"Nunca tive, por exemplo, preocupações com psicologia e sempre detestei o chamado romance psicológico do séc. XIX, em que o autor é onisciente. Estou mais interessado no grupo social e não na psicologia do personagem. Nos grupos sociais gera-se uma dinâmica e meu trabalho, basicamente, quer ser uma amostragem disso. O romance é sobre processos de comunicação que se estabelecem ou não dentro de um determinado grupo: pode ser o gurpo do trabalho, da igreja, da praia, do clube etc. Quando voltei para o Brasil, percebi isso, todos querendo se explicar, todos querendo falar. Num nível muito primário, sobretudo quem não tem problema de pagar o almoço e o jantar fica com inquietação. Então, ela é casada, trepa com vizinho... Isto no Nordeste se resolve logo: o marido mata o vizinho e se ela deu mesmo vai embora e acabou o assunto. Aqui não. Ela quer o marido, quer dar para o vizinho e não quer ter conflitos psicológicos. Então, vai para o analista para saber por que deu, e o marido vai para saber por que não reage. Conversei com algumas mulheres profissionais e liberais, percebi que a visão do mundo se tinha alterado e observei que o número de pacientes de psicanálise era muito grande: toda ou quase toda a classe média estava se analisando. Ninguém pode mais comer ninguém, ninguém trepa, ninguém tem relação com ninguém. .. O meu último livro, talvez se intitule A minha última esperança é o disco voador é basicamente sobre solidão feminina: são 15 novelas sobre pessoas que não têm emoção, porque estudam como 'deve' ser a emoção e 'falam' sobre isso. Na mesa de bar, elas são ótimas, mas na vida real um fracasso: divórcio, tentativas de suicídio, o drama da sexta-feira: aonde ir? Qualquer mulher que você convide para sair, mesmo para comer um sanduiche, aceita porque elas não sabem ficar em casa, não tem vida espritual...(E a literatura pode influenciar essas coisas?)... É muito difícil fixar um limite, porque literatura e psicanálise não têm fronteiras: só que literatura é criativa e a psicanálise é subliteratura oral e é também necessidade humana: as pessoas querem falar de seus problemas, pagam a alguém para serem ouvidas. Este alguém, com um modelo para encaixar o problema ou não ter que lidar com um fato que basicamente é a linguagem, que é um campo muito rico, para o qual eu estava desatento. Você me perguntou como surge a idéia, o que me motiva . Quando eu voltei do Rio, senti no ar essa preocupação que me motivou. Essa diarréia verbal, toda essa gente falando muito e vivendo pouco. Mas, há também toda a fantasia que surge: as pessoas não a entendem como enriquecimento real, o que eu acho positivo, mas como fuga do real. As pessoas se perdem querendo fantasiar o real".
Fonte: RCCIARDI, Giovanni. Biografia e criação literária. Lauro de Freitas, BA: Livro.com, 2009.