Esta seção, comandada pelo nosso correspondente no velho oeste paulista, Vicentônio Regis do Nascimento Silva, publicará semanalmente um breve perfil de alguns escritores destacados, porém pouco badalados, da literatura brasileira. É sabido que a nossa mídia é seletiva, onde apenas alguns autores aparecem, muitas vezes, mais do que merecem. Assim, Tiro de Letra também adota o critério da seletividade, só que ao contrário da grande mídia: vamos dar publicidade àqueles escritores que realmente merecem e precisam ser conhecidos pelo público. Abordamos hoje mais um dos expoentes da literatura brasileira
JOSUÉ MONTELLO: SÍNTESE DO ROMANCE
Um escritor não se imortaliza pela atividade irrestrita ou pela produção maciça e cosmopolita, mas por algumas peculiaridades manifestadas no decorrer do ofício e consolidadas aos poucos, no exercício pleno da criação artística. A consolidação de estilo maduro – de trânsito fácil que vai do romance à memorialística, passando pelo jornalismo, pela crítica e pelo ensaio – faz de Josué Montello um paradigma para quem deseja um romance de fôlego.
Embora desconhecido do grande público, Montello integra o seleto grupo que, nas palavras do crítico literário Wilson Martins, possui qualidade, mas que ainda não foi lido e analisado adequadamente.
Elegemos Cais da sagração para esmiuçar um pouco do universo desse imortal da Academia Brasileira de Letras, considerado por muitos o ensaísta definitivo da obra de Machado de Assis, que faz do Maranhão o cenário de algumas de suas obras.
Cais de sagração se passa entre São Luis e – predominantemente – uma cidade litorânea de onde os personagens saem apenas por transportes marítimos. O miolo da narrativa se expande pela linearidade sulcada com grandes lapsos psicológicos de memória, esquecimento e redimensionamento do passado. Além disso, a linguagem serena, amadurecida e firme se quebra salutarmente por intervalos cômicos profundos.
Proprietário de um barco que se movimenta graças à ajuda do vento e aparentemente arredio às novidades mecânicas que poderiam proporcionar mais segurança, mais conforto e mais rapidez às viagens empreendidas, Mestre Severino encarna – numa mistura de sobriedade, de apegos a princípios e de autoritarismo pinçado pelo silêncio – o homem irredutível e machista. As conversas mais complicadas com a família ou com alguns amigos se exteriorizam por monólogos protagonizados pelo comandante do “Bonança” que, por muitos anos, se manteve atado ao trapiche.
O descaso em relação ao barco coincide com o período de prisão. Morando com Lourença, mulher sem grandes atrativos, simplória, acabrunhada e matuta, Mestre Severino adquire a liberdade da meretriz Vanju, que vive em São Luis. De volta da capital, informa a Lourença que se casará na semana seguinte. Lourença naturalmente se enche de felicidade, desconserta-se pela pressa do comandante, pensa em voz alta nos detalhes do vestido de noiva providenciado com uma amiga e, antes de se perder em devaneios, é alertada sobre a outra.
O aviso do enlace matrimonial parece conformar a companheira que, retirando seus pertences do quarto comum, muda para o cômodo contíguo. A aceitação do casamento, por parte de Lourença, e o deslumbramento de Mestre Severino pela meretriz Vanju simbolizam o quadro da condição feminina.
A verossimilhança e a universalidade da cena são rematadas por um discurso do narrador onisciente. Numa situação de beleza e repugnância, Mestre Severino atinge o clímax do machismo ao pensar que nenhum homem poderia se interessar por outra mulher depois de dormir com Vanju.
A vida monótona e sem glamour desencadearia a inquietação numa mulher, outrora festejada e adorada, que perdia os dias folheando revistas velhas e jogando conversa fora com Lourença, convertida em empregada doméstica.
O poder de sedução de Vanju desperta a cobiça dos transeuntes e os ciúmes doentios de Mestre Severino. Desconfiado de suas inclinações e das eventuais trocas de olhares com o promotor que chegara ao povoado, o comandante leva a esposa para uma praia afastada, afoga-a, assume o crime, se entrega à polícia, é processado e condenado e, mesmo na cadeia, passa os dias recomendando a Lourença que providencie uma lápide suntuosa para o túmulo da mulher e que cuide da filha dele.
Um momento de comicidade se dá quando, rememorando os tempos de cadeia, Mestre Severino é comunicado do falecimento do promotor. Quase enlouquecido, convence o carcereiro a abandonar temporariamente suas funções e a buscar o padre. O fracasso do carcereiro angustia Mestre Severino que se debate, mas vencido pelo cansaço, compartilha suas aflições com o clérigo no dia seguinte: a infidelidade de Vanju com o promotor se concretizaria no além.
A filha de Mestre Severino cresce, casa-se com um homem de mar e, antes de o filho se desenvolver, falece. Lourença criará o neto de Mestre Severino que, já fora da cadeia, debilitado pela idade e por problemas cardíacos, resiste aos medicamentos e à escolha religiosa do menino.
A vitória de Mestre Severino – machista autoritário – se concretiza na volta de São Luis: ao acordar depois de intensas dores no peito, testemunha o neto guiando o barco.
O problema da trama fica por conta da linguagem que, se por um lado comprova a capacidade no manuseio do léxico, por outro, enfrenta desatinos na fala de personagens, dando-lhes cultura impertinente.
Apenas pela maturidade da linguagem, pela denúncia social, pela caracterização completa da universalidade e da verossimilhança, Cais da Sagração deve ser lido o quanto antes. Uma obra-prima da Literatura contemporânea!
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Vicentônio Regis do Nascimento Silva é
Crítico Literário, Educador, Contista e Cronista. Recebeu diveros prêmios literários nas categorias crônicas e contos, entre eles os da Academia de Letras de São João da Boa Vista (São João da Boa Vista - SP) e doconcurso literário Felippe D'Oliveira (Santa Maria - RS); Participou de cinco antologias literárias; colabora em jornais e revistas paulistas, fluminenses e brasilienses cujos textos, em grande parte, estão reunidos no seu blog: www.vicentonio/blogspot.com (vicrenos@yahoo.com.br)
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