse de fato um introvertido, não faria poemas. Pelos poemas sinto-me compensado, especialmente por causa do público jovem. Pois isso prova que, tendo eu atravessado umas três gerações, conservo leitores em todas elas, inclusive a minha. Portanto, deve haver algo de permanente na minha poesia.
- Aos 73 anos de idade, Mario, valeu a pena ser poeta?
Valeu e vale.
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