A civilização do espetáculo
Mario Vargas Llosa
Entrevista publicada no jornal espanhol “El País”, em 13/04/2012
Mario Vargas Llosa (Arequipa, Peru, 1936), vinha tendo a incomoda sensação de que estavam, literalmente, caçoando dele. Começou a sentir-se assim ao visitar certas exposições e bienais, ao assistir alguns espetáculos, ao ver determinados filmes e programas de televisão e, inclusive, quando se recostava na poltrona para ler certos livros e jornais. Nesses momentos, como ele mesmo conta, surgia essa sensação, pouco definida no início, de que estavam brincando com ele, de que estava “indefeso diante de uma sutil conspiração” para fazer com que se sentisse ignorante ou estúpido, para fazer com que acreditasse que uma fraude era arte, um embuste, cultura.
Dessa sensação surgiu uma convicção e dela um ensaio, A civilização do espetáculo (Editora Alfaguara). Em suas páginas, o prêmio Nobel de Literatura examina detalhadamente a transformação da cultura em caos, onde “como não é possível saber o que é cultura, tudo é e nada é”. Esta dissolução de hierarquias e referências é consequência, para Vargas Llosa, do triunfo da frivolidade, do reinado universal do entretenimento. Mas, os efeitos deste clima de extrema banalização não se limitam à cultura. Para o escritor, e talvez este seja seu julgamento mais severo, o avanço da civilização do espetáculo anestesiou os intelectuais, desarmou o jornalismo e, sobretudo, desvalorizou a política, um espaço onde cada dia é mais presente o cinismo e a tolerância frente à corrupção, algo que o autor de Conversa na Catedral ilustra com uma anedota de sua terra natal:
“Nas últimas eleições peruanas, o escritor Jorge Eduardo Benavides se surpreendeu quando um taxista de Lima lhe disse que iria votar em Keiko Fujimori, a filha do ditador que cumpre pena de 25 anos de prisão por roubos e assassinatos”.
“O senhor não se importa que o presidente Fujimori tenha sido um ladrão?” – perguntou ao taxista.
“Não” – ele respondeu – “porque Fujimori só roubou o necessário”.
O necessário. A indiferença moral. A civilização do espetáculo.
“A frivolidade é ter valores completamente confusos, é o sacrifício da visão de longo prazo pela de curto prazo, pelo que é imediato. Isto é justamente o espetáculo”.
O ensaio é um diamante para a polêmica, explica Vargas Llosa com uma voz suave e precisa que inunda a linha telefônica desde o outro lado do Atlântico, segunda-feira pela manhã, em Lima.
Pergunta: O senhor sustenta que a cultura se banalizou, que a frivolidade no seu pior sentido triunfa, que o erotismo perde em favor da pornografia, que a pós-modernidade é, em parte, um experimento falido e pedante, que o jornalismo se acovarda, que a política se degrada, que na civilização do espetáculo o rei é o palhaço... Existe alguma esperança?
Resposta: Sim, existe esperança. A história não está escrita, não é fatídica, ela muda. Vivemos em uma época no qual pudemos ver as transformações históricas mais extraordinárias e inesperadas. Se alguém tivesse me dito quando eu era jovem que eu veria o desaparecimento da União Soviética, a transformação da China em um país capitalista; se alguém tivesse me dito que a América Latina estaria em pleno processo de crescimento, enquanto a Europa vive sua pior crise financeira em um século, eu não teria acreditado e, no entanto, todas estas coisas aconteceram. É claro que podemos esperar uma renovação da vida cultural, das artes, das humanidades e o abandono deste traço cada vez mais frívolo, mais superficial e que eu acredito que é uma de suas principais características hoje em dia: não a única, porque existem exceções à regra, felizmente. Mas esta banalização tem consequências não só no campo da cultura, mas em todos os outros. Por isso no livro me refiro à política, inclusive a vida sexual, a relação humana. Tudo isto pode ser afetado se a cultura viver na banalização, em uma frivolidade permanente.
“Nem todos podem ser cultos da mesma maneira, nem todos querem ser cultos da mesma maneira e nem todos devem que ser cultos da mesma maneira”.
Pergunta: E isso produz no senhor certo desgosto, uma sensação de zombaria. Desde quando?
Resposta: É um processo, não chega de uma vez. Mas eu me lembro, por exemplo, o choque que eu tive ao visitar a Bienal de Veneza há alguns anos. A Bienal era uma vitrine de prestígio e modernidade, de novidade, de experimentação e, de repente, depois de passear por seu interior por umas duas horas, chegar à conclusão de que ali havia muito mais fraude, embuste, do que seriedade, profundidade. Para mim foi uma experiência muito importante que me levou a refletir sobre este tema. No final do livro, em um texto que é bastante pessoal, conto como foi enriquecedor ler bons livros, conhecer a grande tradição pictórica, o mundo da música, como isso deu mais sentido, mais ordem e organização ao mundo que o tornou muito mais interessante para mim, mais rico, mais estimulante. Eu acredito que seria uma tragédia que justamente em uma época em que existe um extraordinário progresso tecnológico, científico e material, ao mesmo tempo a cultura se transforme em puro entretenimento, em algo superficial, deixando um vazio que não pode ser preenchido, porque nada pode substituir a cultura no seu papel de dar um sentido mais profundo, transcendental e espiritual à vida. Os jornais mais sérios tentam resistir ao sensacionalismo, mas se a sobrevivência está em jogo tem que haver concessões.
Pergunta: Quando o senhor fala de saudade, diz que: “O pior é que provavelmente este fenômeno [a banalização da cultura] não tem conserto e o que eu sinto falta tenha se transformado em pó e cinzas sem volta”.
Resposta: Espero estar errado.
Pergunta: Esse pessimismo é estranho em alguém tão bem-sucedido.
Resposta: ...nostalgia de velho. Às vezes sinto um pouco de angústia porque ... Olha, eu morei na Inglaterra e me lembro como fiquei deslumbrado ao ver televisão. A televisão que eu conhecia era muito pobre, muito medíocre, e de repente descobri que havia possibilidades de usar a televisão em um sentido criativo, não só porque os melhores escritores e dramaturgos escreviam para televisão... Eu assistia com paixão a um programa na televisão que se chamava Panorama, de jornalismo investigativo. Eu me lembro, por exemplo, de um episódio de duas horas sobre os dissidentes na União Soviética filmado clandestinamente em Moscou. E de repente, depois de alguns anos, vi que a televisão da Inglaterra também tinha sucumbido à frivolidade total. Os melhores países, os que as pessoas acham que estão a salvo dessa mediocridade, também sucumbiram a este tipo de mandato de gerações em direção ao que é mais fácil, à superficialidade, à frivolidade. Existem exceções, claro....
Pergunta: ...sua própria obra é uma exceção. Ela não é um exemplo de que a capacidade de autocrítica sobrevive? Que nem tudo é autocomplacência e frivolidade?
“Explosões como o 15-M são interessantes se não caírem no conformismo
da inconformidade”
Resposta: Sim, mas é sempre preocupante que a maior força, a maior riqueza esteja agora mais no passado do que no presente; que não seja algo atual, que seja necessário olhar para trás... E ainda há outro aspecto. Junto com a frivolidade, existe um obscurantismo que levou a crítica a um extremo de especialização que a coloca totalmente à margem do cidadão comum, do homem medianamente culto ao qual antes esta crítica servia para orientar-se dentro de uma oferta tão grande.
Pergunta: Mas o que o senhor propõe é à volta aos antigos padrões culturais. Isso é possível? Existe legitimidade para isso? Não existe certo aristocratismo em tudo isso?
Resposta: Aristocratismo é uma palavra que provoca muita rejeição, mas, por outro lado, a rejeição da elite como um todo é uma grande ingenuidade. Nem todos podem ser cultos da mesma maneira, nem todos querem ser cultos da mesma maneira e nem todos devem ser cultos da mesma maneira. Existem níveis de especialização que são perfeitamente explicáveis e a condição é que a especialização não termine por dar as costas ao resto da sociedade, porque então a cultura deixará de impregnar a sociedade como um todo, desaparecerão os consensos, os denominadores comuns que permitem fazer uma diferença entre o que é autêntico e o que é falso, entre o que é bom e o que é mau, entre o que é belo e o que é feio. Parece mentira que tenhamos chegado a um mundo onde já não podemos fazer este tipo de diferença. Porque, aí sim, se desaparecerem estas categorias estaremos no reino do embuste, do engano... A publicidade substitui o talento, fabrica-o, inventa-o.
Resposta: O senhor também faz crítica à cozinha ou a moda que agora fazem parte da cultura?
Resposta: Justamente esta é uma das manifestações dessa banalização e dessa frivolidade. Não tenho nada contra a moda, acho ótimo que exista uma preocupação com a moda, mas não acredito que a moda possa substituir a filosofia, a literatura, a música erudita. Mas isto está acontecendo. Hoje em dia, falar de cozinha e de moda é muito mais importante do que falar de filosofia ou de música. Isto é uma deformação perigosa e uma manifestação terrível da frivolidade. O que é frivolidade? A frivolidade é ter valores completamente invertidos, é o sacrifício da visão de longo prazo pela de curto prazo, pelo imediato. Isto é o espetáculo.
Pergunta: Mas esta perspectiva não traduz uma excessiva idealização do passado, como essa idade dourada platônica que Popper tanto criticava e que tem como consequência fossilizar a sociedade, impedi-la de mudar...
Resposta: Não, eu não concordo com a fossilização. Não sou um conservador nesse sentido, com certeza não, e sei que no passado, ao mesmo tempo em que existiram Cervantes e Shakespeare, existiu a escravidão, o racismo mais espantoso, o dogmatismo religioso, a Inquisição, as fogueiras para os dissidentes... Eu sei muito bem que o passado abrigou tudo isso, mas ao mesmo tempo não se pode negar que nesse passado havia coisas admiráveis, que marcaram profundamente o presente, que enriqueceram a vida das pessoas, a sensibilidade, a imaginação. E essa era uma função da cultura. Hoje em dia não é possível falar nem mesmo de “alta cultura”, porque isso é incorreto, politicamente incorreto.
“Falar de moda e de cozinha tornou-se mais importante do que falar de filosofia ou música”.
Pergunta: Existe uma defesa muito interessante do erotismo no livro, como obra de arte frente ao “sexo pelo sexo”.
Resposta: O erotismo foi, no mundo da experiência, a conversão do instinto em algo criativo, em uma verdadeira obra de arte, e isso foi possível graças à cultura. Eu não acredito que o erotismo nasça simplesmente de uma experiência pragmática do sexo. Acredito que a cultura, que são as artes, e o refinamento da sensibilidade é que produz a alta cultura, que cria o erotismo. O erotismo é uma manifestação das civilizações, ele acontece em sociedades que alcançaram certo nível de civilização. E ao mesmo tempo significa o respeito às formas, a importância das formas na relação sexual. Cito muito Georges Bataille – ele sempre defendeu o erotismo justamente como uma manifestação da civilização e foi muito reticente à permissividade total porque acreditava que a permissividade total mataria as formas e no final chegaríamos, outra vez, a uma espécie de sexo primitivo, selvagem. E algo assim aconteceu no mundo atual.
Pergunta: Ou seja, falta erotismo à nossa cultura.
Resposta: Por isso o sexo significa tão pouco para as novas gerações. Significa um entretenimento que é quase uma ginástica. É como cortar uma fonte riquíssima não só de prazer, mas de enriquecimento da sensibilidade.
Pergunta: O que pensaria Mario Vargas Llosa se tivesse 25 anos, sobre o livro que Mario Vargas Llosa escreveu agora?
Resposta: Não posso imaginar. Nós pudemos viver uma diferença de gerações sem precedentes na história. Justamente por causa da extraordinária revolução tecnológica, audiovisual, o mundo é tão absolutamente diferente e é muito, muito difícil estar no lugar de um jovem hoje em dia. Existem muitas coisas no passado que devem ser eliminadas, que devem ser reformadas, sem dúvida. Mas existe uma que eu acredito que não, que deve ser conservada, renovando-a, atualizando-a, que é a cultura. Uma civilização que produziu Goya, Rembrandt, Mahler, Goethe, não é desprezível, não pode ser desprezível. Ela fixou certos padrões que, se quiser, devem ser criticados, mas mantidos sem se interromper. E eu creio que essa continuidade se perderá se a cultura passar a ser uma atividade secundária e relegada só ao campo do entretenimento.
Pergunta: O senhor fala do pessimismo, do catastrofismo, inclusive como um perigo maior que a corrupção e cita uma juventude apática, reclusa em uma hostilidade sistemática, aborrecida. Fenômenos como o 15-M, o Ocuppy Wall Street, não lhe dão alguma esperança?
Resposta: Sim, alguma esperança. Sempre e quando não forem orientados no sentido errado. Porque existe certo conformismo na inconformidade. Foucault escreveu coisas interessantes a este respeito. Mas acredito que existem algumas centelhas entre os jovens que são bem interessantes. Eu não sou pessimista, sou bastante otimista, as coisas podem mudar para melhor. Mas existem alguns aspectos nos quais é muito importante uma crítica sobre um fenômeno que representa uma decadência.
Pergunta: Uma decadência na qual o senhor inclui a corrupção política. Para ilustrá-la, o senhor conta uma anedota vivida pelo escritor Jorge Eduardo Benavides, em Lima, quando um taxista disse que votaria em Fujimori porque “só roubou o necessário”.-
Resposta: Para mim esta história é maravilhosa. Existe toda uma mentalidade por trás disso. Um político pode roubar; e mais, ele não pode não roubar, mas o importante é que não roube muito.
Pergunta: E este tipo de comportamento está aumentando..
Resposta: ... Em razão da crise de valores, não somente estéticos, mas outros que antes, pelo menos da boca para fora, todos nós respeitávamos. O político já não precisa ser honrado, precisa ser eficiente. O ser honrado parece uma impossibilidade inerente ao ofício. Se chegarmos a um pessimismo deste tipo estaremos perdidos. Eu acho que não é verdade e afirmo que não é verdade. Mas existe uma mentalidade que identifica a política com a esperteza, com a desonestidade. É perigosíssimo, especialmente para o futuro da cultura democrática. Se pensarmos assim, a cultura democrática não terá sentido e mais cedo ou mais tarde também vai desaparecer.
Pergunta: Mas existem países que têm uma proteção maior frente à corrupção.
Resposta: Lógico. A grande diferença está no mundo da democracia e no mundo do autoritarismo. É claro que na democracia existe corrupção, nós vemos todos os dias. Mas é justamente isto: nós vemos, aparece, existe uma justiça mais ou menos independente que pode processar os culpados. A Espanha é um exemplo. Podemos dizer que existe muita corrupção, mas estamos vendo casos de políticos importantíssimos que foram acusados e condenados por serem ladrões, traficantes. Esta é a grande diferença. Isto não se vê em Cuba ou na China, onde de repente você fica sabendo que decapitaram um senhor porque foi acusado de delinquente e exercia um cargo político. Existem diferenças. E dentro dos regimes democráticos também. As democracias mais avançadas são menos corruptas que as democracias mais jovens, que são muito mais ineficientes. Lembro-me que nos anos em que morei na Inglaterra, o maior escândalo de corrupção foi o de um ministro de Margaret Thatcher que não somente perdeu seu cargo, mas foi preso e perdeu praticamente todo o seu patrimônio por ter passado um fim de semana no Hotel Ritz de Paris, com a conta paga por um xeque árabe. Ou seja, uma corrupção de algumas centenas ou milhares de libras esterlinas. Como você pode perceber isto foi na época de Fujimori, no Peru, e normalmente era o que o prefeito de uma pequena cidade roubava. Não me refiro aos bilhões que Fujimori e Montesinos roubaram. A condenação social foi muito pequena, já que nas últimas eleições quase foi novamente eleito através do voto popular. Essas diferenças são muito importantes. E acredito que é fundamental ser muito exigente e rigoroso nesse campo e não pensar que ser político dá a alguém o direito de roubar.
Pergunta: É evidente que nas ditaduras existe mais corrupção. Mas também acontece um fenômeno inverso. É aí onde a luta dos intelectuais tem mais sentido. É o caso da China com um ganhador do Prêmio Nobel da Paz encarcerado.
Resposta: Realmente. Quando a liberdade desaparece é quando ela se torna imediatamente importante. E quando a luta pela liberdade se transforma em uma prioridade, o intelectual, o escritor, o poeta, o novelista, o pintor, de repente começam a ter uma importância fundamental nessa luta. Este é um fenômeno que estamos vendo na China. O caso de Ai Weiwei é muito interessante. É uma figura que hoje em dia representa o espírito de resistência, a vontade de abertura, de modernização, de democratização.
Pergunta: Ao tratar da degradação dos valores, o senhor inclui também o sensacionalismo da imprensa. O senhor acredita na auto regulação como um caminho para coibir estas práticas?
Resposta: Creio que é o único caminho. Que a própria imprensa assuma a responsabilidade. Isto não se resolve com censura ou algo parecido. Mas, além disso, creio que o sensacionalismo é a expressão de uma cultura. A imprensa faz parte da vida cultural de um país. E se a cultura empurra a imprensa para os mexericos e faz da fofoca um elemento central, no final o mercado vai fazer esta imposição aos jornais, por mais responsáveis e sérios que possam ser. E estamos vivenciando isto em todos os lugares. Os jornais mais sérios tentam resistir, mas em um dado momento, se a sobrevivência estiver em jogo, eles terão que fazer concessões. A origem não está nos jornais, a origem está na cultura dominante, que impõe a frivolidade e a imprensa marrom.
“Existe uma mentalidade que identifica a política com a desonestidade, isto é perigosíssimo para o futuro da cultura democrática”.
Pergunta: O senhor foi vítima de sensacionalismo.
Resposta: Sim, fui. Toda pessoa conhecida hoje em dia fatalmente é vitima de fofocas. Você passa a ser um objeto que já não pode controlar a sua própria imagem. A imagem pode se distorcer até um extremo indescritível. Muito mais se você faz política em um mundo subdesenvolvido. Ali tudo pode acontecer.
Pergunta: E existe um efeito multiplicador por causa das novas tecnologias.
Resposta: Frente às quais você se defende muito mal. Tive uma experiência há algum tempo na Argentina. Uma senhora me cumprimentou por um texto que escrevi em homenagem à mulher e que a havia comovido muito. Eu agradeci, mas disse que não tinha escrito nenhuma homenagem à mulher. Era algo que surgiu na Internet, muito mal escrito, assinado por mim e lançado no ciberespaço sem nenhuma razão. Como você pode se defender contra isso? É absolutamente terrível. De repente, você perde a sua identidade, porque hoje em dia existem esses mecanismos que permitem falsificações desse tipo. Acho que é bastante preocupante. E você também não pode dedicar sua vida a ficar corrigindo estes erros. No final, deixa de escrever, de ler, para tentar corrigir todas as falsidades, invencionices que são atribuídas a você. Este é um dos aspectos da irresponsabilidade que veio junto com a grande revolução audiovisual.
Pergunta: Mas também é preciso reconhecer que o universo da Internet e das redes sociais permite a exposição universal de um artista ou de um pensador quase que imediatamente.
Resposta: E a possibilidade de burlar todos os sistemas de censura; isto é um progresso. Mas, ao mesmo tempo, também é outra forma de confusão que tem efeitos muito negativos na cultura, na informação. O excesso de informação, em última análise, também significa o desaparecimento da discriminação, das hierarquias, das prioridades. Tudo alcança um mesmo nível de importância pelo simples fato de estar na mídia.
Pergunta: Ainda que o senhor não ataque as religiões, pelo contrário, percebemos no livro uma queda pelo ateísmo ilustrado. Há um momento, inclusive, em que identifica a cultura profunda com aquela força capaz de substituir o vazio deixado pela religião.
Resposta: A ideia liberal, tradicional, de que com o avanço do conhecimento a religião iria desaparecendo foi uma ingenuidade. A maioria das pessoas, países cultos ou incultos, precisa de uma transcendência, algo que lhes assegure que não perecerá definitivamente e que haverá outra vida, de qualquer tipo, e isto é o que prega a religião. Só uma minoria – e assim foi tanto no passado como no presente – consegue preencher este vazio com a cultura, que lhes dá segurança suficiente, suficiente resistência para aceitar a ideia da extinção. Mas é uma ingenuidade combater a religião. Ela tem uma função a cumprir e é a de dar um mínimo de segurança que permite às pessoas viver com a esperança de outra vida, é uma defesa contra a extinção que aterra todas as gerações, não importa o nível de cultura que uma sociedade possua. Os crentes e os não crentes devem aceitar isso, sempre e quando a religião não se identifique com o Estado, porque aí a liberdade desaparece. A religião por definição é dogmática, estabelece verdades absolutas e não quer coexistir com verdades contraditórias. Mas, enquanto a religião ocupar o espaço que lhe é próprio, ela será indispensável para que uma sociedade seja verdadeiramente democrática, livre, na qual se possa coexistir com a diversidade.
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A diversidade, a liberdade, a tolerância. O escritor vive e revive nessas palavras. No decorrer da entrevista, a amargura que às vezes surge no seu discurso frente ao que considera a devastação da cultura se mistura com elas. De alguma maneira, são seus princípios ateus e sua religião frente ao espetáculo.
- “Escrevemos outro livro, não?”, brinca antes de se despedir.
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Tradução: Miriam Xavier de Oliveira.
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Fonte: http://cultura.elpais.com/cultura/2012/04/13/actualidad/1334353232_001546.html
através do site:
www.torres-R.S.TV - Torres Revista Digital, Ano III, nº 225, 21/28 abril de 2012, gentilmente cedido pelo meu amigo Paulo Timm.
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Mario Vargas Llosa
entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 02/01/1995, comandado por Heródoto Barbeiro com a participação de Jorge Schwartz, Claudinei Ferreira, Fábio Lucas, Ricardo Setti, Hamilton dos Santos, Heloísa Jahn; Matinas Suzuki, e Geraldo Galvão Ferraz .
Heródoto Barbeiro: Boa noite. Os intelectuais da América Latina costumam ser impiedosos com dois tipos de escritores: os que não são explicitamente de esquerda e, pior ainda, os que têm a ousadia de fazer política na companhia de partidos conservadores. No centro do Roda Viva que começa agora pela Rede Cultura, um personagem que reúne essas duas maldições, o escritor peruano Mario Vargas Llosa. Autor consagrado de romances como Tia Júlia e o escrevinhador [1977]; Conversa na catedral [1969]; A guerra do fim do mundo [1981], Vargas Llosa surpreendeu quando, há cinco anos, lançou-se como candidato à Presidência do Peru. Apesar de ter liderado todas as pesquisas, perdeu a eleição no segundo turno para um político até então pouco conhecido, Alberto Fujimori. Aliás, surpreender com seus atos e obras é a rotina de Vargas Llosa. Numa dessas ocasiões, foi quando ele se declarou favorável a uma legalização global das drogas, o que seria, pensa ele: “Uma das poucas possibilidades de combater a criminalidade”. Outra, no ano passado, quando pediu e conseguiu a cidadania espanhola. Llosa dizia ter problemas com as autoridades peruanas. Apaixonado pelo Brasil, país que em sua opinião só precisa de um pouco de sensatez para dar certo, ele veio pela primeira vez a São Paulo lançar sua obra Peixe na água [1991], na qual relata sua experiência política e outras memórias. Vargas Llosa, boa noite.
Mario Vargas Llosa: Boa noite.
Heródoto Barbeiro: Vargas Llosa, enquanto escritor e, agora mais recentemente, com a sua passagem pela política no Peru, na sua avaliação, quais foram as transformações mais importantes na América Latina nesses últimos anos? O que aconteceu de mais importante, que foi capaz de mudar um pouco o perfil do nosso continente?
Mario Vargas Llosa: O mais importante é o enraizamento de governos democráticos, civis, nascidos de eleições e apoiados por um consenso popular que rechaça as opções tanto da ditadura militar quanto do messianismo revolucionário, e escolhe a democracia como o marco para o desenvolvimento latino-americano. Creio que essa é uma experiência compartilhada praticamente por todos os países da América Latina, o que para mim é um grande passo para a modernização do continente.
Heródoto Barbeiro: Mesmo que alguns países, como o seu, apesar de governos civis, não sejam governos inteiramente democráticos?
Mario Vargas Llosa: Infelizmente, o Peru e Cuba são exceções a essa regra. O Peru perdeu a democracia em abril de 1992, quando o presidente Fujimori fechou o Congresso, convocou os militares para serem, outra vez, o fator decisivo na política peruana, uma medida totalmente desnecessária e que significou, do ponto de vista político, um grave retrocesso que certamente tem de ser criticado.
Heródoto Barbeiro: Heloísa, como primeira mulher, começamos pela Heloísa.
Heloísa Jahn: Eu queria fazer uma pergunta sobre tradução. Eu traduzi [seu livro] Peixe na água, e tem uma coisa que sempre me dá muita curiosidade. O senhor afirmou que, na arte de escrever, eu vou ler aqui o que eu anotei: “Na arte de escrever, além da inteligência, da razão e do conhecimento do autor, intervém todo um lado obscuro da personalidade do escritor”. Eu acho que uma das formas de escrever e tentar descrever o trabalho de tradução é que o tradutor se esforça por se deixar impregnar por toda a forma de ser daquele autor. E isso incluiu também tentar percorrer esse lado obscuro. Isso dá ao tradutor uma sensação de grande intimidade com o escritor, porque é uma coisa extremamente indiscreta tentar imitar a linguagem de uma outra pessoa. Eu pergunto: como o autor se sente diante dessa intrusão? A gente pode descrever como uma intrusão. Será que às vezes dá raiva dessa pessoa que se mete na sua linguagem?
Mario Vargas Llosa: Eu não tive experiência de tradutor, salvo um pequeno texto de [Jean-Nicolas Arthur] Rimbaud [(1854-1891) poeta francês], que traduzi quando jovem, o único texto narrativo conhecido de Rimbaud, “Um coração sob a sotaina”. E essa experiência, ainda que breve, deu-me uma idéia da imensa dificuldade, do esforço extraordinário de despersonalização que um tradutor deve fazer um tradutor para ser leal, para ser fiel ao original, uma coisa que não é obrigatória: há tradutores que não estão muito preocupados com a fidelidade, mas antes com a recriação, e neste caso eu creio que o tradutor pode exercitar a imaginação como um criador. Mas acho que um tradutor que queira ser fiel, que queira identificar-se totalmente com o autor que traduz, vê sua liberdade e sua iniciativa muito cerceadas... [neste caso, há] necessariamente uma despersonalização.
Heloísa Jahn: Como se sente o autor diante disso?
Mario Vargas Llosa: Diante da tradução? Veja, nos idiomas mais próximos àqueles que conheço, sim, eu procuro acompanhar e ajudar o tradutor se ele me pedir ajuda, mas há idiomas em que é impossível sequer imaginar o que pode ocorrer com a tradução...
Heloísa Jahn: [interrompendo] As obras desaparecem.
Mario Vargas Llosa:...e acho que, nesse caso, é preciso rezar à Virgem, caso se acredite nela, para que a tradução seja fiel, ou pelo menos próxima [da fidelidade].
Matinas Suzuki: Eu ia fazer uma pergunta sobre o Peru... Os críticos do liberalismo e os críticos do senhor costumam dizer que, na verdade, o programa do engenheiro Fujimori, como o senhor diz, é exatamente um programa que o senhor executaria, os métodos é que são diferentes. O senhor concorda com essa visão?
Mario Vargas Llosa: Não, não é verdade. Digamos que a orientação econômica sim, a privatização, abertura da economia aos mercados internacionais, redução do Estado, do intervencionismo estatal, essa orientação, desde o início, seria a que eu teria imposto ao governo, mas dentro dessa política há muitas variedades. Por exemplo, a privatização, do meu ponto de vista, deveria ter sido um instrumento para disseminar a propriedade privada entre os peruanos que não têm acesso à propriedade. Privatizar, dando preferência da aquisição de ações aos operários, aos empregados, aos usuários... Eu acho que a privatização, por si só, não é suficiente. É necessário haver uma reforma de tipo social que estenda a propriedade privada, caso contrário, embora a economia cresça, o problema social continua, como é o caso do Peru. A orientação em que acredito é a aquela que pode trazer o desenvolvimento. Mas, para mim, as reformas liberais não podem separar a liberdade econômica da liberdade política, e só podem ser realizadas na democracia, com o consentimento eleitoral de uma população, e respeitando a liberdade de imprensa, os direitos humanos, a independência do poder judiciário. Senão, o progresso fica manco, coxo e capenga.
Matinas Suzuki: E esses críticos dizem também que o programa liberal na América Latina seria insuficiente para resolver os problemas sociais. Como o senhor vê essa crítica?
Mario Vargas Llosa: Não, eu acho que essa é uma crítica infundada. O problema social é certamente complexo, mas dentro da solução desse problema o ponto básico é de criação de riqueza. Na América Latina, até agora temos criado pobreza; temos tido sistemas para criar pobreza, e é preciso reverter essa tendência e começar a criar riqueza. Para isso, há apenas uma receita: são as políticas de mercado. Mas isso não basta. Naturalmente, é muito importante haver reformas na educação e na distribuição da propriedade através de vias liberais, não por meio de expropriação.
Heródoto Barbeiro: O senhor está propondo crescer primeiro o bolo para depois reparti-lo, como foi feito no Brasil?
Mario Vargas Llosa: Não, absolutamente, creio que as reformas devem ser simultâneas, tanto no setor político quanto no setor social e no setor econômico. Para mim, esse é um aspecto fundamental da reforma. Acreditar que primeiro é preciso conseguir a liberdade econômica mediante uma ditadura, mediante um governo autoritário, para em seguida se realizar a reforma democrática, para mim me parece uma perversão da idéia básica da filosofia liberal, segundo a qual a liberdade não é divisível; a liberdade não pode ser dividida em liberdade política e liberdade econômica.
Ricardo Setti: Eu pincei da sua obra Peixe na água um trecho que se refere a essa questão, que até o Heródoto mencionou na abertura, da nacionalidade. O senhor escreve assim: “Sou provocação, um cosmopolita e um apátrida, uma pessoa que sempre detestou o nacionalismo. Detesto o nacionalismo, que me parece uma das aberrações humanas que mais sangue fizeram correr”. Em um outro texto anterior, o senhor se refere a sua relação com o seu país, o Peru, como uma relação mais adúltera do que conjugal, cheia de suspeita, paixão e fúria, e o Heródoto mencionou que o senhor requereu e obteve a cidadania espanhola. Então, eu gostaria que o senhor explicasse como é essa questão de sentir-se um cidadão do mundo, um apátrida, e ao mesmo tempo ter uma relação de paixão e fúria e suspeita com o Peru? Quer dizer, como é essa relação sua com o seu país?
Mario Vargas Llosa: A relação com o meu país tem a ver com minha juventude, com muitas recordações, algumas memórias, que são a fonte da minha personalidade, algo que desperta em mim, por um lado, nostalgia, carinho, solidariedade, mas outras vezes também cólera, indignação. Isso cria um vínculo muito estreito entre uma pessoa e um lugar, e um grupo de pessoas. Para mim, isso pode ser definido como patriotismo, que é um sentimento, creio eu, sadio, mas o nacionalismo é uma coisa muito deferente, é uma coisa política. O nacionalismo é um patriotismo obrigatório, imposto a partir do poder e a partir do preconceito, da convenção social. Esse é para mim um sentimento absolutamente negativo. O nacionalismo não quer afirmar algo, mas repudiar o que é estrangeiro; parte de um complexo de insegurança diante do outro, diante do desconhecido, diante do estranho. É o espírito da tribo, é o espírito primitivo, é o espírito por trás das guerras, por trás da intolerância. O nacionalismo é a intolerância para com os outros. Para mim, uma das coisas mais importantes que ocorreu com a humanidade, em grande parte graças à economia – a economia foi destruindo as fronteiras, foi estabelecendo vínculos muito estreitos, supranacionais –, foi essa internacionalização da vida que talvez seja a característica mais importante dos tempos modernos.
Ricardo Setti: E qual foi a razão prática ou sentimental de o senhor ter solicitado a cidadania espanhola? Tem a ver com a sua situação de adversário...?
Mario Vargas Llosa: É uma questão puramente prática. Quando o senhor Fujimori deu o golpe e destruiu a democracia peruana, eu, que não havia feito a menor crítica ao governo de Fujimori, comecei a criticar o golpe, porque me pareceu que retrocedermos ao autoritarismo era algo gravíssimo para o Peru e para a América Latina. E então critiquei muito severamente Fujimori e pedi sanções diplomáticas e sanções econômicas contra os golpistas, algo que eu disse que, se tivesse sido eleito presidente, o governo peruano faria com os golpistas da América Latina: romperia relações diplomáticas e imporia sanções econômicas contra todo governo ditatorial. Isso me provocou naturalmente uma grande hostilidade do Peru, sobretudo por parte do governo, e me vi hostilizado demais, inclusive com a ameaça de perder a nacionalidade peruana. Houve uma reunião em um quartel, no Peru, com a presença de todos os chefes militares, onde fui declarado traidor da pátria. No Congresso “instrumental” criado por Fujimori, houve pedidos para me privarem da nacionalidade peruana, e aí eu teria sido convertido em um pária, uma situação muito incômoda para um latino-americano. Então, pedi ao governo espanhol que nos reconhecesse a dupla nacionalidade, o que o governo espanhol teve a generosidade de conceder a mim e a minha família, de tal forma que agora somos peruanos, mas somos também espanhóis, do qual me alegro e me orgulho muito, porque a Espanha é um país que amo muito.
Ricardo Setti: O senhor sofreu também uma perseguição, parece que absurda, do imposto de renda do Peru, não é?
Mario Vargas Llosa: É verdade. Uma das muitas formas que o regime autoritário encontrou para me hostilizar foi inventar que eu devia uma quantia absolutamente astronômica de impostos por duas viagens que realizei no ano de 1985. Segundo o governo, não constava da minha declaração de renda. Duas viagens que o governo considerava que haviam me rendido 18.000 dólares. Imaginavam que era este o salário que eu recebia por minhas conferências internacionais. E essa quantia foi multiplicada pela inflação peruana [risos], o que deu muitos milhões e milhões de dólares. No fim, houve muito escândalo e eles recuaram, mas é um indício das coisas que as ditaduras costumam fazer contra seus críticos, não é?
Claudinei Ferreira: Eu gostaria de voltar também ao texto de abertura do Heródoto, quando ele cita algumas irritações de pessoas contra intelectuais e algumas irritações específicas contra o escritor Vargas Llosa. Eu gostaria de uma resposta sua: o que mais o irrita no intelectual? E o que mais o irrita em um político?
Mario Vargas Llosa: O que mais me irrita num intelectual e num político é a mesma coisa. Mas em um intelectual parece mais grave: é a duplicidade. É dissociar as palavras dos atos, dizer uma coisa e agir de maneira totalmente diferente. Por exemplo, tenho muito respeito, embora discorde totalmente, pelos escritores que defendem Fidel Castro, que promovem o anti-americanismo no mundo, mas em sua vida pessoal agem de uma maneira coerente: não vão aos Estados Unidos, vão a Cuba, não pedem bolsas norte-americanas, não pedem subsídios às fundações norte-americanas [risos]. O que acho uma desonestidade é, de um lado, serem castristas militantes, pregar o antiamericanismo e, ao mesmo tempo, viver de bolsas da Guggenheim, ensinar em universidades norte-americanas e, quando saírem de seus países, não ir morar em Havana, mas em Nova York, em Washington. E eu conheço uma legião deles...
Heródoto Barbeiro: O senhor pode citar algum exemplo?
Mario Vargas Llosa: Posso citar um exemplo: o escritor Mario Benedetti [1920-2009], uruguaio. Somos opositores do ponto de vista ideológico, mas tenho muito respeito por Mario Benedetti. Ele é uma pessoa que, quando teve que exilar por imposição da ditadura de seu país, não foi morar em Washington, mas em Havana. E Mario Benedetti faz um esforço para ser coerente em suas convicções e em sua conduta. E eu o respeito muito, embora discorde totalmente de suas posições. Do outro lado, poderia citar dezenas e dezenas de escritores, inclusive entre os maiores, que por um lado pregam o ódio aos ricos, e não somente são ricos como vivem muito contentes entre os ricos; pregam o ódio aos Estados Unidos, aos países desenvolvidos; às democracias corrompidas, e vão morar e gastar seus elevados direitos autorais em Nova York, em Paris, em Londres...
Heródoto Barbeiro: Mas desses o senhor não citou nenhum nome [risos].
Mario Vargas Llosa: Veja, você os conhece, sabe de sobra quem são, por que preciso citá-los? Não, não quero excluir ninguém, são tantos [risos].
Claudinei Ferreira: O candidato Mario Vargas Llosa foi integralmente, totalmente uno? Não houve dubiedade do candidato, por exemplo, quando beijava uma criancinha, quando fazia um discurso para multidão? Você foi absolutamente uno o tempo todo da campanha?
Mario Vargas Llosa: Veja, eu não menti, eu não menti na campanha. Eu me propus a não mentir. Disse exatamente o que queria fazer, o tipo de reformas, qual iria ser o custo dessas reformas. Pareceu-me que, para fazer essas reformas, era muito importante ter o apoio do povo peruano. Não o tive e aceitei isso, mas na campanha tive que fazer coisas que não gosto de fazer, não são do meu feitio, a idiossincrasia pelas multidões, por beijar as criancinhas, por falar alto, o que é indispensável quando se sobe num palanque. E fiz todas essas coisas de que não gosto e as fiz muito mal. Isso é verdade, mas temos que aceitar certas regras do jogo quando aceitamos participar de uma campanha eleitoral.
Fábio Lucas: O senhor se dedica a duas atividades fundamentais para o homem, que são a política e a criação literária. Creio que temos mais convergências na área da criação literária, de que eu sou um grande admirador do seu trabalho. Mas na área da política me ficam muitas dúvidas sobre a sua posição em relação ao tema do nacionalismo e ao tema do liberalismo, porque parece, dos seus discursos, das suas propostas, uma confusão entre democracia e liberalismo, e outro problema que me surge principalmente é no comércio internacional. Por exemplo, eu não conheço nenhuma grande nação avançada que não seja protecionista. E o protecionismo é uma atitude nacionalista, portanto eu também, no caso do Brasil, nós temos aqui um complexo industrial já bastante avançado, e esse complexo não existiria [apenas] com a atividade privada. Se não fosse a intervenção do Estado, nós não teríamos um conjunto de empresários a operar a nossa atividade econômica. Todo o Brasil foi protecionista, o nosso grande processo industrial dos [anos] 30 para cá se valeu de artifício protecionista para que os nossos empresários pudessem realçar e produzir. Dessa forma, me parece que toda vez que as economias se apresentam com barreiras alfandegárias, de que tipo forem, estão praticando nacionalismo. E outra coisa que eu queria pôr em relação a sua referência às pessoas que não gostam, por exemplo, do governo americano ou do capitalismo e vão aos Estados Unidos. Essa confusão dos Estados Unidos com o seu governo é uma atitude nacionalista. O senhor não acha?
Mario Vargas Llosa: São muitas perguntas e todas muito estimulantes. Deixem-me respondê-las por partes. É verdade que a maior parte dos países pratica o protecionismo, e é verdade que o protecionismo é uma expressão do nacionalismo, mas isso não justifica nem o protecionismo nem o nacionalismo. Por exemplo, não há país onde não haja preconceitos raciais. Os preconceitos raciais são universais; os países mais democráticos têm preconceitos raciais, e isso não justifica o preconceito racial. A única coisa que isso demonstra é que, mesmo nos países mais cultos, há profundas aberrações culturais que é preciso combater, e o nacionalismo é uma delas. O protecionismo é muito ruim para todos os países: para quem o pratica e para seus vizinhos. É verdade que no Brasil tem havido uma política protecionista. Por isso, o Brasil é um país pobre, quando poderia ser um dos países mais ricos do mundo. Se os capitalistas brasileiros são medíocres e não sabem competir com muito talento, é culpa do sistema, foi o sistema que os fez medíocres. O protecionismo, a proteção, os controles, o não ter que competir, o estar protegidos torna os capitalistas medíocres e, além disso, os corrompe. Abra as fronteiras, traga os capitalistas de fora para competir e vai ver então os capitalistas brasileiros competindo, para não desaparecer. Quando tiverem que demonstrar que são eficientes, que têm de produzir bons produtos e bons serviços para ser ricos, vão produzir bons produtos e bons serviços.
Fábio Lucas: Veja, o nacionalismo é uma formação burguesa. O Estado nacional é um Estado burguês, quer dizer, ele foi criado para superar um Estado atrasado anterior, que é o feudal, quer dizer, as formações feudais. Portanto, eu acho que nós estamos passando por uma etapa, que pode ser vencida no futuro, mas no momento, principalmente para alguns países, e na generalidade em relação à proteção alfandegária, todos cultivam um certo aspecto do nacionalismo.
Mario Vargas Llosa: Mas isso não significa que, embora alguns pratiquem o nacionalismo, isso justifique o nacionalismo. O nacionalismo é uma perversão, não somente do ponto de vista cultural, mas sobretudo do ponto de vista econômico. A prova disso é que os países que praticam menos o protecionismo são os que estão melhor, são os países que se desenvolveram mais rapidamente, aqueles que conseguiram melhores níveis de vida para a sua população e os países que estão na vanguarda do desenvolvimento. O desenvolvimento é incompatível com o nacionalismo. O nacionalismo, hoje em dia, sobretudo neste mundo interdependente de mercados mundiais, condena um país a isso que [o filósofo austríaco Karl] Popper [1902-1994] chama de “o retorno à tribo”. O retorno à tribo é certamente compatível com o nacionalismo, mas significa pobreza, significa atraso, significa injustiça.
Fábio Lucas: Mas esse conceito de nacionalismo tribal é um conceito pré-capitalista...
Mario Vargas Llosa: Não.
Fábio Lucas:...nós estamos nos referindo ao nacionalismo tal como ele se desenhou no plano internacional e existe hoje. Nós podemos dividi-lo de outra forma: o nacionalismo transbordante, que quer levar a sua nacionalidade para o outro, e subjugando ou tendo melhores vantagens, e um nacionalismo defensivo, quer dizer, aquele nacionalismo que, para se desenvolver, precisa oferecer certos obstáculos na própria [...] das trocas.
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] Eu posso lhe perguntar: o que defende esse nacionalismo defensivo?
Fábio Lucas: Ele defende justamente a possibilidade de causação interna na formação econômica.
Mario Vargas Llosa: Mas isso serve de alguma coisa aos pobres do Brasil?
Fábio Lucas: Mas tem servido...
Mario Vargas Llosa: Por exemplo: saber que uma empresa que produz bateria para automóveis pertence a um brasileiro dá de comer aos pobres do Brasil? E que, ainda por cima, essas baterias são caras e ruins?
Fábio Lucas: Mas isso é um deslocamento para, digamos, quase uma insignificância. O problema não é esse. O problema é a filosofia global, uma espécie de totalidade: haverá setores em que a competição é saudável ou outros países que já têm tecnologia mais avançada, mas outros setores, setores iniciais, precisam ser protegidos para implantação. Então, é toda uma mescla de estratégias.
Mario Vargas Llosa: Mas por que têm de ser protegidos? Qual a razão disso? Se o Brasil não pode produzir, digamos, um tipo de alimento, senão gastando dez vezes mais do que gastaria com sua importação, o que ganha com isso o povo brasileiro? A honra nacional está em jogo?
Fábio Lucas: A honra não está em conta, mas o que eu acho é o seguinte: na medida em que nós dependemos muito de outras economias que têm etapas tecnológicas superiores, nós vamos nos especializando para a demanda deles. Suponhamos: no Brasil a enorme expansão da produção de alguns produtos primários de exportação faz com que nós atendamos a uma demanda externa. Enquanto precisamos imensamente das áreas férteis do país para poder produzir alimentos para o nosso povo, nós estamos ocupando, por exemplo, para produzir em grande escala a soja. Isto é, para levar o nosso conteúdo de proteínas para a Europa ou para os Estados Unidos, portanto, nós estamos prejudicando o povo brasileiro ao ocupar extensas áreas fecundas com uma produção que não alimenta nosso povo internamente.
Heródoto Barbeiro: Por favor, Vargas Llosa, quer responder? Nós temos outras perguntas a fazer.
Mario Vargas Llosa: Sim, claro, este é um tema que poderia nos ocupar a noite toda. Só uma coisa, vou lhe dar apenas um último argumento. O Brasil é um país que foi muito protecionista e agora começa... É um país gigantesco, certo? Hong Kong é um país pequenininho; em São Paulo cabem vários Hong Kongs. É um país que não tem um só recurso natural. Nenhum. É um país abarrotado, repleto de gente; se se mexem muito, caem no mar. Como você explica que esse país, que não é protecionista, que é o país mais aberto da Terra, possua uma renda dez vezes maior, se é que não é vinte vezes maior, que o Brasil? A que se deve isso?
Fábio Lucas: Mas isso é muito simples de explicar: São Paulo, a cidade de São Paulo, tem uma renda superior à de quase todos os países da América Latina.
Mario Vargas Llosa: Mas, em seu conjunto, o Brasil é um país subdesenvolvido, e Hong Kong é um país superdesenvolvido, e a honra nacional não ficou profundamente lesada, porque Hong Kong está aberto ao mundo e lá se pode entrar, sair, vender, comprar, levar capitais, tirar capitais.
Jorge Schwartz: Eu vou puxar um pouco para o literário, porque senão aqui ninguém vai falar de literatura [risos]. Há uns quinze anos, você afirmou para a Cremilda Medina, uma entrevistadora jornalista, que você estava totalmente convencido de que o melhor livro que você tinha escrito na sua vida era A guerra do fim do mundo. Eu queria saber se essa sua afirmação é válida ainda hoje ou se aquilo foi um golpe publicitário. E também quero dizer que eu acho que, no Brasil, quem leu A guerra do fim do mundo, acho que não vai perdoar um pouco você por ter feito de Euclides da Cunha uma personagem, assim, bastante anódina.
Mario Vargas Llosa: Se tiver que escolher um livro entre todos os que escrevi, certamente fico com A guerra do fim do mundo. Para mim, foi uma aventura maravilhosa, foi muito trabalhoso escrever o livro, mas senti um enorme prazer em escrevê-lo, em fazer a pesquisa necessária, no esforço que significou para mim encontrar uma linguagem capaz de ser persuasiva para contar uma historia que não ocorria na língua em que eu escrevia, que não ocorria na minha época, que não ocorria em um país que eu conhecesse pela experiência direta. Foi um desafio literário que, para mim, é uma recordação muito bonita. Mas sei que a opinião de um escritor sobre sua própria obra é muito subjetiva e não tem por que ser mais válida que a de um crítico, que a de um leitor, não é? A outra parte da pergunta era...?
Jorge Schwartz: Sobre a forma como você retratou Euclides da Cunha.
Mario Vargas Llosa: Tenho uma enorme admiração por Euclides da Cunha...
Jorge Schwartz: [interrompendo] Não é o que parece no romance [risos].
Mario Vargas Llosa: Dediquei o livro a ele. É um livro que está dedicado a ele como uma homenagem. Euclides da Cunha não aparece no romance com seu próprio nome, aparece como um jornalista debilitado, frágil; era uma pessoa meio doente, com uma saúde muito delicada, uma pessoa que ficou cega durante a Guerra de Canudos. Euclides da Cunha não viu o que acontecia, não entendeu o que acontecia, cego pelo preconceito ideológico. Minha admiração por ele é porque foi um intelectual capaz de fazer algo que poucos intelectuais fazem: revisar suas convicções diante da experiência da realidade, neste caso os milhares de mortos. Ele foi o primeiro no Brasil a dizer: “O que fizemos? Como pudemos fazer massacre tão atroz?” E, para explicá-lo, escreve essa obra-prima que é Os sertões. Isso está mais ou menos representado no personagem do jornalista míope, que fica míope durante a guerra. Mas, ao terminar a Guerra de Canudos, torna-se um homem lúcido, um homem que aprendeu extraordinariamente a diferenciar a realidade dos esquemas com os quais um intelectual se aproxima da realidade. Sinto muito que você o tenha considerado uma caricatura de Euclides da Cunha, que é um dos escritores que mais admiro.
Geraldo Galvão Ferraz: Vamos fazer uma analogia: o senhor falou dos escritores que se valem das benesses americanas, embora combatam os Estados Unidos, o americanismo, tudo isso. Me chocou muito ler uma entrevista sua em que falava que não conseguia ler um western, um policial, um livro de aventura, uma coisa assim, sendo que os seus livros usam e abusam de recursos desses gêneros. Eu gostaria que você comentasse.
Mario Vargas Llosa: É verdade. No cinema, gosto muito dos westerns. Sou um grande admirador dos westerns e dos filmes policiais, dos thrillers, mas não consigo ler romances policiais, [porque] eles me entediam, salvo algumas exceções.
Geraldo Galvão Ferraz: Mas seria uma questão de qualidade?
Mario Vargas Llosa: Acho que é, sim: a história puramente policial parece-me irreal, assim como uma história, digamos, pornográfica, que limita a vida e a experiência ao mundo do sexo, apenas. Tenho uma espécie de mania realista, e por isso qualquer aspecto da vida humana que esteja separado do contexto me parece irreal, e a irrealidade não me diverte. A alguns a irrealidade diverte muito, mas a mim ela antes entedia.
Geraldo Galvão Ferraz: Mas como o senhor usa recursos, digamos, de fantástico em seus livros?
Mario Vargas Llosa: Ah, pois eu uso todos os recursos possíveis. Acho que tenho esse direito [risos].
Geraldo Galvão Ferraz: Pois é, eu acho que há uma contradição aí...
Mario Vargas Llosa: Sim, claro, há uma contradição, mas na hora de escrever um romance eu recorro a tudo, e se creio que ali o canibalismo se justifica, eu o utilizo.
Geraldo Galvão Ferraz: [interrompendo] Agora, os escritores que vão aos Estados Unidos e usam dos recursos do capitalismo para, sei lá, para o prosseguimento de suas obras, tudo isso, não estariam de certa forma justificados?
Mario Vargas Llosa: Isso eu absolutamente não critico. Parece-me correto que um escritor solicite bolsas, peça bolsas. O que não me parece correto é que ele diga que os Estados Unidos querem corromper a cultura latino-americana criando bolsas e seja ao mesmo tempo beneficiário dessas bolsas. Aí há uma contradição. Mas que um escritor solicite bolsas, acho que tem de fazer isso mesmo. Acho perfeitamente legítimo, e além disso os escritores que vão aonde lhes dê na telha. Esse é um direito que, creio, deve ser reconhecido em todo mundo. Mas não condenar quem, por exemplo, defende o sistema democrático como agente dos Estados Unidos e depois "ir morar nesse monstro para conhecer melhor suas entranhas", como disse [o pensador cubano José] Martí [1853-1895] [risos].
Hamilton dos Santos: Já que você explorou bastante o político e um pouco da literatura, eu queria começar explorando um pouco mais o Vargas Llosa ensaísta. Em 92, você escreveu um artigo para o El País, e nesse artigo o senhor evoca Max Weber – que, aliás, é uma figura muito recorrente na sua obra de ensaísta –, e o senhor discute, disserta sobre os conceitos dele de moral de convicção e moral de responsabilidade. E, ao final, o senhor conclui que, para se restaurar o verdadeiro processo democrático, há que se abolir a moral de responsabilidade. Agora, eu creio que, para Weber, esses conceitos não eram tão flexíveis assim. A minha pergunta é, portanto: como se abole, então, a moral de responsabilidade?
Mario Vargas Llosa: Acho a análise de Weber muito lúcida, como tudo o que Weber escreveu; ele é um pensador pelo qual tenho muita admiração. Mas essa distinção que ele faz entre a moral da convicção – por exemplo, aquela do intelectual que defende a verdade, embora isso o leve a se opor ao que é a cultura do seu tempo, a ir contra a corrente – e a moral da responsabilidade de um político, que não pode se arriscar à total impopularidade, porque isso criaria muitos... O problema é que essa distinção abre todas as portas ao oportunismo, ao cinismo, a esse aspecto da política que produz tanta irritação, tanto desprezo e tanta frustração no povo: os políticos que dizem uma coisa e fazem exatamente o contrário, que acreditam que a linguagem não compromete, que a linguagem é simplesmente um espetáculo para se angariar votos numa campanha eleitoral, mas que absolutamente não compromete, não é mesmo? Então, essa é a tragédia da América Latina e de tantos países do Terceiro Mundo. Isso transformou a política nessa coisa que a gente despreza e da qual as pessoas desconfiam. Acho que é muito importante pedir ao político que não fale somente em nome de um pragmatismo sem princípios, mas também em nome de suas convicções. Que expresse, responda qual vai ser sua conduta, e para isso não há mais que uma moral, a moral da convicção, aquela de quem fala a partir de uma convicção que deve conseguir que seja materializada em sua conduta e em seus atos.
Hamilton dos Santos: Aliás, o senhor escreveu esse artigo se referindo aos cínicos da política, mas o senhor não dá nome aos bois, digamos assim. Na sua opinião...
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] Olhe, posso citar um exemplo extraordinário de um político de responsabilidade, que foi capaz de mentir, mas apesar disso, por uma causa que poderíamos dizer que justificava a mentira. É o caso de De Gaulle. Eu fui jornalista na França na época de De Gaulle. De Gaulle subiu ao poder mentindo, dizendo que ia defender a Argélia francesa, que não haveria a independência da Argélia e, por isso, o setor mais radical e de direita da França o apoiou. E, em seguida, de uma maneira muito hábil, ele foi levando a França a aceitar a independência. Mas esse é um caso em que se pode dizer que a moral da responsabilidade justifica a mentira. Mas, para um caso positivo, temos em nossos países milhões e milhões de casos de pessoas que mentiram para chegar ao poder, e não por alguma causa superior, mas apenas pelo motivo mais egoísta, pessoal, e foi isso que destruiu tantas vezes a possibilidade da democracia e da modernidade na América Latina. Por isso, acho muito importante que a política tenha um sentido moral, um sentido ético, se quisermos realmente superar nosso atraso, nosso subdesenvolvimento.
Ricardo Setti: Eu queria voltar à literatura. Acho que é inevitável, em se tratando de Mario Vargas Llosa, a gente fala de política, fala do político que foi, do ensaísta que é, do escritor de ficção que é. Então, eu queria lhe perguntar: agora há pouco você falava sobre o romance A guerra do fim do mundo, e eu queria saber como você define esse seu conceito de que o romance para você é uma forma de organizar o caos?
Mario Vargas Llosa: Creio que a realidade é um caos. A realidade é essa multidão infinita de planos, de perspectivas, que está constantemente se transformando pela ação recíproca de todos esses fatores, algo que não pode ser totalmente organizado por nenhum esquema de conhecimento. Acho que uma das razões pelas quais um romance ou o gênero romanesco tem tanto sucesso nos períodos de confusão e de anarquia nas sociedades é porque o romance proporciona uma ordem fictícia, artificial, criada, mas que proporciona uma segurança quando percebemos o mundo como caos, como confusão, como desordem. E uma das coisas que muito me fascina no romance são justamente essas ordens artificiais que ele cria. Creio que são sempre artificiais, fictícias, mas se são persuasivas para nós, proporcionam-nos uma porta de entrada a uma possível ordenação da realidade, a partir da obsessão, da loucura, da imaginação de um criador. Mas, muitas vezes, se essa visão é tão persuasiva, que penetra profundamente em uma sociedade e perdura, acaba se convertendo em uma verdade e a vida vai se organizando como se tivesse sido fantasiada por um grande criador. Uma realidade pode se tornar faulkneriana, como em uma época se tornou hugoana ou balzaquiana. Uma das características do romance que mais me fascinam é essa ordem artificial, que de algum maneira é adotada por uma realidade.
Ricardo Setti: Mas isso quereria dizer, digamos, que quanto maior é o caos em que o escritor se vê envolvido na vida real, quanto maior for o caos, melhores são as condições para ele produzir uma obra? Mesmo no seu caso?
Mario Vargas Llosa: Não sei se no plano individual é possível dizer isso, mas creio que há uma tendência para as sociedades estáveis, as sociedades organizadas a partir das quais uma comunidade sente que compreende o mundo, que o mundo está em perfeita sintonia com o que é a vida das pessoas: [essas sociedades] não costumam produzir grandes romances. Os grandes romances costumam aparecer em sociedades que estão profundamente conturbadas, onde há uma sensação de insegurança total diante do chão em que nos movemos. Foi assim que surgiu [o romance] Guerra e paz [de Leon Tolstói (1828-1910)], foi assim que surgiu [o romance] Dom Quixote [de Miguel de Cervantes (1547-1616)], assim que surgiu um [Charles] Dickens [1812-1870 - autor de Oliver Twist e Copperfield], um [Herman] Melville [1819-1891 - autor de Moby Dick] ou a literatura latino-americana moderna que surge na convulsão na desordem, na anarquia, e proporciona uma organização da vida que não corresponde à nossa história.
Fábio Lucas: Eu queria conversar um pouco sobre a sua atividade ensaística, que me parece da melhor qualidade. Eu sou um leitor fiel a todos os seus trabalhos nessa área, principalmente no ensaísmo literário, por exemplo, o prólogo feito ao [romance épico] Tirant lo blanc [publicado em 1490, foi escrito pelo valenciano Joanot Martorell e supostamente concluído por Martí Joan de Galba]. Eu também estimo imensamente aquela obra e também acho que ali o senhor põe um problema fundamental para a interpretação da novelística latino-americana, mais a de língua espanhola que a de língua portuguesa. É o problema do resíduo da novela de cavalaria [que tem origem medieval]. A novela de cavalaria, a seu ver, tem um certo encanto porque nela tudo é possível, tudo é possível. Esse lado de expansão do imaginário me seduz especialmente, porque a função do escritor é dar campo a sua imaginação. Eu vejo que o imaginário se povoou de tal forma [com] a literatura moderna latino-americana, de que o senhor faz parte, essa moderna, de que o senhor se orgulha, é justamente essa que propiciou atingir o maravilhoso. No Brasil, a meu ver, a atitude do romancista brasileiro é mais dentro da linha pragmática, é mais persuasiva desse aspecto, quer dizer, toma a realidade e torna a realidade um fator de crítica, um fator de análise social ou psicológica. Então queria pôr esse problema: se há uma certa diferença entre o conjunto da literatura brasileira e o conjunto da literatura dos países latino-americanos, embora ambos provenham de um iberismo mais ou menos semelhante. Essa é a primeira pergunta que eu tenho.
Mario Vargas Llosa: Creio que essa distinção seria muito artificial. É verdade que há diferenças, mas as diferenças não me parecem maiores que aquelas que existem entre a própria literatura hispano-americana. Se você comparar García Márquez com Rulfo, ou [Juan Carlos] Onetti [(1909-1994), escritor uruguaio] com Borges, há diferenças tão grandes quanto as que podem haver, digamos, entre Jorge Amado e [o escritor peruano] José María Arguedas [1911-1969]. Se você pensar, por exemplo, em um romance que eu acredito ser uma das obras-primas da literatura latino-americana, Grande sertão: veredas [de Guimarães Rosa], temos ali essa tradição que você mencionou, de um mundo onde o fantástico e a realidade objetiva se confundem, se misturam, se cruzam e entrecruzam, como em Cem anos de solidão, não é verdade? Um romance como Paradiso [1966], de [José] Lezama Lima [(1910-1976), escritor cubano], não está próxima de Guimarães Rosa? Está próxima desse mundo criado com uma densidade muito especial de linguagem, uma realidade que não pode ser chamada de científica nem de objetiva, mas que é também histórica.
Fábio Lucas: Eu acho que, no caso do Guimarães Rosa, acho que é uma intervenção maior na linguagem, quer dizer, o Guimarães Rosa desestruturou e reestruturou o potencial da linguagem em língua portuguesa...
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] É o caso de Lezama Lima, por exemplo; não acha que é mais ou menos equivalente? Também é uma reelaboração da linguagem, adensando-a de tal maneira que a linguagem explode em um mundo que é um mundo próprio, que é um mundo distinto, feito fundamentalmente da língua...
Fábio Lucas: E na seqüência desse êxito da novela ou da narrativa latino-americana, eu queria referir-me ao boom, o tal boom latino-americano.
Mario Vargas Llosa: Ao boom? Está morto e enterrado, não é? [risos]
Fábio Lucas: Sim, mas foi uma hora extrema em que os países, digamos, hegemônicos, tomaram conhecimento de uma narrativa que se fazia diferente da deles, e até melhor do que a deles. Esse é um momento estratégico e importante para a nossa história literária. Agora, curiosamente, uma vez eu ouvi uma palestra – o senhor também dá notícia disso – do Juan Rulfo, e ele dizia que durante aquele boom, faltava a grande personagem para ele da narrativa latino-americana, que era o João Guimarães Rosa. Mas eu acho que esse boom não envolveu a narrativa feita no Brasil. Houve alguma estratégia, digamos, mercadológica que fizesse com que não entrasse a literatura brasileira?
Mario Vargas Llosa: Os escritores que não estavam no boom diziam que esse era uma conspiração dos editores e de quatro escritores, mas não creio que tenha havido uma conspiração. Acho que ninguém planejou nada, que ele foi surgindo de uma maneira totalmente impensada. Além disso, nunca se soube exatamente quem estava no boom e quem não estava no boom. Alguns tinham uma lista de quatro, outros de oito, outros de dez [risos]. Eu tive uma polêmica com Ángel Rama [1926-1983], um crítico magnífico, uruguaio, que foi um dos grandes críticos dessa época, pois ele dizia que esse era um clube exclusivo que... Então me recordo do debate, mas quem está no boom? E não havia duas pessoas que estivessem de acordo ao mencionar os nomes. Uns falavam em 16, outros em oito. Vejam, eu mesmo não sei quem estava e quem não estava.
Mario Vargas Llosa: Mas Guimarães Rosa sempre foi considerado parte do boom. Recordo-me do primeiro livro de conjunto sobre o boom. Foi um livro de um crítico argentino-norte-americano, Luis Harss, que o publicou primeiro em inglês, com o título de Into the mainstream, e depois o publicou em espanhol como Los nuestros. E ali estava Guimarães Rosa, e diga-se de passagem que a entrevista de Guimarães Rosa era uma das mais interessantes.
Heródoto Barbeiro: E nós voltamos aqui com o programa Roda Viva. Hoje nós estamos entrevistando o escritor Mario Vargas Llosa. Vargas Llosa, recentemente você esteve com o presidente recém-eleito no Brasil, Fernando Henrique Cardoso, um homem que era de esquerda e hoje está aliado com as forças ditas conservadoras no nosso país. O que significa isso para um intelectual: sair da esquerda e se aliar com forças mais conservadoras? O que significa a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a América Latina?
Mario Vargas Llosa: Tenho muita esperança nessa eleição. Acho que Fernando Henrique Cardoso não somente é um intelectual de alto nível, mas além disso é um intelectual com experiência política. Ele fez uma carreira política paralelamente à sua vida intelectual, e acredito que sua evolução seja uma evolução para a modernidade, não creio que tenha se tornado um conservador. Acho que ele é uma pessoa que evoluiu para uma posição que está certamente entre a socialdemocracia e o liberalismo, que para mim é a opção da modernidade. Tenho a segurança de que com o apoio que recebeu nessas eleições, ele não vai permitir que as forças conservadoras sejam um obstáculo para as reformas de abertura, de modernização, de transformação das instituições, que tragam por fim o desenvolvimento que o Brasil poderia alcançar mais rapidamente que a maior parte dos países do mundo, devido aos extraordinários recursos com que conta. Além disso, vi nesses dias no Brasil uma esperança, um entusiasmo com o que ocorreu, que me parece muito justificado, porque acho que o Brasil deu um exemplo à América Latina. Uma crise política terrível que poderia desembocar em uma ditadura militar, e não desembocou em uma ditadura militar, mas creio que, com todos os traumas do caso, em um esforço das instituições democráticas. Acredito que Fernando Henrique Cardoso representa exatamente essa transição.
Heródoto Barbeiro: Pelos seus elogios, então, para o Brasil foi melhor a eleição de Fernando Henrique Cardoso do que a de Lula, se fosse esse...
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] Sem dúvida alguma. Acho que a eleição de Lula, que é certamente uma pessoa muito respeitável, teria significado um retrocesso. Tive a oportunidade de ouvir Lula falar na Universidade de Princeton. Eu estava ensinando lá, e ele compareceu em um congresso, e suas idéias me pareceram totalmente obsoletas, fora de época, com um critério que, embora possa ser chamado de populista, de nacionalismo econômico, se tivesse se transformado nessa eleição a política do Brasil, teria deixado o Brasil muito mais atrasado do que já está.
Claudinei Ferreira: Eu gostaria de voltar um pouco, já que estamos falando de Fernando Henrique, à relação entre literatura ou entre o livro, que é o caso também de Fernando Henrique, e a política. São duas perguntas rapidinhas. Durante a sua campanha, o senhor pensou, vislumbrando a vitória, no momento da vitória, pensou em parar de escrever? A política poderia ocupar o lugar da literatura? Essa é uma pergunta, e a segunda é sobre o poder da sua literatura no Peru. Pensou sobre o poder da sua literatura no Peru? Durante a campanha, frases de seus livros apareciam na televisão ou o senhor gostaria que o povo esquecesse o que o senhor escreveu?
Mario Vargas Llosa: A respeito da primeira, eu tinha a certeza de que, se tivesse sido eleito, não poderia escrever literatura durante os anos de governo. Creio que nesses anos eu só teria podido escrever discursos políticos, que é um gênero menor, como disse...
Claudinei Ferreira: [interrompendo] Não é possível compatibilizar...?
Mario Vargas Llosa: Não é o que acontece, talvez, em sociedades muito mais estáveis, menos traumatizadas, sem os problemas monumentais de uma sociedade como o Peru, que exigem uma dedicação, digamos, exclusiva. A respeito da segunda pergunta, mesmo que eu tivesse querido me esquecer de meus livros, coisa que não quis, não me teriam permitido. Um dos instrumentos...
Claudinei Ferreira: [interrompendo] Não permitiram que você...?
Mario Vargas Llosa: Não, não. Um dos instrumentos do governo de Alan Garcia [presidente do Peru entre 1985-1990, foi reeleito em 2006] contra mim durante a campanha foi ler pela televisão um livro que se chama Elogio da madrasta [1988], que acusavam de pornográfico, de obsceno, de imoral, de criminoso, e então o leram durante dez dias seguidos, na hora de maior audiência, com uma mesa redonda em seguida composta por especialistas que demonstravam que eu era um pervertido e que um pervertido não podia ser presidente do Peru.
[...]: Vendeu mais esse livro?
Claudinei Ferreira: Seus livros venderam mais ou menos durante o período da campanha?
Mario Vargas Llosa: Espero que o Elogio da madrasta, graças a essa publicidade gratuita, tenha vendido mais. Infelizmente, o mais provável é que em edição pirata [risos].
Hamilton dos Santos: Parece que esta é a primeira vez que o senhor está em São Paulo...
Mario Vargas Llosa: Primeira vez.
Hamilton dos Santos:...você conhecia bastante o Brasil, Rio [de Janeiro]; eu me lembro de uma conversa sua com Manuel Puig, eu li numa entrevista, ele falando do Rio, e o senhor parecia que tinha uma ansiedade bastante grande em conhecer São Paulo. O senhor esteve aqui, teve a oportunidade de ir a um espetáculo de música popular brasileira, depois foi ao futebol. Eu queria saber o que o senhor achou da cidade, se valeu a pena toda essa expectativa. E quais os pontos positivos e negativos que o senhor viu na cidade, assim, com maior emergência e urgência?
Mario Vargas Llosa: Estive muitos poucos dias aqui para poder dar esse tipo de opinião, mas gosto muito das cidades grandes. Quanto maiores elas são, mais eu gosto. Fico encantado com esse mundo gigantesco onde nos perdemos, onde podemos nos desvanecer: Nova York, São Paulo, Londres, Paris. Para mim, realmente, esse é um ideal de cidade. E São Paulo é uma cidade enormemente atrativa por seu poder, por sua vida cultural, que estou comprovando ser muito rica. Mas como me atreveria a dizer algo que não fosse banal ou convencional estando apenas há três dias, quatro dias em São Paulo?
Hamilton dos Santos: Mas não houve algo assim que tenha chamado a atenção?
Mario Vargas Llosa: Vi esse show de [Gilberto] Gil, de [Caetano] Veloso, que me encantou e fez com que eu acabasse de comprovar algo que sempre me fascinou no Brasil: como a cultura popular e a cultura erudita não têm fronteiras aqui. No Brasil elas se confundem, se enredando e se desenredando.
Hamilton dos Santos: [interrompendo] A instalação do pós-modernismo é aqui...
Mario Vargas Llosa: Tomara que o Brasil nunca perca isso. É uma virtude realmente extraordinária para uma sociedade. Em outras sociedades, pelo menos naquela em que vivo agora, que é a Inglaterra, um país que eu admiro muito, mas ali existe uma fronteira intransponível entre a cultura erudita e a cultura popular. E creio que na maior parte dos países há essa divisão. No Brasil, não. No Brasil há uma impregnação mútua e acho que isso proporciona uma grande vitalidade à vida cultural brasileira.
Matinas Suzuki: Eu gostaria de fazer uma pergunta mais de âmbito internacional e de âmbito geral, passando por coisas que o senhor já disse aqui. Eu acho que uma das grandes questões hoje do mundo é que nós temos uma economia que se internacionalizou, o mercado financeiro que age globalmente em uma velocidade extraordinária, através de satélites, redes de comunicação, e ao mesmo tempo nós temos o desenvolvimento de novas redescobertas e a volta a etnias, a volta a uma divisão geopolítica que a gente achava que seria superada. Ou seja, nós temos hoje no mundo três vezes mais países do que nós tínhamos no começo do século. Então, me parece que o mundo, por um lado, gira numa direção, da internacionalização, da globalização da economia e, por outro, gira justamente ao contrário, de recuperação de identidades, de recuperação de etnias, nova divisão política de países, essa coisa toda. Como o senhor pensa isso?
Mario Vargas Llosa: Acho que essa é a grande confrontação do século XXI entre sociedade aberta e sociedade fechada, com o desaparecimento, em termos práticos, do comunismo. Mas há outra confrontação que está em andamento e pode chegar a ser tão dura e tão violenta quanto a anterior, que é a internacionalização, essa tendência que creio ser muito forte, sobretudo no setor econômico, para a constituição de mercados mundiais para uma integração mundial e entre o espírito da tribo, para o retorno da tribo, o reforço do movimento nacionalista, a criação de resistências muito fortes à internacionalização, com argumentos diferentes, desde a defesa da identidade cultural, da soberania, da necessidade de criar mercados protegidos, até à coisa religiosa, à coisa racial, que hoje em dia é uma discussão que se faz abertamente. Por exemplo: na ex-Iugoslávia, a limpeza étnica é reivindicada abertamente pelos nacionalistas, e em muitos países europeus há uma espécie de pavor de serem invadidos por muçulmanos, por habitantes da África do Norte. Acho que esse é o grande desafio do século XXI e que é aí que vai se lançar o futuro da cultura democrática e do progresso da civilização. Creio que é a batalha que já iniciamos.
Heródoto Barbeiro: Vargas Llosa, nessa questão da globalização, só para não perder o gancho, em uma dessas passagens da nossa pesquisa, eu vi aqui que você defende...
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] Por favor, eu poderia acrescentar algo mais? Há uma idéia que eu gostaria [de expor]. A internacionalização não significa o desaparecimento das culturas locais ou regionais, pelo contrário, significa sim o desaparecimento dos nacionalismos, mas os nacionalismos não se podem ser identificados com as culturas locais, salvo em casos muito excepcionais. A verdade é que as nações são uns artifícios criados sobre uma homogeneização violenta que destruiu ou sufocou as culturas regionais. A internacionalização deveria permitir que as culturas autênticas tivessem um espaço para poder se desenvolver dentro desse contexto de tolerância, de multiculturalismo que a internacionalização...
Heródoto Barbeiro: [interrompendo] Nessa linha da internacionalização, há um tema também internacional, que eu estava dizendo, estava na sua pesquisa: é a questão das drogas. Você defende a descriminalização das drogas?
Mario Vargas Llosa: Sim.
Heródoto Barbeiro: Mas isso num processo mundial? Quer dizer, começando do Peru, inclusive, que é um país produtor de drogas?
Mario Vargas Llosa: Veja, eu custei muito para chegar a essa conclusão. Isso aconteceu na campanha eleitoral. Eu estava convencido de que o nosso programa podia enfrentar todos os problemas do Peru com respostas adequadas, salvo esse. O problema da droga é um problema que não é peruano, é um problema cujo controle escapa totalmente ao que é uma política nacional, como ocorre em todos os países produtores. A razão que me levou a defender a abolição das penalidades é que os esforços para reprimir, a inversão que isso significa é astronômica, são bilhões e bilhões de dólares que os países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos gastam tratando da repressão. Não tiveram uma vitória sequer. O consumo cresce, cresce a produção e, sobretudo, cresce a criminalidade, que pode ser fatal para o futuro da democracia. Há países como o meu, como Colômbia, onde o poder do narcotráfico é tal, que consegue corromper juízes, autoridades políticas, militares, jornalistas, ou seja, é uma hidra que vai criando uma espécie de estado paralelo e economicamente mais poderoso que o estado real. Creio que a abolição das penalidades, se for feita através de um acordo de países consumidores e produtores, vai eliminar pelo menos o aspecto mais violento, que é o da criminalidade. E se, ao mesmo tempo, se investigar o que atualmente se investe em repressão, em reabilitação, em campanhas de educação e de publicidade para combater a droga, pode-se ter muito mais êxito, como ocorreu por exemplo com o tabaco, que é muito interessante. A campanha contra o tabaco deu resultados muito positivos, sem necessidade de repressão, sem necessidade de perseguição, e o consumo do tabaco está diminuindo consideravelmente. É uma decisão que não é fácil, e creio que tem de ser coordenada entre os países consumidores e produtores.
Claudinei Ferreira: Se o senhor fosse o presidente hoje do Peru, qual seria o papel das Forças Armadas peruanas no combate ao tráfico de drogas?
Mario Vargas Llosa: Eu não confiaria às Forças Armadas o trabalho do tipo policial. No Peru se fez isso, como se fez também na Colômbia e na Bolívia: confiar isso às Forças Armadas. E qual foi o resultado? Não houve vitórias, mas corrupção. A corrupção foi introduzida nas Forças Armadas. Os oficiais são seduzidos por uma indústria, que é uma indústria muito poderosa economicamente e pode pagar salários mais elevados que o estado. Introduzir a corrupção nas Forças Armadas é perigosíssimo para o futuro da democracia. Acho que o exército tem uma função específica que não deve ser confundida com aquela da polícia, com aquela dos organismos preparados para esse tipo de luta.
Heródoto Barbeiro: Vargas Llosa, o senhor acabou de fazer uma crítica à participação do exército brasileiro no combate ao narcotráfico no Rio de Janeiro.
Mario Vargas Llosa: Eu me permiti dizer que discordo, que creio ser um erro. Tomara que esteja equivocado, tomara que o exército brasileiro saia imaculado, mas acho muito perigoso para uma instituição que não está treinada, e o exército não recebe treinamento para esse tipo de combate, que é um combate muito diferente do combate clássico, do combate de uma confrontação bélica tradicional. Esse é um combate fundamentalmente policial, cultural, político e econômico. Não é um combate militar.
Jorge Schwartz: Nós estamos falando aqui da questão da tolerância, e você comparou a droga com o tabaco e chegou a afirmar que a cultura não é nenhuma garantia contra a intolerância. Você dá o exemplo, inclusive, da Alemanha, que provocou o nazismo, campos de concentração. Então, o que eu queria perguntar a você é: qual é a garantia contra a intolerância? E qual você acha que é o papel [dos escritores], como escritor latino-americano, nesse sentido?
Mario Vargas Llosa: Creio que a luta contra a intolerância é uma luta permanente, em que são obtidas sempre vitórias parciais, nunca definitivas. O caso da Alemanha não é o único, há casos de países muito civilizados e muito cultos onde, de repente, vemos renascer o racismo. Na França, atualmente. Há um sentimento que certamente é minoritário, mas é um sentimento que lançou raízes devido aos problemas, à presença de imigrantes de outras línguas, de outras religiões. Creio que é uma batalha permanente e creio que é uma batalha que se faz fundamentalmente com as idéias e com a educação. Aí, sim, creio que a cultura, a literatura, deveriam desempenhar um papel fundamental. Acho que se há alguém que está por sua própria vocação, pelo exercício de sua vocação, em condições de compreender a aberração fundamental, a estupidez essencial que significa o racismo, por exemplo, é um escritor, é alguém que se movimenta no mundo das idéias, um mundo que não tem fronteiras, um mundo em que a idéia de raça não desempenha nenhum papel importante, alguém que realmente, por vocação, tenda à universalidade para o combate ao preconceito.
Jorge Schwartz: Mas você acha que a literatura tem condição de modificar o social pelo que você está dizendo?
Mario Vargas Llosa: De uma maneira muito indireta, creio que a literatura não é gratuita, que um grande livro deixa uma marca na vida das pessoas, mas não acho que seja uma conseqüência que possa ser planejada, que não haja uma relação de causa e efeito imediata e que não seja visível. Tenho absoluta certeza de que, por exemplo, livros como Madame Bovary [escrito por Gustave Flaubert ou como Os sertões mudaram a minha vida, e que graças a livros como esses sou diferente do que era e tenho certeza que, em algum sentido, sou melhor do que era. Mas isso não pode ser demonstrado. Não há uma comprovação científica sobre os efeitos da arte e da literatura na conduta.
Matias Suzuki: Sobre esse aspecto, eu gostaria de perguntar o seguinte: nos ano 60 e nos ano 70, todos os escritores latino-americanos estavam no mesmo front, ou seja, havia os regimes militares, que praticamente colocaram todos os grandes escritores latino-americanos do mesmo lado. Hoje em dia, esse campo está cindido, ou seja, os escritores latino-americanos ou estão de um lado ou estão do outro. Isso enfraqueceu ou enriqueceu a nossa literatura? Ou vai enfraquecer ou vai enriquecer a literatura?
Mario Vargas Llosa: Não creio absolutamente que a criação seja afetada por isso. O diálogo intelectual deveria enriquecer a diversidade, a polêmica, a confrontação de idéias. Deveria produzir um pensamento mais rico e mais diverso. Mas, no que se refere à criação, creio que a posição política de um escritor não pressupõe nada sobre seu talento, sobre sua criatividade. Pode-se ter muitas boas idéias e ser um desastre na hora de escrever um romance, ou ter idéias espantosas, ter idéias absolutamente estapafúrdias e, de repente, na hora de escrever, produzir uma obra de grande originalidade e de grande criatividade. Um homem como Céline [Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), escritor e médico francês], por exemplo. Céline tinha umas idéias monstruosas, não é? Ferdinand Céline era um racista, um anti-semita, esteve do lado dos nazistas, ou seja, uma era uma pessoa totalmente desprezível quando pensava em política, e no entanto escreveu alguns romances que são deslumbrantes, são obras-primas absolutas da literatura moderna. Creio que todos nós conhecemos pessoas magníficas com muitas idéias muito boas, sadias, generosas, que se põem a escrever e escrevem romances desastrosos.
Ricardo Setti: Sobre o papel do escritor, o Matinas fez essa pergunta e eu queria continuar nessa linha. O senhor foi um escritor que, em um determinado momento da sua biografia, se viu levado para a prática da política, depois se retirou e não pretende voltar, como já declarou. Então, hoje em dia, como o senhor vê o papel que o escritor pode ter na política? O que cabe ao escritor fazer, se é que cabe alguma coisa, em sua opinião?
Mario Vargas Llosa: Não creio que seja possível generalizar. Há escritores que podem ser políticos magníficos...
Ricardo Setti: [interrompendo] Não, no seu caso específico...
Mario Vargas Llosa: No meu caso, sou fundamentalmente um escritor. Uma das coisas que apreendi fazendo política é que eu não sou político, sou muito mau político, não tenho atitude, não tenho apetite, que creio ser muito importante, o que não significa que não vá continuar polemizando, escrevendo, participando do debate político. Isso para mim faz parte do meu trabalho de escritor, do meu trabalho intelectual. O máximo a que me atreveria a chegar a dizer é que um escritor tem uma obrigação moral, sobretudo em países com problemas tão terríveis como os países latino-americanos. Mas creio que, como escritor, o indivíduo tem a obrigação de escrever, de ser autêntico, de escrever com o maior rigor, com a maior autenticidade, obedecendo a seus próprios demônios interiores. Creio que essa é a obrigação de um escritor. A outra é uma obrigação de cidadão, que não é maior em um escritor que em um advogado ou um técnico.
Heródoto Barbeiro: O senhor está arrependido de ter participado da política, de ter perdido para um homem que tinha um percentual muito pequeno em relação ao senhor, o senhor Fujimori, e no entanto ele ganhou? A impressão que eu estou tendo é que, de certa forma, o senhor está magoado com o povo peruano por ter escolhido Fujimori e não o senhor.
Mario Vargas Llosa: Não, não, em absoluto, estou agradecido. Estou pessoalmente agradecido ao povo peruano. Eu senti um grande alívio quando perdi a eleição. Fiquei com muita pena pelo esforço desperdiçado e pelas pessoas que me acompanharam, mas no plano pessoal senti uma imensa libertação. Você sabe, voltar aos meus livros, voltar a ler – eu não tinha tempo para ler –, voltar a escrever, voltar a me movimentar pelo mundo com toda liberdade. Isso eu realmente aprendi a valorizar quando não pude fazê-lo, quando estava nessa camisa-de-força, que é uma dedicação política...
Heródoto Barbeiro: Mas como se perde para um candidato que tem tão pouca porcentagem eleitoral? O senhor era o franco favorito; aqui no Brasil nós acompanhávamos e achávamos que o senhor seria eleito, e de repente houve uma revolução. O que aconteceu?
Mario Vargas Llosa: Bem, para explicar isso, escrevi esse livro, o Peixe na água. Creio que, para explicar o que ocorreu, é preciso se situar no contexto da situação peruana nesses anos terríveis de um país com uma hiperinflação, 2.500.000% de inflação provocada em nós pelas políticas populistas do senhor Alan Garcia, 2.500.000% de inflação em cinco anos. Isso é uma destruição, uma desintegração de uma sociedade, o terrorismo do Sendero Luminoso, centenas de mortos, destruição de propriedades, de pontes, de estradas, empregos perdidos. Havia no país uma desorientação, uma confusão, uma angústia, e isso se traduziu em algumas condutas políticas muito surpreendentes.
Heródoto Barbeiro: É verdade que o senhor sofreu um atentado do Sendero Luminoso?
Mario Vargas Llosa: Houve até duas tentativas. Mas eu tinha proteção, estava protegido. Muitos de meus colaboradores não estavam protegidos, e mais de cem deles foram assassinados. Entre abril e junho, somente nos dois últimos meses de campanha, mais de cem colaboradores meus, gente humilde, gente que não podia ter proteção, sobretudo gente de aldeias, camponeses, foram assassinados da maneira mais cruel.
Heródoto Barbeiro: Pelo Sendero Luminoso?
Mario Vargas Llosa: Fundamentalmente pelo Sendero, mas alguns podem até ter sido assassinados pelo governo, que também praticava o terror, mas fundamentalmente foram assassinados pelo Sendero.
Jorge Schwartz: Depois que a gente lê o Peixe na água, dá a impressão de que você virou escritor como um ato parricida, como uma vingança paterna, e parece que a indignação é um dos seus motores propulsores mais estimulantes, tanto para criação literária quanto para a militância política...
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] Veja, essa observação põe o dedo na ferida. Creio que a meu pai, com quem tive uma relação muito ruim, como conto no livro, devo duas coisas, tenho que lhe agradecer por duas coisas: primeiro, o ódio ao autoritarismo. Meu pai foi uma pessoa tão autoritária, de quem tive tanto medo quando menino, que creio ter feito nascer em mim essa espécie de resistência visceral contra toda forma de ditadura, de autoritarismo. Por outro lado, creio que devo a ele ser escritor, porque ele combateu muito em mim a vocação literária, porque pensava que a vocação literária transformava o homem em um fracassado. Enfim, creio que uma maneira de resistir à autoridade de meu pai, com certeza indireta e inconscientemente, foi afirmar essa vocação, porque eu inconscientemente sabia que talvez onde mais podia doer a meu pai era que seu filho fosse escritor, algo que ele considerava uma excentricidade, algo anormal. Ou seja, curiosamente devo a ele, com quem me dei tão mal, as duas coisas de que mais me orgulho, minha vocação literária e meu amor pela liberdade.
Ricardo Setti: O seu pai chegou a ter prazer, a ter satisfação com o seu sucesso como escritor?
Mario Vargas Llosa: Nunca o soube. Para mim foi sempre um enigma, uma curiosidade. Meu pai teve que emigrar para os Estados Unidos, enfrentou uma situação econômica muito ruim em determinado momento e foi um dos emigrantes latino-americanos nos Estados Unidos, onde fiquei sabendo depois que teve uma vida dificílima. E ali, ele admirava muito os Estados Unidos, admirava o self-made man, o homem que faz a si mesmo trabalhando, que é o que ele queria que eu tivesse sido. Creio que para ele foi um enorme surpresa descobrir que escrevendo, algo que para ele parecia tão anormal, de repente eu ficasse conhecido. Minha mãe me contou que um dia ele viu em um jornal de Los Angeles, onde morava, uma foto minha, uma foto no Los Angeles Times, e isso foi para ele realmente uma enorme surpresa, mas a mim ele nunca disse isso. Jamais falamos sobre meus livros, salvo no final, em que tivemos um último rompimento devido [ao livro] Tia Júlia e o escrevinhador, onde o personagem fala de seu pai, o que o deixou muito indignado, e foi um último rompimento porque depois só fui vê-lo morto.
Heloísa Jahn: Eu queria falar de uma coisa de que nós não falamos, que é uma parte muito interessante do livro em que o senhor fala sobre o desenvolvimento das religiões evangélicas no Peru. No Brasil também existe isso, é uma coisa bastante geral. E eu li uma entrevista sua, uma afirmação de que em uma sociedade são raras as pessoas que podem passar a religião para a cultura. Eu pergunto: será que isso significa dizer que, em uma sociedade, são raras as pessoas que podem ser racionais? Será que isso não é uma visão pessimista da possibilidade de avanço social, se só alguns podem ser racionais, talvez só alguns possam então exercer o poder?
Mario Vargas Llosa: Não é pessimismo. Acho que é a realidade. Creio que muito poucas pessoas podem substituir a religião pela cultura, pelas idéias, por convicções, diríamos, laicas e viver com uma certa serenidade e ter uma atitude moral. Creio que essa é uma minoria e muito insignificante. Creio que a maioria dos seres humanos, de países cultos e de países incultos, somente através da religião, de uma fé conseguem essa serenidade mínima e têm, além disso, um sentido moral. Se perdem esse sustento, esse apoio, entram em uma espécie de confusão, de insegurança, muitas vezes preenchidas por pseudo-religiões, pelos cultos, pelas drogas. Eu não sou um crente, mas acho que a religião pode cumprir um papel muito importante, justamente proporcionando espiritualidade, proporcionando sentido moral a uma sociedade, com a condição de que haja uma diferença muito clara entre a religião e o Estado, e que a religião não se identifique com o Estado, porque senão vem irremediavelmente a repressão, a censura, a perda da liberdade.
Fábio Lucas: Voltando ao problema da política, quando o senhor se pronuncia sobre esses assuntos, o faz com muita argúcia, muita inteligência e agudeza, mas essa distinção entre a preferência entre Fernando Henrique Cardoso e Lula ficou para mim um pouco extremada, porque aqui foi usada algumas vezes a idéia de que nós estávamos diante de um intelectual e uma pessoa, digamos, “inculta”, e assim muitas vezes deu-se a impressão de que estava um debate entre Sartre e um encanador, como foi escrito na impressa brasileira...
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] Não, não quis dizer... não foi essa a minha intenção.
Fábio Lucas: O senhor não acha essa distinção um pouco messiânica, ao eleger um candidato a presidente da República como uma pessoa que vai nortear todo o rumo de uma economia e de uma situação social? Quer dizer, não se deveria analisar antes o que está detrás de uma candidatura e o que está detrás de outra candidatura?
Mario Vargas Llosa: Sem dúvida nenhuma. Veja, eu não fiz essa distinção que você assinalou entre Lula e Fernando Henrique Cardoso. Minhas críticas a Lula não são ao fato de ser um operário, são as idéias que ele tem que eu considero equivocadas, antiquadas, idéias que são um obstáculo à modernidade, idéias que eu o vi enunciar na Universidade de Princeton, ou seja, ninguém me contou. Creio que Fernando Henrique Cardoso demonstrou na prática que suas idéias podem se transformar em políticas efetivas. Há um plano de estabilização que tem obtido sucesso. Ele conseguiu, como ministro da Fazenda, algo que parecia muito difícil no Brasil, que era deter a inflação, uma enfermidade que parecia congênita à sociedade brasileira. Além disso, há uma evolução em Fernando Henrique Cardoso, que para mim é a evolução para a modernidade, para algumas posições que podem estar entre a socialdemocracia e o liberalismo, que creio ser onde ele se situa e que creio que são elas que poderão abrir ao Brasil as portas do desenvolvimento. São suas idéias que estou justamente mencionando. Ou seja, há sempre uma máquina por trás de um presidente, mas não nos esqueçamos que em nossos países a política é antropomorfa, o ideal de governos de cujos nomes os cidadãos não se lembram é muito remoto para... É para mim o governo ideal, mas na minha opinião falta muito para que cheguemos a essa descentralização da política. Mas ela é antropomorfa, e precisamos de líderes em quem acreditar, em quem depositar a confiança e que nos convençam de que suas políticas são boas.
Fábio Lucas: Ainda na linha da modernização, eu vi um de seus pronunciamentos em favor da velha estrutura do romance. Hoje, a crítica aponta para uma espécie de crise da representação e, portanto, essa crise é a destruição do que chamam de falocentrismo. Então, na sua ficção, em que nós encontramos simultaneamente um grande respeito pela desordem e um grande apreço pela ordem, nós queremos saber qual é a sua posição em relação a isso.
Mario Vargas Llosa: É muito interessante essa observação. Vivo a desordem. Quando me examino, o que vejo em mim é a desordem e um grande fascínio pela anarquia, pelo inesperado. Mas justamente uma das coisas formidáveis que a literatura tem para mim é que ela permite me organizar dentro desse caos que é a vida, a experiência, os desejos da imaginação, a realidade. Eu sei que a ordem na literatura é uma ordem fictícia, mas estou quase me convencendo, praticando a literatura, de que todas as ordens são fictícias, a da política, a da cultura, a do sexo. Há algumas construções, que são construções humanas, que precisamos para não nos dissolvermos no caos. Creio que uma das boas coisas da literatura é o fato de ela permitir que um homem como eu possa conciliar ao mesmo tempo a aventura e a ordem.
Heloísa Jahn: Eu gostaria de saber então quem é o peixe na água.
Mario Vargas Llosa: Quem é o peixe que está na água? Evidentemente, sou eu [risos]. O livro é uma tentativa de descrever uma história pessoal de um escritor que teve uma experiência política, um escritor em quem a política formou uma parte importante da sua experiência, que também alimentou uma época de sua literatura. É disso que trato no livro.
Heloísa Jahn: Porque a sensação, lendo o livro, depois do malogro da campanha, é de que o escritor, de volta ao ato de escrever, pode dizer: agora eu sou um peixe na água.
Mario Vargas Llosa: Sim, realmente.
Jorge Schwartz: Vargas Llosa, eu tenho uma pergunta que faz muitos anos que estou me questionando. Você pertence a essa extraordinária geração que foi o boom, e seus colegas, quase que sem exceção, praticaram o conto, como gênero, que foi totalmente renovado por Borges. Você praticou quase todos os gêneros, e aqui todo mundo perguntou coisas que você fez. Só a Heloísa, no início, perguntou sobre o que você não fez, que é a tradução. Então, eu também quero perguntar uma coisa que você fez muito pouco, que é a prática do conto, que foi tão fértil nessa nova literatura latino-americana.
Mario Vargas Llosa: É verdade. Meu primeiro livro é um livro de contos, e depois eu tive várias vezes a tentação do conto, mas logo a exuberância, que é um dos meus vícios capitais, fez com que esses contos se convertessem em romances. Foi o caso de Pantaleão e as visitadoras, que eu concebi como um conto, uma história pequena, uma novela. No entanto, cresceu em minhas mãos e se transformou em um romance. Isso ocorreu também com Tia Júlia e o escrevinhador, muitas das histórias que escrevi neste livro eram projetos de contos, que terminaram integrados no romance.
Jorge Schwartz: Eu me perguntei se esse projeto grandioso, literário, também não tinha a ver com o projeto político, quer dizer, você foi direto para a presidência da nação [risos].
Mario Vargas Llosa: O romance é o príncipe dos gêneros. De certa forma, sim, estamos de acordo. O conto tem uma perfeição que o aproxima mais à poesia do que do romance; [o conto] tem uma esfericidade. O conto concluído é uma coisa tão perfeita, algo nunca atingido por um romance; o romance é um gênero sempre imperfeito.
Fábio Lucas: Eu tenho uma questão ainda na linha dos gêneros: o senhor também mostra que o teatro latino-americano não tem grande importância. Por acaso, o senhor conhece o teatro do Nelson Rodrigues?
Mario Vargas Llosa: Não, infelizmente não o conheço.
Fábio Lucas: Porque, para nós, ele é um grande inovador do teatro brasileiro.
Claudinei Ferreira: O [Vargas Llosa] escritor já disse que seu livro preferido é Guerra do fim do mundo...
Mario Vargas Llosa: [interrompendo] Veja, isso só se tenho de escolher um [entre os meus livros], mas não há por que eleger apenas um.
Claudinei Ferreira: Eu gostaria de fazer duas perguntas rapidinho. Primeiro, se a derrota política presidencial foi uma experiência global mais literária do que seria a vitória. E a outra: para você, qual é a grande tragédia social hoje, sobre a qual você se debruçaria, pesquisaria e escreveria?
Mario Vargas Llosa: Veja, não foi uma derrota literária. Essa experiência não foi literária, absolutamente, foi uma experiência fundamentalmente política. A literatura é muito inofensiva, ainda que esteja cheia de cadáveres [em suas páginas]; a política não, a política que estávamos fazendo no Peru nesses anos era uma política de vida ou morte, era uma política em que realmente se arriscava a vida a cada minuto, e essa era a situação de 25 milhões de peruanos. Então, isso não era um jogo da imaginação, mas um tipo de experiência...
Claudinei Ferreira: [interrompendo] Nem depois, com a própria derrota, como experiência, como reflexão...?
Mario Vargas Llosa: Claro que, na memória, tudo adquire uma certa qualidade literária, mas isso...
Hamilton dos Santos: [interrompendo] Se bem que, às vezes, o livro Peixe na água deixa transparecer uma experiência mais ou menos fantasiosa. Por exemplo, em dois momentos isso é muito característico, quando o senhor toma aquelas aulas de política durante duas horas por dia, você faz aquele acerto de dividir a receita do país per capitamente, e no outro momento, quando o senhor encontra com Fujimori, o copo de uísque e tal. Às vezes é um pouco literário também.
Mario Vargas Llosa: Certamente, e isso já é uma reflexão a posteriori...
Claudinei Ferreira: O plano de governo não era literário?
Mario Vargas Llosa: Não era nada literário, em absoluto, era muito técnico.
Claudinei Ferreira: A segunda parte da questão: hoje, sobre que tragédia social, assim como Canudos, você se debruçaria, você escreveria, pesquisaria, passaria quatro anos, como foi com Guerra do fim do mundo?
Mario Vargas Llosa: Infelizmente não faltam tragédias, basta mover a cabeça e aparecem por todas partes, na América Latina, na áfrica, na Ásia, na Europa. Mas os temas literários, para mim, se impõem; não os escolho racionalmente. Acontecem-me certas coisas que, por uma razão muito misteriosa, fornecem uma experiência que se torna muito estimulante para se escrever. No caso de Guerra do fim do mundo, foi ler Os sertões. Eu leio livros maravilhosos, entretanto, nenhum me empurrou dessa maneira para tratar de escrever uma história.
Matias Suzuki: O senhor teve uma proposta, feita pelo [jornal] The New York Times, para voltar ao Brasil para escrever, para vir a Belém...
Mario Vargas Llosa: É verdade, foi uma proposta que recebi há alguns meses, para acompanhar uma expedição científica dirigida por um biólogo norte-americano que está há muito tempo em Belém, que acredita ter identificado, na realidade, um personagem mitológico de várias comunidades amazônicas. É um personagem aparentemente muito popular em uma região amazônica, que se acreditava ser mítico, e que esse biólogo diz que, na realidade, existe e que é um mostro, mas muito benigno. É vegetariano, e há uma expedição que está em sua busca. Mas meu tempo não me permitiu, porque a expedição está planejada para seis meses de duração. Mas seria muito divertido acompanhar uma expedição em busca do mito, da fantasia.
Hamilton dos Santos: Sobre a escritora mexicana Laura Esquivel, que você conhece, eu queria saber como o senhor analisa o sucesso do livro dela [Como água para chocolate, publicado em 1989], que é um livro extremamente convencional, com leves pitadas de realismo fantástico e que encantou o mundo?
Mario Vargas Llosa: Mas é divertido, é convencional, mas é divertido. Há uma idéia, que creio que é genial, que é converter a cozinha e as receitas de cozinha, a comida popular no eixo de uma história. É uma idéia muito original, muito rica, e acho que é uma idéia com a qual qualquer leitor pode facilmente identificar-se. O livro não é de uma grande complexidade, mas é muito divertido. Há nesse livro algo que a literatura não deveria perder, [a história] é divertida, é surpreendente, nos intriga...
Hamilton dos Santos: [interrompendo] É simples, sobretudo.
Mario Vargas Llosa: Muito simples, muito facilmente compreensível para qualquer leitor. Não me surpreende que esse livro tenha feito tanto sucesso, porque acho que a cozinha como eixo de uma história é algo com que qualquer pessoa pode identificar-se.
Hamilton dos Santos: Você não acha que a literatura latino-americana tem um pouco de vergonha de fazer essa literatura de entretenimento, essa literatura mais simples para diversão?
Mario Vargas Llosa: Acho que a literatura deveria ser isso; acho que ser divertida não é um impedimento para que seja rigorosa, para que seja profunda. Mas acho que é indispensável que uma literatura seja divertida, e nos anos 70, 80, tivemos uma [...] literatura que era muito chata, parecia profunda, mas era muito chata, era um experimento com as palavras, com os planos de linguagem, renunciava-se à história, renunciava-se à psicologia, aos personagens, e o resultado foi que a literatura pareceu ter se transformado em um ramo da lingüística. Pessoalmente, não me agrada a perspectiva de que a literatura seja um ramo da lingüística.
Heródoto Barbeiro: Vargas Llosa, em uma de suas passagens, você disse o seguinte: que você vem de um país andino e que os países andinos são tristes. Por que um país andino é triste, já que a impressão que a gente tem é de um povo bastante alegre? É o inconsciente coletivo das antigas civilizações pré-colombianas?
Mario Vargas Llosa: É muito claro, no Peru, quando você viaja da costa até os Andes, há uma mudança de humor claríssima. O peruano da costa, certamente pela influência africana, é muito expansivo, extrovertido, alegre; e o peruano da serra, certamente pela influência quíchua, é muito grave, é lacônico, é muito comedido na expressão do sentimento, exceto nas festas, onde há uma espécie de explosão, mas na vida cotidiana, na vida normal, é sumamente comedido. Essa é uma diferença muito profunda, e isso eu não sinto quando chego ao Brasil, por exemplo. Tenho a impressão de que o Brasil é uma explosão de alegria. No Peru, em certas regiões, mas talvez as regiões mais profundas do Peru, que é a região andina, é muito grave e séria.
Heródoto Barbeiro: Vargas Llosa, nós queremos agradecer a sua gentileza e a sua participação no programa Roda Viva. Muito obrigado aqui também pela presença de nossos convidados. Nós queremos agradecer a sua atenção, e o programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira às dez e meia da noite. Uma boa semana, até lá e obrigado.
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