Carlos Heitor Cony
Entrevistado em 15/01/1996 no programa da TV Cultura Roda Viva, comandado por Matinas Suzuki, com a participação de Ruy Castro, Marcelo Coelho, Luciana Villa Boas, José Trajano, Humberto Werneck, Ivan Angelo e Braulio Neto.
Matinas Suzuki:
Boa noite! Há 20 anos, ele jurou nunca mais escrever um romance. Agora, volta às livrarias com um quase romance. No palco do Roda Viva, que começa agora, está o escritor, cronista e jornalista Carlos Heitor Cony. Aos quase 70 anos, Cony publica o romance Quase memória, três anos depois de se reconciliar também com o jornalismo diário, quando reestreou como colunista do jornal Folha de S. Paulo. Quase memória traz Cony de volta ao romance em grande estilo. Aclamado pela crítica, o novo livro foi chamado de antológico e de obra-prima. Para entrevistar o Carlos Heitor Cony, esta noite, aqui no Roda Viva, nós convidamos o escritor e jornalista Ruy Castro, o jornalista Marcelo Coelho, articulista da Folha de S. Paulo; a diretora editorial da editora Record, Luciana Villas Boas; o jornalista José Trajano, diretor de esportes da TVA e comentarista do programa Cartão Verde, aqui da Rede Cultura; o escritor e jornalista Humberto Werneck, redator chefe da revista Playboy e o escritor e jornalista Ivan Ângelo, editor executivo do Jornal da Tarde. O Roda Viva é transmitido em rede nacional por 43 outras emissoras de 17 estados brasileiros. Boa noite, Cony.
Carlos Heitor Cony:
Boa noite.
Matinas Suzuki:
Estou muito honrado em recebê-lo aqui hoje neste programa.
Carlos Heitor Cony:
Eu também estou muito honrado de ver você e todos esses entrevistadores.
Matinas Suzuki:
Cony, explica para a gente o que é essa Quase memória, esse quase romance, essa quase ficção que você, depois de 23 anos, praticamente, voltou a fazer.
Carlos Heitor Cony:
Bom, é quase uma sinceridade. Antes de mais nada, é quase um livro e quase uma sinceridade. Eu não pensava em fazer mais um livro, sinceramente E se eu soubesse que eu ia terminar fazendo mais um livro, eu talvez tivesse parado. Ele foi nascendo aos poucos motivado por um motivo pessoal, minha cachorrinha estava morrendo e ela não me deixava dormir à noite. Eu levei o laptop para perto dela e ia escrevendo. Se perceber bem o início, percebe-se que o livro não tinha uma definição, eu não sabia bem o que exatamente eu ia fazer. Estou dando aqui uma... entregando o ouro ao bandido. O livro começa meio sem definição. Minha primeira preocupação era dar assistência à minha cachorra que estava morrendo. Durou 21 dias e foi justamente o tempo em que eu escrevi o livro, em 21 dias. Evidentemente, depois de um certo tempo, quando esquentou as turbinas, eu percebi que meu pai era um grande personagem e fui em frente, colando nele uma porção de outras vivências, outras experiências e, sobretudo, expectativas que eu tive quando criança e ele não me realizou, mas que não era motivo de cobrá-las. Em geral, se cobra muito o pai e não se cobra tanto a mãe. Te dou um exemplo, Matinas: Se você xingar a minha mãe, eu tenho o direito de te matar e posso, num juiz, num júri popular, ser absolvido por legítima defesa da honra. Se você xingar meu pai, não [risos]. Eu não posso fazer nada. Eu pergunto a você: Por que essa discriminação? Por que a mãe pode e o pai não pode? Há, então, um ressentimento, não no mundo oriental, mas no Ocidente há um ressentimento em relação ao pai. Os filhos cobram do pai o sucesso que os filhos não têm muitas vezes, que é o caso do Kafka. O Kafka achava, por exemplo... em Carta ao pai, ele reclamava do pai porque era judeu, porque era da língua alemã. Ele não queria escrever em alemão, queria escrever em francês. Não sabia francês, nem para falar. O culpado disso? O pai. Judeu? O pai era culpado. Morava em Praga? Culpado é o pai. Tuberculoso? Culpado é o pai. Então, ele jogou no pai toda o carma dele. Evidentemente, é um escritor primoroso, é uma obra-prima, mas tem um ressentimento patente. Eu não tive, também, essa intenção, mas acontece que, num determinado momento do livro, eu pensei: “Eu estou redimindo...”, não resgatando, que eu não gosto da palavra, “...mas eu estou redimindo a mim próprio. Estou perdoando a meu pai, tudo o que ele me fez, toda a vergonha que me fez passar”. Outro dia, eu fui ao programa da Marília Gabriela e ela me contou o seguinte: que também ela, ela começou a ler o livro com uma certa má vontade, mas num dado momento, ela se lembrou que no primeiro dia de aula, ela foi para a aula e o pai dela resolveu esperá-la com medo que ela se perdesse, com medo que alguém fugisse com ela. Então, ela ficou envergonhada e chorou. Chorou de vergonha das colegas porque o pai a estava esperando. Ela, hoje, evidentemente, já passou dessa idade da infância, com a idade que ela está, ela olha esse passado e sente a ternura que o pai teve por ela. Quer dizer, esse truque é um truque meio sentimental, meio sentimentalóide. Eu, às vezes, desconfio muito desse livro, sinceramente.
Ivan Ângelo:
Eu queria fazer duas perguntas, já duas: Primeiro, você parou de escrever quando fez o Pilatos. O que te aborreceu tanto: o livro, ou a crítica ou os leitores, que te fez prometer não escrever mais?
Carlos Heitor Cony:
Não, quem leu o Pilatos atentamente percebe que o livro já é uma despedida, quer dizer, eu não tenho obrigação de me despedir nem de chegar. Eu não tenho nem a obrigação de ir embora nem de chegar, eu sou um homem livre. Quando eu comecei a fazer o Pilatos, eu realmente senti que era o fim da minha literatura. Eu levei minhas experiências pessoais no Pilatos, que é um romance escatológico, é obsceno, é pornográfico, não tem nada de erótico. Precisa ver que o Pilatos é um livro radical. Envergonhou até pessoas... meu editor ficou envergonhado dele.
Ivan Ângelo:
Mas o seu primeiro livro (O ventre, lançado em 1958) era meio radical e você não ficou assim.
Carlos Heitor Cony:
É diferente porque aí já tinha uma linha sartreana, era muito inspirado na literatura de Sartre, é muito liberté, é um livro muito literário. Pilatos não, é anti-literatura pura. E quando eu terminei o Pilatos, eu achei que tinha terminado toda uma experiência e parti para outra. E vivi muito bem nesse período.
Ivan Ângelo:
A segunda pergunta é: Se você, depois do sucesso aqui do Quase memória, você vai persistir nessa sua birra com a literatura ou vai voltar a escrever?
Carlos Heitor Cony:
A gente começa a ser cobrado. Eu estou pensando em fazer um livro, mas estou em dúvida se eu devo fazer mais um livro. Eu acho que não tenho mais nada para dizer. Há muito tempo eu desconfio que eu não tenho nada a dizer.
Ivan Ângelo:
Mas está dizendo.
Carlos Heitor Cony:
Vou dizendo. À medida que compram, não tenho nada contra. Mas eu penso que... Estão me cobrando, realmente, um livro e eu tenho uma história incubada dentro de mim há muito tempo, é um primo meu que recebia um demônio, foi fulminado por um raio, desapareceu, não deixou vestígio nenhum e depois apareceu num parque de diversão. Eu vi esse primo no parque de diversão depois de ter sido, oficialmente, dado como morto. Essa história é muito boa. Talvez possa publicar. Mas aí eu vou entrar em realismo mágico, vão dizer que eu estou imitando o Garcia Márquez. Não sei, não, a literatura é muito chata neste ponto.
Humberto Werneck:
Eu me lembro de ler você na minha adolescência, portanto já faz muito tempo isso, e de me impressionar muito com a sua contundência. Era uma coisa assim um pouco diferente da paisagem do romance brasileiro da época. Era O ventre, A verdade de cada dia, Matéria de memória. Eu passei um bom tempo sem ler você e te reencontro agora nesse livro, que é um livro muito doce. Eu te pergunto: “O que foi que te adoçou? Foi o tema, o personagem, foi a passagem do tempo?”
Carlos Heitor Cony:
Eu não chego a considerar um livro doce, neste sentido. Eu tenho um livro anterior, que você não citou, que é o Informação ao crucificado, que é, mais ou menos, um embrião desse livro que não tem, digamos assim, um pouco dessa contundência. A contundência é necessária na falta de firmeza. A pessoa é contundente quando não tem firmeza de nada. Então, todos os meus livros nasceram dessa falta de firmeza nas minhas próprias convicções. Então, a gente apela para as contundências. Em política... Eu nunca tive saco para acompanhar a vida política, mas quando eu entro na política, sou obrigado a entrar porque fui jornalista, militante há muito tempo, eu entro como um panfleto porque o panfleto é simplista, é esquemático e me permite ser contundente. Eu não sei fazer análise. É aquela história do personagem do [...] : “Eu me distraio em silêncio e me aborreço em voz alta”. Então, quando eu escrevo, eu estou me aborrecendo em voz alta. Eu transmito meu aborrecimento para os outros, compra quem quer [risos]. Agora, quando eu estou me distraindo mesmo, aí eu fico em silêncio. Daí, talvez, eu não escreva mais.
Ruy Castro:
Cony, será que essa doçura que o Werneck falou talvez se explique por que você teve a idéia do Quase memória num sonho?
Carlos Heitor Cony:
Bom, é possível.
Ruy Castro:
Você podia contar essa história do sonho?
Carlos Heitor Cony:
Eu sonhei um dia, justamente nesse período em que a minha cachorra começou a ficar doente e a exigir que eu ficasse acordado de noite. Ela dormia durante o dia quando eu estava trabalhando, quando eu ia para casa ela, então, não me deixava dormir. E, num desses cochilos, eu sonhei, que é justamente esse o início do romance. Eu estava no hotel, estava almoçando, passei e o porteiro do hotel me deu um embrulho e eu vi a letra do meu pai. Apenas no sonho isso me deu um sentimento de pesadelo. E a impressão que eu tinha era que meu pai queria me dizer alguma coisa. Mas quando eu fui fazer o livro, eu ia fazer uma crônica para a Folha de S. Paulo. O primeiro esboço desse sonho foram 33 linhas exatas, que é o tamanho da crônica na Folha de S. Paulo. Depois, eu vi que tinha um pouquinho mais. Aí eu disse: “Bom, talvez”...
Matinas Suzuki:
Até seu sonho já tem 33 linhas, Cony?
Carlos Heitor Cony:
Encompridou mais, aí virou livro, mas foi realmente um sonho. Eu não considero o livro, exatamente, um livro doce. Eu considero um ponto de... é uma tristeza, uma certa amargura muito grande.
Marcelo Coelho:
Eu queria saber quais são as vergonhas que o seu pai te fez passar e do que você está se desculpando?
Carlos Heitor Cony:
Várias, várias. Essa que eu conto no livro, da morte do cardeal... A capela do Palácio São Joaquim não era grande, era pequena, menor que esse estúdio. Então, estava o Getúlio Vargas ali, presidente da República, ditador, estavam os bispos todos do Brasil, Dom Bento Aloísio Masella, que depois veio a ser cardeal, e um cardeal morto, ali. Meu pai entrou, cismou que eu estava lá há muito tempo e devia estar com fome. Foi ao botequim e trouxe um prato de comida para mim. Quando ele entrou na capela com aquele prato, eu era seminarista na época, tinha 12 anos. Você imagine um pai penetrar com um prato embrulhado num guardanapo, aquele cheiro de comida de botequim [risos], arroz de botequim, aqueles temperos suspeitos, pimentão, tomate, cebola, gostoso pra burro. Eu me lembro que o Getúlio, foi a única vez que eu vi o Getúlio na minha vida, eu me lembro que o Getúlio fez assim, assustado. Meu pai passou por cima das pernas do pessoal ajoelhado, me chamou e me levou para comer. Eu terminei gostando. Ele ficou me olhando, depois limpou me boca e disse: “Agora, volta”. Quer dizer, ele não podia fazer isso. Uma vergonha. Agora, ao mesmo tempo, se você olhar o outro lado, uma beleza isso. Se todo mundo tivesse um pai assim seria ótimo.
José Trajano:
Cony, para usar um termo mais elegante, você tem pouca paciência com os políticos. Você falou, agora há pouco, que não tem paciência. Apesar de ser biógrafo do Juscelino...
Carlos Heitor Cony:
Não, peraí, não senhor. Pelo seguinte, ainda agora estou com esse problema. O João Pinheiro Neto está fazendo um livro e publica no prefácio uma carta minha que eu escrevi a ele sobre o livro anterior dele, sobre JK e a Lúcia Pedroso [Maria Lúcia Pedroso, durante 18 anos, teve um romance secreto com JK]. Eu não sou biógrafo do Juscelino, se eu fosse biógrafo do Juscelino, eu teria que seguir uma linha de pesquisa e de orientação diferente.
José Trajano:
E você detesta pesquisa.
Carlos Heitor Cony:
É uma coisa muito pior, eu complementei as memórias dele [em 1982, foi lançado o livro: JK- memorial do exílio. Começa em 1961, dia em que Juscelino passou o poder para seu sucessor, e termina em 1976, o ano em que Juscelino morreu]. Por uma questão editorial, ele deixou comigo milhares de pastas. Ele não queria escrever mais a vida dele, ele terminou as memórias dele, escritas na primeira pessoa, quando da posse do Jânio Quadros. Ele, então, tomou o avião, vai para Paris, e encerra as memórias dele. Viveu 16 anos depois disso. E ele aí foi cassado, foi expulso do banco que ele era presidente [Denasa - Desenvolvimento Nacional Sociedade Anônima], pelo genro, perdeu a eleição para a Academia Brasileira de Letras, perdeu a mãe, foi uma sucessão de perdas. No fim da vida, o Juscelino foi um estorvo ambulante. Muito bem. Ele não quis escrever sobre isso, mas queria que eu escrevesse. E eu dizia: “Não vou escrever porque não sou... Eu não vou poder adotar esse ponto”. “Então, faz as minhas memórias”. Então ficou mais ou menos esse ponto. Ele deixou comigo vários apontamentos e cheguei a fazer alguns capítulos com ele ainda vivo, mas eu tive que adotar os pontos de vista dele e não os meus. Então, eu não pude entrar em vários detalhes da vida dele. Se eu fosse o biógrafo...
José Trajano:
[interrompendo] Mas, parece que o melhor livro dele não foi publicado. As melhores histórias sobre Juscelino parece que o Armando Falcão...
Carlos Heitor Cony:
Não, o Falcão... Aí é diferente. Você aí está envolvendo o problema do diário de JK. O diário é o seguinte: o JK fazia a partir de 1972... ele morreu em 1976. Em 1972, ele começou a fazer um diário, mas era um diário muito esquemático, muito telegráfico: “Dia 16 de setembro, sexta-feira, comi e passei mal. Vi o fulano. Li o livro tal. O jornal tal me falou mal”. Era isso, registro taquigráfico. Posteriormente ele, de tempos em tempos, ditava para a Elisabete Ramos, secretária dele, na sala que hoje eu ocupo...
José Trajano:
A "sala do embrulho".
Carlos Heitor Cony:
[risos] Exatamente, a "sala do embrulho". Ele ditava e romanceava alguma coisa motivado por aquelas anotações taquigráficas. Ele saiu do Rio de Janeiro, ele morreu em agosto, 22 de agosto de 1976, ele saiu do Rio de Janeiro em junho, junho de 1976, foi para Luziânia e não voltou mais. Continuou fazendo esses registros telegráficos. Esses registros de junho de 1976 até agosto de 1976 é que estavam no carro com ele, quando houve o acidente na Rio-São Paulo. O Guilherme Romano , a pedido da família, foi a Rezende, arrecadou esse material todo e passou recibo na delegacia de Rezende. O Guilherme Romano, com a consciência que ele tinha, tirou um xerox para ele e deu para o Golbery a outra, quer dizer, num ato só fez duas...
José Trajano:
Uma "lambança" só.
Carlos Heitor Cony:
Duas "lambanças". Deu para o Golbery o outro. O Golbery, por sua vez, fez a mesma coisa. Tirou um xerox para ele e mandou o outro para o Serviço Nacional de Informações. O SNI tirou "n" xerox e mandou para o Armando Falcão. Então, quando o Armando Falcão diz que tem o diário, não tem o diário. Ele tem as anotações de junho de 1976 até agosto de 1976. O diário completo, desde 1972, está em poder de dona Sara e foi entregue à ela, pessoalmente, por dona Elisabete Ramos, pelo Adolfo Bloch e por mim. O JK deixou na sala, na "sala do embrulho", deixou um embrulho. Esse embrulho foi entregue à dona Sara.
Matinas Suzuki:
Cony, qual a passagem mais marcante que você tem da convivência com o Juscelino?
Carlos Heitor Cony:
Bom, o Juscelino, eu conheci o Juscelino nos escombros, quer dizer, era um homem derrotado. Era um homem que não tinha amargura, ele tinha certas tristezas. Ele tinha, no fim da vida dele... Eu convivi com ele nos sete últimos anos, ele chegou até a voltar a ter um apelo místico. Ele chegou a fazer um cursilho, era uma espécie de retiro espiritual. Ele fez um cursilho tentando buscar uma certa verdade. Ele estava muito descrente, muito amargurado. Além disso, ele tinha duas coisas. Uma profunda esperança de que ainda o iam chamá-lo. Ele esperava que, a qualquer momento, haveria uma convocação nacional para ele voltar. Daí, então, ele nunca comprou briga com o regime militar. Veja que ele se comportou placidamente com relação à cassação dele e a todas as humilhações que sofreu. Evidentemente, nada que ofendesse a dignidade dele. Depois, ele procurou compensações. Procurou compensações na vida social, quis entrar para a Academia Brasileira de Letras e se envolveu emocionalmente com pessoas, entre as quais, uma namorada. Mas ele era uma pessoa doente. É preciso dizer que o JK não tinha mais o chamado... Não estava integralmente neste termo, não estava íntegro, nesse momento. O negócio era mais uma compensação afetiva. Ele esperou muito da Academia, esperou muito do amor, nesse sentido. Mas ele tinha uma noção também bastante aguda de que seria uma espécie de salvação. Tanto que ele aceitou a Frente Ampla, com o Lacerda, com o Jango. Ele aceitou.. Quando houve a crise de petróleo de 1973, ele se entusiasmou muito com o xisto betuminoso. Foi à Santa Catarina, queria fazer estudos, queria fazer um relatório para aproveitar a energia alternativa. Não seria mais a cana nem o petróleo, que estava difícil, ia ser o xisto betuminoso. Ele pensava ainda como estadista. O Juscelino não foi estadista, não foi nada disso. O Juscelino foi um grandíssimo prefeito nacional [risos].
Luciana Villas Boas:
Você fala de imprensa, do jornalismo, no seu livro. Eu queria saber como é que o senhor vê a evolução da imprensa, principalmente no período pós-abertura política, e queria saber se o senhor se diverte, mais ou menos, com o jornalismo hoje?
Carlos Heitor Cony:
Antes de mais nada, o Matinas me lembrou que quando eu voltei a trabalhar na Folha de S. Paulo, eu disse que assisti duas coisas importantes na minha vida: Uma foi a "inolução do vento encanado" e a outra foi a evolução da imprensa [risos]. A "inolução do vento encanado" é o seguinte: no meu tempo, o vento encanado era pior que aids, era pior que o câncer. O vento encanado era a coisa mais letal do mundo. Era um vento encanado. As pessoas temiam o vento encanado. As mães diziam isso.
Ivan Ângelo:
Tem até uma crônica saborosa do Rubem Braga sobre isso.
Carlos Heitor Cony:
Muito bem. Então, o vento encanado era uma coisa mortal. Hoje ninguém mais tem medo de vento encanado, em compensação, assistiram a essa evolução da imprensa. Agora, essa evolução em termos. Eu, pelo menos acho que, às vezes, melhorar é piorar. A evolução deixou de ser aquela profissão romântica, boemia, que foi o tempo mais ou menos descrito em meu livro, em que os jornais não eram empresas. Os jornais eram, digamos assim, empreitadas para defender determinados pontos de vista, talvez até para defender pontos de vista pessoais. Fundavam-se jornais para defender ponto de vista de fulano ou atacar fulano. Basta dizer que os Diários Associados, na raiz, estava o quê? Estava o [...], que era o homem que, afinal de contas, brigou com o Artur Bernardes e foi daí que nasceu... Quer dizer, os jornais eram feitos não para informar, não pensando no público, mas pensando em interesses pessoais de grupos ou de pessoas. Muito bem. Hoje, evidentemente, não há... Porque a imprensa ficou muito cara, o papel é caro, a distribuição é cara, a publicidade é cara, por conseguinte. Então, envolve tantos riscos que não pode mais ter essa boemia, esse lado, digamos assim, leviano da imprensa [aponta para si]. No meu tempo, ainda quando eu estreei, a imprensa era muito leviana. Eu me lembro, por exemplo, quando eu tinha l7, l9 anos, subia a escada da Gazeta de Notícias, meu pai cismava que eu devia ser jornalista, então, não podia me arranjar emprego no Jornal do Brasil, que era o sonho dele: “Então você vai trabalhar na Gazeta de Notícias”. A Gazeta de Notícias era um prédio velho, no centro da cidade, tinha tido as suas glórias. A Gazeta de Notícias foi onde José do Patrocínio fez a campanha da abolição. A Gazeta de Notícias teve como crítico literário Olavo Bilac, Emílio de Menezes. Era um jornal ali da rua do Ouvidor, antiga, do Rio de Janeiro. Foi de lá que nasceu o famoso slogan: “O Rio civiliza-se”, de Figueiredo Pimentel. Muito bem, quando eu subi aquelas escadas, sentei numa cadeira e aí o diretor, que era um senhor chamado Manso Teixeira, disse: “Não senta aí que esta cadeira é do Olavo Bilac”. Eu olhei, pensei que o Olavo Bilac ia aparecer de repente [risos], mas, ele estava morto há 50 anos. Eu pensei que o Olavo Bilac ia chegar ali e ia reclamar. Eu levei um susto. A cadeira do Olavo Bilac estava reservada ainda, era o crítico literário do Diário de Notícias. Quer dizer, esse lado boêmio do jornal, acabou. Hoje em dia não se respeita nada. Respeita-se o quê? Respeita-se o lucro, a produção...
Luciana Villas Boas:
Com relação ao poder, você acha que está mais ou menos independente nos últimos 10 anos? Como você acha que está se encaminhando?
Carlos Heitor Cony:
Eu não acredito muito em independência. Fala-se muito na independência da imprensa. Hoje, por exemplo, a gente sente que as fontes... Hoje, o jornal se baseia em quê? Se baseia nas fontes. Evidentemente, os jornais têm grandes estruturas para arrecadar, para arrebanhar notícias, para capturar, aquela coisa. No fundo, o que permanece é, se o repórter chegar lá e disser: “Eu vi um disco voador”, alguém vai perguntar a sua fonte, seja o Golbery... Mas vai perguntar seja ao Fernando Henrique, ao Sergio Motta, ao Mario Henrique Simonsen, mas vai perguntar a alguém se pode ter visto [risos]. Então, de acordo com a fonte, o jornal aceita a notícia, faz o editorial, abre o segundo caderno, faz edição especial, muito bem. A fonte é que manda. Quem são as fontes? Ninguém revela as fontes. A chamada independência do jornalista, hoje, repousa no mistério da fonte que não se pode revelar, é um direito nosso. Então, eu digo, por exemplo, que o Ruy foi na minha casa ontem e roubou. A fonte sou eu. Isso, me parece, está havendo um exagero nesse particular, está havendo uma maxivalorização do colunista, o que me parece, também, um pouco prejudicial. Porque o colunista, o que ele é? Ele é um... eu sou colunista, mas ele [o colunista] uma espécie de destaque. Então, um exemplo que eu dei um outro dia para uma moça que me telefonou da Vip Exame: “O jornal é mais ou menos como uma escola de samba, tem aquela multidão de três mil figurantes e tem os destaques, que vão naqueles carros alegóricos, distribuindo beijos para a multidão [risos]. Aí você bota... em cima dos carros, você bota quem? Liliam Ramos, Tony Ramos, dona Neuma. Agora, se não for aquela multidão, aquele arrastão, ninguém vai para a avenida receber beijos do Tom Jobim, do Garrincha ou de quem quer que seja, vai ver aquele espetáculo conjunto". Então, o jornalismo valorizou demais a profissão do colunista em detrimento desses passistas, dessas alas que compõem a verdadeira imprensa.
Ruy Castro:
Você foi o grande beneficiário desse destaque que se deu ao colunista, numa certa época da história do Brasil, e também da liberdade e da independência do colunismo, quando você, em 1964, no Correio da Manhã, contrariando até a linha editorial do Correio da Manhã, que tinha sido o principal motor, praticamente, da derrubada do João Goulart, você sustentou sozinho, durante algum tempo, a oposição ao regime militar, não foi?
Carlos Heitor Cony:
Sim, mas aí são circunstâncias. Hoje não se repetiria aquilo porque hoje, o domínio da empresa sobre a redação... o domínio, não no sentido de malefício, mas no sentido empresarial, hoje em dia, a empresa tem um controle tão grande sobre a redação que seria impossível, praticamente, isso. Naquele tempo ainda havia muita bagunça e o Correio da Manhã estava muito desarvorado, estava passando por crises. Pouco antes havia morrido o dono do jornal [Edmundo Bittencourt]. Não havia, praticamente, um redator-chefe definitivo, havia vários substitutos. Era uma terra de ninguém. E no "abafa", há um filme do Jerry Lewis, que ele diz: “Na confusão, sempre alguém sai ganhando”. Naquela confusão, eu comecei a mandar umas crônicas e não reclamaram nada. Quando a empresa tomou conhecimento e quis me policiar, já era difícil. Ficava ruim voltar atrás.
Matinas Suzuki:
Cony, uma parte interessante da sua biografia, e talvez as gerações mais novas que estejam nos assistindo não conheçam, foi a trajetória zigue-zague que você fez, ou seja, você não era um homem político, você virou uma espécie de personalidade intelectual mais importante, como Ruy se referia, talvez um baluarte da defesa da intelectualidade. A esquerda toda passou a contar com a sua defesa, da sua pena etc e tal, depois segue-se um período, você volta e essa própria esquerda passou a fazer de você um inimigo público. Como é que foi essa trajetória e como é que você revê essa trajetória, hoje em dia?
Carlos Heitor Cony:
Bom, antes de mais nada, a minha reação em 1964 não teve nada... eu era uma pessoa alienada, como sou hoje, como fui sempre. Eu sempre desprezei o fato político. Sempre. Em 1964 não houve fato político, no meu entender. Houve o seguinte: Eu liguei para o meu amigo Ênio Silveira, estava foragido, liguei para o Callado, estava se foragindo. Outro estava indo para a Bolívia. Outro estava sendo espancado. Drummond de Andrade foi comigo à rua naquele dia e nós vimos um camarada ser torturado na rua, espancado. Um coronel espancando um operário que tinha dito: “Viva João Goulart”. Eu não estava me importando com o viva João Goulart, eu não queria saber de João Goulart, mas não conseguiu entrar pelas minhas retinas a idéia de um homem, um coronel, classe média, um homem dos seus 55 anos, por aí, cabelos brancos, com um revólver, dando pontapé num operário porque tinha dito: “Viva o João Goulart”. Não sei quem era operário, era um "paraíba" qualquer daqueles da rua Joaquim Nabuco. Foi isso. Então, foi uma reação tipicamente humanística, não tem... Se você ler com atenção O ato e o fato, vai ver que não tem nenhum lado político, é uma relação humanística que eu teria se fosse... Se houvesse uma revolta comunista naquela época e tivesse tomado o poder e tivessem feito os mesmos métodos, tivessem usado a tortura, enfim, a repressão, eu teria tido a mesma atitude que tive contra a direita. Então, esse negócio de esquerda, de direita, para mim, é tão imbecil quanto você discutir marcas de automóvel. Não tem, em nenhum momento nas minhas crônicas é dito: Eu faço uma opção por um lado. Evidentemente, eu tenho um pensamento socialista, pré-comunista [risos]. Porque comunismo é uma opção, inclusive, mas o socialismo vem de... Antes do socialismo já havia tentativas socialistas. Então, esse lado humanístico me interessa muito. A esquerda queria o quê? Queria que eu fosse o masturbador geral da nação. Queriam gozar com o pênis alheio [risos], com o meu pênis. Eu quero gozar com o meu pênis, cada um goze com o seu. Então, em determinados momentos, a esquerda começou a fazer umas cobranças e eu não tinha nem saco nem paciência nem vontade para atender. A esquerda, então, achou... Há um fato, também, eu escrevi um romance chamado Travessia, em 1967. Foi interessante. Em 1967, saíram três obras de três presos na mesma prisão. Nós tínhamos sido presos em 1965: Gláuber Rocha, o Callado e eu. Junto com outros: o Flávio Rangel, Thiago de Mello, Marcílio Moreira Alves, Joaquim Pedro, nós estivemos na prisão. Saímos da prisão, o Gláuber fez Terra em transe, o Callado fez Quarup, eu fiz A travessia. Todos as três obras abordam a luta armada, o problema da luta armada, que era uma das questões que estava no ar naquele tempo. Gláuber criou um poeta feito pelo Jardel Filho que morre numa escadaria do municipal com uma metralhadora. O Callado foi o mais esquemático, é um padre que abandona tudo, bota um gibão e vai para a guerrilha. E, no meu caso, é um intelectual frustrado e que não aceita nada, mas que termina, enfim, entrando na confusão e, na base da confusão, ele se compromete e, quando ele quer sair, já não consegue sair mais. Mas não tem nenhuma vocação de guerrilheiro, não acredita na luta armada, nem acredita na luta da esquerda. Nesse meu romance há uma traição. Há um grupo de guerrilheiros que faz uma tentativa de tomar o poder, pelo menos tentativa de rebelião, está tudo pronto, tem apoio externo, tem dinheiro, as famosas "condições objetivas" [gesticulando], que o Partido Comunista sempre dizia que não havia. Muito bem, um grupo conseguiu essas "condições objetivas", somente na ficção poderia ter sido [risos], mas conseguiu e, de repente, o exército dá em cima e dizima tudo. Há um traidor. Pesquisa-se o traidor: o Partido Comunista. Por que traiu? Porque o Partido Comunista recebeu ordem de que era mais importante fazer uma revista de assuntos gerais do que aceitar mexer na estrutura do governo. Isso pelo seguinte: quando nós estávamos presos, Matinas, em 1965, nenhum de nós era comunista. O único que tinha sido comunista, e não era mais, era o Flávio Rangel que já tinha deixado o Partido Comunista há muito tempo, mais nenhum de nós, éramos nove, nenhum de nós era comunista. A União Soviética emprestou ao governo Castelo Branco 100 milhões de dólares. Estávamos presos. Então, não havia, realmente, por onde o Partido Comunista... E outra coisa, quando nós planejamos aquele protesto contra o Castelo Branco, na porta do Glória, o Partido Comunista, através de três de seus membros da comissão do comitê cultural, prometeu apoio. Prometeu cinco mil operários e 5 mil estudantes, só apareceram nove gatos pingados. O Partido Comunista era "useiro e vezeiro" em trair, é a história dele trair. Não é à toa que o Partido Comunista faliu a Rússia. Agora, isso não tem nada a ver com socialismo. O Partido Comunista não é socialista.
Bráulio Neto:
Você enxerga a esquerda hoje no Brasil? Quem é a esquerda, para você? Já que você falou essa questão de direita, esquerda... É possível haver um sentido progressista neste país partindo da direita ou partindo da esquerda?
Carlos Heitor Cony:
Não, progressista não. O progresso é feito pelo meio. O progresso será sempre feito pelo meio. A direita jamais fará progresso. Se fosse pela direita, nós estaríamos vivendo na época das cavernas. Eu incluo na direita, o neoliberalismo... O Neoliberalismo botaria o homem mais apto, que seria o homem mais forte da caverna, dominando os mais fracos, tranqüilamente através da meritocracia. Agora tem uma coisa, a esquerda, por negar em conjunto, por negar em bloco a direita, ela comete também exageros opostos. Ela, muitas vezes, luta pela luta, não tem, realmente, uma determinação, um meio, uma finalidade precisa. Tanto isso é verdade que os partidos comunistas, quando tomaram o poder, se transformaram em quê? Se transformaram em conservadores. Tem coisa mais conservadora que o Breshnev? A gravata? Vocês já olharam a gravata do Breshnev? Ele tinha 200 gravatas, todas elas eram altamente conservadoras [risos]. O figurino, o visual do comunista, não o comunista latino-americano, que é meio avacalhado, mas o verdadeiro comunista, o ortodoxo, é um conservador que nenhum conservador da direita é assim. O Armando Falcão é mais revolucionário que o Breshnev. As gravatas do Armando Falcão são muito boas, são de boa qualidade. Italianas. Não é pelos opostos. A humanidade sempre vai caminhar pelo meio, ou seja, pela mediocridade. A humanidade é medíocre.
Marcelo Coelho:
A impressão que dá é que você, justamente, está mostrando que não são opostos, ou seja, se o Breshnev estava com essas gravatas, ele era tão de direita quanto um sujeito de direita.
Carlos Heitor Cony:
Um espírito conservador. Espírito conservador. Tanto que eles fizeram uma revolução socialista com o apoio, afinal de contas, apoio alemão. Se a gente for estudar bem a revolução socialista, a gente vê que houve elementos telúricos da própria realidade russa, soviética, daquele tempo, a exploração do campesinato, o domínio do czarismo, mas quem botou o Lenin na União Soviética foram os alemães. Então, já foi uma jogada do capitalismo internacional. Até certo ponto, a revolução socialista de 1917 foi uma jogada do capitalismo internacional. Foi uma espécie... A maior revolução socialista do século, da história talvez, foi já uma caudatária do capitalismo, ou seja, de uma meritocracia qualquer. Uma vez tomado o poder através do Lenine, posteriormente do Stalin, eles viraram conservadores. Conservadores dos mais atrozes, capazes de torturar. Hoje, se sabe, está mais do que... Já no congresso de 1956, no 20º Congresso do Partido Comunista, o relatório do Krushov, já colocou o Stalin como um verdugo. Então, um Gandhi é pior do que Hitler. E o que era isso se não sufocar as liberdades do povo? Em nome de quê?
Marcelo Coelho:
Olha, pessoalmente, eu acho que ninguém [risos]. O meio é aquele troço, a escola de samba que anda. É o povo, a gente vai andando, sou eu, você. É o Fernando Henrique.
Luciana Villas Boas:
Mas, Cony, você hoje é uma das grandes vozes dissonantes na imprensa. Você e Veríssimo são, talvez, os principais críticos ao modelo econômico e à classe dirigente. Esse seu trabalho na Folha não é um trabalho pela esquerda? Por que só identificar a esquerda com a extinta, a falida União Soviética? E por que essa, quer dizer, você não reconhece que tem um papel de resistente ao fazer essa crítica ao neoliberalismo?
Carlos Heitor Cony:
A minha posição continua sendo sempre a de humanista. Eu analiso o neoliberalismo da seguinte maneira, em termos bem diretos: o homem da caverna. O homem da caverna é o quê? Por que o homem criou o Estado? O homem da caverna criou o Estado porque era necessário que os mais fortes pudessem distribuir os seus bens para os mais fracos. Outro dia, eu li uma frase muito boa de um professor da Columbia [universidade], me esqueci o nome dele agora. Ele diz que se o pobre se levantar, não só o indivíduo pobre, mas a nação pobre se levantar, é o mesmo que querer levantar alguém do chão puxando pelo próprio cadarço. Tem que haver, então, a ajuda do Estado. O Estado foi criado para isso, para equilibrar as potencialidades dos indivíduos. Muito bem, na medida em que o Estado se baseia na excelência do indivíduo que sendo melhor tem mais direitos, ele evidentemente já nega a criação do Estado. Então, para que o Estado? O Estado será, então, neutro. O Estado será, então, apenas um regulador, um garantidor do mérito dos capazes. Isso gera o quê? Gera uma profunda injustiça social e não é por aí que a humanidade vai caminhar. Eu dou o exemplo, também, da balsa: “Você está num navio, o navio afunda e você está na balsa, nessa balsa tem 17 pessoas. Haverá um que é forte, que saberá alguma coisa de navegação, haverá um doente, uma velha que está batendo pilha, haverá um louco, haverá crianças, haverá... enfim, a humanidade toda estará representada, de uma forma ou de outra, nessa balsa”. Então, se os mais capazes se juntarem e disserem: “Bom, vamos jogar no mar os velhos, os imprestáveis, as crianças e os chatos” [risos]. Bom, está tudo bem. Eu sou a favor de jogar os chatos [risos], mas num certo ponto todo mundo é chato. Nessa altura, todo mundo é chato. Então, do que é feito o Estado? O Estado é, justamente, dentro dessa balsa, com os chatos, os lesos, os doentes e os bons, os que sabem navegação, os que têm condições de gerirem alguma coisa, eles se reunirem e fazerem alguma coisa para a balsa chegar a algum porto. No caso da humanidade, eu discordo porque eu acho que a humanidade jamais vai chegar a um porto. Essa balsa, bem administrada ou mal administrada, sempre vai dar com os burros na água. Não vai terminar em porto nenhum, mas de qualquer maneira, para a sobrevivência da balsa... É um bom título, “sobrevivência da balsa” [risos], para a sobrevivência da balsa, nada melhor do que haver um Estado. Estado esse que vai tentar equalizar as potencialidades de cada um e não sair, como diz o neoliberalismo: “Quem é bom se compromete”. Eu me lembro de um empresário que foi ao Collor, isso antes de haver a onda neoliberal do Fernando Henrique, foi ao Collor pedir um financiamento e o Collor disse assim: “ Se o senhor não tem competência para ser empresário, vá abrir um botequim”. Na cabeça do Collor. Quer dizer, não é bem isso. A obrigação do feitor de um Estado seria ver até que ponto esse empresário tinha ou não tinha condições de sair da crise dele, crise provocada pelo próprio Estado, por sinal. Em geral, é preciso que se diga: 90% da crise bancária, da crise das empreiteiras, de todo mundo por aí, é fruto do Estado porque o Estado é o grande devedor. O pessoal fala muito de inadimplência. O Estado brasileiro é inadimplente para com ele mesmo.
Matinas Suzuki:
Cony, nós estamos chegando ao final do primeiro bloco, mas eu gostaria aqui de fazer perguntas dos nossos telespectadores. Estão chegando muitas perguntas, das mais variadas, mas chegaram bastante sobre, como você tocou no tema, da sua cachorra Mila. A Mariane, de Ribeirão Preto, a Marina Ribeiro, de Paraíso, a Miriam Vaio, São José dos Campos e o Hilton Taboada, de Niterói. O Hilton pergunta o seguinte, todos perguntam sobre a Mila e o Hilton pergunta o seguinte: Se você poderia comentar a sua afirmação do Sartre: “Quem ama muito animais e crianças, ama contra os homens”.
Carlos Heitor Cony:
Eu acho que não há dúvida nenhuma. Primeiro, não considero a Mila um animal. Ela é um animal no sentido que eu sou um animal também. Esse negócio de dizer que o homem é um animal racional... os animais raciocinam. A única coisa que o animal homem faz que o animal não faz, e a razão é do animal, é rir. O homem é um animal que ri, coisa que o animal não faz e eu acho que o animal está certo [risos]. Não vejo muitos motivos para o homem estar rindo, não. Acho que, mais uma vez, o animal prova que está certo, ele não ri. Agora, que ele tem um raciocínio, tem. Ele tem afeto, tem lembrança, memória. Ele abdicou [da articulação da fala], eu acredito muito nesse tempo, porque todas as civilizações, de todos os povos, sempre falam de uma época em que os bichos falavam. E os bichos, provavelmente, já foram articulados. Não exatamente como nós somos hoje articulados, mas alguma forma de articulação. Apenas eles abdicaram dessa articulação, porque confundiu-se de tal maneira as palavras, os articulados de tal maneira complicam a história, complicam a vida, que os animais mais sábios, formigas, abelhas, os cães, resolveram abdicar por uma questão de sobrevivência, de viver melhor, qualidade de vida. Eles têm uma qualidade de vida melhor do que a nossa. Então, agora, respondendo a pergunta do rapaz de Niterói, tinha que ser de Niterói [risos], não há dúvida nenhuma que, na experiência pessoal de cada um, a gente ama os animais na medida em que soma determinadas, não vou dizer ressentimentos, mas determinadas carências. É uma carência, não há dúvida nenhuma. A gente busca nos animais aquilo que a gente sabe que os homens não podem dar. Isso eu assumo e daí? É isso mesmo. A Mila me deu o que nenhum ser humano me deu.
Marcelo Coelho:
Sabe, Cony, dá a impressão, às vezes lendo as crônicas e da própria história toda da Mila, de você ser uma pessoa muito solitária. E, nas crônicas, uma pessoa além de solitária rabugenta. E nada indica [durante a entrevista], a gente vê que nada disso é verdade. Eu queria saber um pouco da sua vida pessoal. Por que essa imagem de cronista...
Carlos Heitor Cony:
[interrompendo] Rabugento. Você já me chamou disso uma vez [risos]. É a segunda vez que você diz isso. Não, mas Marcelo, é o seguinte, solitário eu sou, mas solitário cercado de muita gente. Eu gosto muito da solidão. Agora mesmo muita gente admira que eu fui passar uns dias num navio, num cruzeiro, e consegui escrever. Escrevi 2800 caracteres do novo livro, no meio de todo mundo. No meio da piscina, aquelas pessoas, e eu consigo. Sou solitário, realmente, porque eu não me confraternizo muito. O rabugento é um pouco de Machado de Assis. Eu acho que o Machado de Assis me influenciou muito. Eu já nasci rabugento e acho que gosto de ser rabugento. Eu não gosto muito de pessoas, na verdade não é não gostar, eu admiro as pessoas, mas eu acho que o rabugento tem um fundo de verdade. É o caso do Machado de Assis. Todos os personagens do Machado de Assis são altamente rabugentos. Talvez seja um cacoete machadiano esse.
Marcelo Coelho:
Eu estava pensando na pergunta que a Luciana fez sobre a evolução do jornalismo nos últimos tempos e você tendo escrito no seu livro que, tendo tido o pai jornalista, que o seu pai é um jornalista de uma geração muito marcada pela idéia de fim de século, muito ligada a Machado de Assis e a Euclides da Cunha, Anatole France, e há uma espécie de ceticismo e um certo desencanto até estetizante na maneira de escrever e tudo mais. E, agora, não sei, passado todo esse processo de mobilização política e de projetos de mobilização cultural do século inteiro, quer dizer, a gente chega num final de século um pouco também voltados para uma forma semelhante de ceticismo, uma forma semelhante, talvez, de "decadentismo final de século". Eu queria saber se você encontra nisso uma outra fonte de semelhança com o seu pai?
Carlos Heitor Cony:
Sim, nós estamos vivendo um outro século. Você falou de decadentismo. É preciso ver o seguinte, a geração do meu pai já era uma geração logo depois do século. Ele ainda herdou, como você citou bem, os atores, eram Anatole France, Machado de Assis, Euclides da Cunha... marcaram toda uma geração, mesmo de jornalistas que nunca os tiverem lido. Era o clima, era o chamado clima de fim de século.
Marcelo Coelho:
E a cadeira do Bilac ainda estava ali.
Carlos Heitor Cony:
Mas veja só, eu acredito que esse ceticismo será inerente à profissão de jornalista. Se o jornalista não for cético, ele vai ser panfletário a favor. Eu acho que a pior coisa que há no jornalismo é o panfletário a favor. É o sujeito que... o Fernando Henrique, nesse ponto, até me parece ser um panfletário a favor dele mesmo [risos]. Ele, por exemplo, eu não sei se os senhores repararam a maneira dele se expressar. Tem um rapaz que imita o Fernando Henrique na televisão, eu vi, imita um pouco parecido. Mas o pensamento dele é mais ou menos o seguinte, digamos, uma frase assim óbvia: “Não se deve cuspir no chão, que é porcaria”. É uma frase óbvia. O Fernando Henrique jamais vai dizer isso. Ele vai dizer: “Não convém que se coloque a glândula salivar em funcionamento e expelí-la da cavidade bucal porque, pela lei da gravidade. Newton...”, ele diz, “...que a lei da gravidade jogará no chão” [risos]. Ele citou Newton, inteligente para burro, culto para burro, mas ele falou o quê? Que não se deve cuspir no chão, que é porcaria. Isso é, talvez, o quê? É o decadencismo [risos].
Matinas Suzuki:
Nós voltamos com o Roda Viva que entrevista esta noite o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony. Cony, a gente estava falando aqui das mudanças de jornal, você já está a algum tempo na imprensa e as mudanças... mas eu gostaria de te perguntar também: Você foi, talvez, o escritor mais conhecido do Brasil nos anos de 1960, chegava a escrever até mais de um romance por ano. Qual é a diferença que você sente agora que você volta ao universo do livro. Qual a diferença? O que houve, o que mudou, na sua concepção ou na sua visão, no livro no Brasil? Melhorou, piorou a situação, era mais gostoso, era mais interessante fazer livro nos anos de 1960 do que agora? E eu queria aproveitar também que o José Roberto Giorgetto, de São João da Boa Vista, pergunta qual foi a importância do Ênio Silveira, que foi um dos seus editores dos anos de 1960 e que, infelizmente, recentemente faleceu?
Carlos Heitor Cony:
Foi meu editor até bem pouco tempo, né? Eu estreei em 1958. No final dos anos de 1950 surgiu o Guimarães Rosa, com Grande sertão: veredas em 1958, Gabriela, do Jorge Amado, também de 1958, Fernando Sabino, com Encontro marcado, também ali de 1957, 1956, quer dizer, surgiu uma geração muito grande. Os livros tinham tiragens maiores, em princípio, tinham tiragens maiores, mas não havia, digamos assim, uma cobertura da mídia tão grande quanto hoje. Hoje, realmente, a indústria editorial... não só porque as editoras se profissionalizaram, criaram marketing, antigamente não havia marketing. Eu me lembro que quando saiu o meu primeiro livro, o Ênio botou um anúncio no jornal, aí houve quem reclamasse: “Você não é sabonete, não deixe o Ênio fazer isso, ele está te estragando”. Isso foi um editado do Ênio, por exemplo, não foi nem inveja porque foi um acadêmico. Posso dizer o nome porque já está morto: Raimundo Magalhães Júnior. Meu amigo era amigo íntimo, trabalhávamos juntos na mesma mesa. Ele achava que o Ênio estava me prostituindo na medida que me anunciava. Você veja a mentalidade dos anos de 1950. Hoje não, hoje se entende o marketing do livro. Isso faz com que o livro tenha repercussão, mereça ou não mereça. Eu acredito que a produção dos anos de 1960, dessa virada de 1960, tenha sido melhor não porque eu tenha estreado, não foi por causa de mim, eu citei Jorge Amado, Guimarães Rosa, Fernando Sabino, Millôr Fernandes também começou a estourar nessa época. Eu acredito que houve uma espécie de, não vou dizer renascença, mas foi um período muito fértil na literatura. Agora, não tinha, não havia, por exemplo, um programa como o Roda Viva que chama o escritor para falar sobre isso, não havia. O Jorge Amado, por ser Jorge Amado, tinha uma certa cobertura. Mas, não era... Hoje, não, hoje se discute mais o livro, mas tiragens são menores. Há, evidentemente, aqueles que tiram tiragens maiores. Também outra coisa: Apela-se mais para os livros. Antigamente, quando, por exemplo, nessa época, um grande filme, um best-seller da época foi O quarto de despejo, de uma favelada. Vendeu 40, 50 mil. Mas era, foi uma peça que criou um impacto muito grande. Era uma favelada com o [...], mas foi considerado, muita gente torceu o nariz para os editores: “Vocês não devem fazer isso”. Hoje é diferente. Hoje, se os Mamonas Assassinas escreverem um livro sobre a Teoria do Quanta, não vai faltar editor nem leitor. Vende tranqüilamente 300, 400 mil exemplares. Mamonas Assassinas explicando a Teoria do Quanta. Eu, que não entendo nada da Teoria do Quanta, gostaria de entender através dos Mamonas Assassinas [risos].
Bráulio Neto:
Você se enquadra nesse seguimento aí... Como é voltar para o mercado editorial, num momento em que o Lair Ribeiro [escritor de livros voltados para a auto-ajuda] vende livros da forma que vende? Paulo Coelho [escritor de textos esotéricos]. Como é que você vê esse tipo de fenômeno e eu queria saber o contrário também: Você acha que o Lair Ribeiro teria grande espaço literário nos anos de 1960, por exemplo?
Carlos Heitor Cony:
Não teria tanto, não teria tanto. Sinceramente, não teria tanto. A indústria do livro era muito elitista, naquela época.
Ivan Ângelo:
Mas, também tinha o Como fazer amigos e influenciar pessoas, que é um livro...
Carlos Heitor Cony:
Havia, havia. Era um erro, mas o livro era considerado quase um totem. Era uma coisa sagrada. Na verdade, eu acho o Paulo Coelho muito útil porque um homem que vende 2 milhões de exemplares faz o editor ganhar dinheiro e esse editor pode investir em outras coisas.
Humberto Werneck:
Cony, eu queria voltar para um momento aqui nesse seu livro, esse quase aqui na capa. Quase memória, quase romance. Isso cria em mim uma curiosidade e me autoriza a te perguntar até que ponto... onde entra aqui a ficção? Onde está a realidade, a memória pura e onde você foi romancista? Eu penso, por exemplo, em alguns episódios, como o episódio do balão. Aquele governador de Minas sendo tentado a se lançar a presidente da República, o seu pai despencando de uma mangueira dentro de um cemitério. Que episódios você criou?
Carlos Heitor Cony:
É muito misturado. O pai despencando da mangueira no cemitério é real. O episódio do governador já é ficção, totalmente ficção. Eu inventei na prisão, com Joel Silveira. O Joel Silveira resolveu contar uma história, eu disse: “Vamos inventar a história”. Preso, para passar o tempo, faz qualquer miséria. Então, o Joel preso e eu preso, resolvemos inventar. O Joel inventou uma história lá da terra dele, de Lampião, que Lampião não entrou na terra dele porque não tinha nada para roubar também. A terra dele é Lagarto, lá em Sergipe. E disse: “Agora inventa uma história”. Eu inventei essa história. Foi relato oral, quer dizer, velho recurso. Foi um relato oral que na hora eu me lembrei. Mas quando você me fala desse troço, se é romance, é o seguinte: É uma questão de linguagem. Eu digo, na abertura, eu fiz questão de botar bem claro porque a linguagem flutua, ela está desgovernada. Eu uso linguagem de reportagem, uso linguagem de crônica e de ficção. Há episódios inventados que eu usei linguagem de reportagem e há episódios reais que eu usei linguagem de ficção.
Matinas Suzuki:
Agora, o que diferencia, para você, a reportagem da crônica, do romance e do conto, uma vez que você já faz quase tudo?
Carlos Heitor Cony:
Bom, a reportagem procura ser objetiva. Você, como chefe de redação, sabe disso. A reportagem tem que ser objetiva, tem que ser factual, tem que ser neutra e a linguagem tem que obedecer isso. A crônica é o contrário, na crônica, o personagem central, nesse ponto o livro é uma crônica, a crônica é um gênero em que o personagem principal é o "eu": “Abri a janela e não vi nada”, pronto, é uma crônica. Já é uma crônica: “Abri a janela e vi tudo”, pronto, é outra crônica [risos]. Desde o momento que seja o "eu", pronto, você está no ramo da crônica, vale tudo. A ficção é diferente. A ficção, talvez, é uma forma que você já agride a linguagem, digamos assim, gramatical, a sintaxe tradicional.
Matinas Suzuki:
Mas há quem agrida no jornal e não faça ficção [risos].
Carlos Heitor Cony:
Às vezes é uma forma de ficção, mas quando você agride propositalmente, você começa a juntar... Por exemplo, a parte final do livro é de ficção, é linguagem de romance. É uma liberdade que...
Matinas Suzuki:
Mas em qual delas você está mais à vontade?
Carlos Heitor Cony:
Matinas, sinceramente, nesse livro daí eu não me policiei, eu me soltei na medida que veio. Eu não pensava em publicar, só publiquei porque um dos presentes aqui na mesa resolveu levar para uma editora e o editor resolveu publicar. Tanto que eu quase me desentendi com o meu editor tradicional, que era o Ênio Silveira, que não gostou, achou que eu tinha apresentado a ele [...] e agora está morto, mas antes disso nos reconciliamos. Não só isso, ele ficou de editar dois livros meus esse ano, agora morreu, não sei como vai ficar isso.
Humberto Werneck:
Seus livros estão em catálogo, ainda? Eles são encontrados?
Carlos Heitor Cony:
Não, não estão há 20 anos. Também não fiz questão, a verdade seja dita, não fiz nenhuma questão de reeditar meus livros.
Humberto Werneck:
Agora, o sucesso desse livro, de certa forma, você sente que vai puxar reedições? Você tem sentido isso?
Carlos Heitor Cony:
Sim, mas, sinceramente, não é por aí, não. Eu tenho a impressão que eu não gostaria de ver republicados alguns de meus livros.
Humberto Werneck:
Nenhum?
Carlos Heitor Cony:
Nenhum, não, talvez. Eu gostaria de ter tempo de fazer...
Luciana Villas Boas:
O Pilatos você gostaria que fizessem?
Carlos Heitor Cony:
Ah, gostaria. [risos] Pilatos é o único livro pronto que eu tenho, é o único livro que eu afirmo que eu acho que nunca será datado. É preciso ver que esse Quase memória, não estou dizendo isso para bajular vocês, mas todos vocês aqui poderiam ter escrito. Isso é uma questão de tema.
Ruy Castro:
As pessoas que têm acesso a você, depois que lêem o Quase memória, chegam para você e dizem: “Olha, adorei o seu livro, chorei pra burro, pensei muito no meu pai” etc. E tem outros, que são minoria, que dizem: “Olha, adorei o seu livro, morri de rir”. Qual das duas reações você prefere?
Carlos Heitor Cony:
Muito difícil. Acho que os que riem. Acho que, talvez, seja uma reação mais primária. O choro nunca é muito sincero, o riso é. Eu acho que o riso me satisfaz mais. De qualquer maneira, você me cortou um pouco. Eu acho que qualquer pessoa que se volte para si mesmo e relembre a figura paterna ou a materna ou um episódio marcante da sua infância, pode fazer um livro igual, melhor ou um pouco pior, mas pode fazer um livro nesse tipo, nesse gênero. Agora, Pilatos eu acho muito difícil fazer porque precisa ter aquela dose de raiva que eu tive quando escrevi o livro e, ao mesmo tempo, aquela dose de felicidade que eu tinha na época. Eu era muito feliz naquele tempo. Eu fiz o livro em 1972 e vivi um período muito feliz que nunca mais se repetiu na minha vida.
Ivan Ângelo:
Por falar nisso, Cony, até agora você falou das coisas que te aborrecem, principalmente, tirando a cachorra e algumas outras coisas. Eu queria saber o que é que te diverte?
Carlos Heitor Cony:
Antes de mais nada, a política me diverte muito. A política me diverte. Eu, por exemplo, tive um professor, lá no seminário, que dizia: “Vocês devem preferir morrer a se banalizarem”. Não sejamos medíocres. Havia uma frase latina dos jesuítas, que dizia: “Ad maiorum actus”, que significa: “O homem nasceu para coisas grandes”. Não se pode banalizar. E na aula dele, ele só falava em Xenofonte, Sócrates, poetas, era uma coisa assim altamente não banal. Se esse professor hoje me visse escrevendo sobre o Hargreaves, sobre o Sarney, sobre o Bresser Pereira, esse professor ia dizer: “Mas você...”. Eu me divirto porque, já que eu não posso levar a sério. Há uma frase do [...], se não me engano, que diz: “Na impossibilidade de chorar, eu rio”. O certo seria eu estar chorando, mas eu não tinha canais lacrimais suficientes para chorar a vida toda, então sou obrigado a me divertir. Divirto-me muito com a política. Veja o caso da política brasileira, é uma arrumação eterna. Os personagens voltam, são recorrentes. Não há uma diretriz racional. Eu saí do Brasil para as férias e estavam falando na Pasta Rosa. Quando voltei, não estavam mais falando em Pasta Rosa. Rubem Braga uma vez saiu do Brasil e quando voltou o assunto era Hollywood sem filtro [risos]. Quer dizer, a vida pública é uma comédia.
Ivan Ângelo:
Sim, mas fora isso, cinema, viagens?
Carlos Heitor Cony:
Não, veja, eu já gostei mais de cinema.
Matinas Suzuki:
Você gosta dos filmes do Chaplin ?
Carlos Heitor Cony:
O Chaplin é outro equívoco, de acharem que eu sou chapliniano, muita gente me acusa de ser chapliniano. Não, eu estudei Chaplin porque no seminário havia um padre que passava o Chaplin quase todo feriado, então, eu fiquei vendo aquilo lá, mas no meio desse Chaplin tinha um clássico que era o Doutor Caligari, que eu vi várias vezes por causa disso, mas eu não gosto do Chaplin. Eu rio muito mais com o Gordo e o Magro, até mesmo com o Buster Keaton, do que com o Chaplin. Ele é um fato importante no cinema, eu fiz um livro dedicado a ele e fiz uma série no Jornal do Brasil, no suplemento dominical do Jornal do Brasil, sobre o Chaplin, que foi o ponto de partida para fazer o livro. Eu acho ele muito importante, mas não no cinema. Ele é importante na história do nosso século, mas não no cinema. Cinematograficamente, ele é nulo.
Bráulio Neto:
Você citou o Jerry Lewis e no final do livro você fala em Stanley Kubrick . Você acha que esse livro daria um bom filme?
Carlos Heitor Cony:
Não.
Bráulio Neto:
Não daria um bom filme?
Carlos Heitor Cony:
O Ruy Guerra me ligou de Lisboa, parece, não sei se está em Lisboa, em Paris, Madri. O Ruy Guerra disse que achou similitudes com o pai dele e queria fazer. Eu disse: “Não, então faça sobre o seu pai”. Porque é o caso da Marília Gabriela, ela teve a lembrança do pai dela. Não dá filme porque você, veja, no cinema, um dos erros, um dos equívocos que se formam a respeito de literatura é esse, é achar que um livro sendo bom, necessariamente, dará um filme. Não. Porque os filmes precisam de ação, de trama. E o meu livro não tem trama.
Bráulio Neto:
Você gosta de cinema brasileiro?
Carlos Heitor Cony:
Não, em princípio não.
Bráulio Neto:
Não gosta, não apontaria... Bom, você não gostaria de vê-lo filmado porque ele tem grandes histórias...
Carlos Heitor Cony:
[interrompendo] Eu tenho dois romances filmados e escrevi três ou quatro roteiros para cinema. Inclusive um muito bom, aqui, passado em São Paulo, mas eu não posso nem dizer o nome porque é pornochanchada [risos].
José Trajano:
E seu lado jornalista? Nós já falamos do cronista, do escritor, do repórter, antes do programa nós estávamos brincando aqui, falando de Dana de Tefé o [...], aquele redator de legendas de carnaval da revista Fatos e Fotos... E esse seu lado jornalista?
Carlos Heitor Cony:
O jornalista é um sujeito aberto ao que acontece. Eu já fiz romance pornográfico e estou, hoje, editando a Bíblia [risos]. Vai sair quarta-feira o trabalho de um ano: a Bíblia Sagrada, o Novo Testamento, na Manchete , com o apoio cultural do governo de Minas Gerais, texto da Vozes, de Petrópolis, com a equipe de traduções. Eu fiz ilustrações com a renascença italiana, depois botei o barroco mineiro, quer dizer, passei um ano trabalhando em cima do Novo Testamento. Sou doutor em Novo Testamento, agora, mas se você me pedir um texto sobre [...] , a finada [...] , eu faço sim. O jornalista é isso, atua em todas as posições como jornalista. Eu me orgulho muito de ser jornalista, nesse ponto. Acho que jornalista tem que ter essa disponibilidade para isso. Não acredito que o jornalista seja aquilo que Petrônio seria, o jornalista não é um árbitro, o jornalista é um servo da sociedade.
Matinas Suzuki:
Cony, você com a formação de seminário e agora editando a Bíblia, essa coisa toda, o que você tem achado desta questão religiosa hoje no Brasil, que é uma das questões nacionais, também?
Carlos Heitor Cony:
Eu acho um pouco de exagero você falar que é uma questão religiosa. Uma questão religiosa...
Matinas Suzuki:
[interrompendo] Fui generoso com o termo.
Carlos Heitor Cony:
Questão religiosa é a reforma de Lutero, a questão religiosa que houve no fim do Império que provocou a República, foi uma das causas que provocou a República. Há uma briga por uma fatia. Evidentemente, o bispo Macedo, você deve estar se referindo a ele, ele parece, tudo indica, que deve ser um vigarista, tudo mais, mas se você for analisar as origens de todas as religiões, os fundadores foram considerados vigaristas, foram perseguidos, foram maltratados. São Paulo, por exemplo, foi preso seis vezes, naufragou outras tantas e foi condenado à morte porque alegou, evidentemente, o fato de ser cidadão romano, de ter cidadania romana, e não foi crucificado como os outros, mas, foi decapitado como um bom cidadão romano. E o próprio Cristo, na medida que Cristo contrariou o judaísmo oficial, na medida que o judaísmo colocou Pilatos diante daquela alternativa: “Ele se diz César, ele se diz rei, logo ele é contra César”, então Pilatos diz: “Aqui, eu posso cair”. Era, até então, uma briga política, religiosa entre judeus e não judeus, ou seja, aquela seita nascente que era o cristianismo, mas quando Pilatos viu esse argumento, disse: “Eu vou perder meu emprego” e mandou Cristo para o calvário. Não estou comparando, mas é uma tradição de todo fundador de religião ser perseguido, ser tido como vigarista, de fazer milagres, explorar os pobres, explorar a boa fé e, sobretudo, contrariar o establishment. O establishment político, religioso e econômico. Não quero dizer, com isso, que o bispo Macedo faça tudo isso, mas é uma coisa que não se pode também...O bicho que vai dar, não sei. Perdão agora a minha imodéstia, mas assim como a Mila provocou uma reação de cartas muito grandes, no mês que morreu a Mila eu acho que fui o jornalista que recebeu o maior número de cartas do Brasil porque era impressionante as cartas que eu recebia, fotos, o diabo a quatro. Mostra o quê? Mostra a carência nacional. E, evidentemente, no caso do bispo, numa era de neoliberalismo, em que as pessoas acham que os que podem, podem e os que não podem se sacodem, um camarada que faz milagre, promete curar, tira o demônio, tem um público. Então, ele não é causa, ele é mais efeito.
Matinas Suzuki:
Você tem criticado, também, bastante uma outra religião do Brasil que é a Rede Globo. Qual é sua posição sobre a Rede Globo, o Roberto Marinho, essa coisa toda?
Carlos Heitor Cony:
Antes de mais nada, o Roberto Marinho é um grande profissional. Eu me lembro, por exemplo, de um depoimento do Adolfo Bloch, sobre o Roberto Marinho. Na época das vacas magras, o Roberto Marinho chegava ao jornal às seis horas da manhã, saía às 10 horas da noite, comia de marmita. Foi assim que ele substituiu o pai. Esse homem não pode se jogar no lixo. Ele substituiu o pai, que fundou O Globo e morreu 27 dias depois. E o Roberto Marinho, ainda um garoto praticamente, ninguém sabia quem era Roberto Marinho, ainda não se tinha inventado Roberto Marinho. Ele, realmente, criou um império. O que se critica na Globo é que ela, por uma questão de gravidade, ela sempre se colocou ao lado do governo, independente de que governo foi. Ela pactuou, ela foi... Não vou dizer que tenha sido inspiradora, mas ela foi cúmplice de todo um regime totalitário, de repressão, que sofremos durante 21 anos, mas eu não posso dizer que é uma culpa pessoal do doutor Roberto Marinho. Ele é um homem que foi levado a isso por uma motivação, talvez, até empresarial, ou seja, neoliberal. Ele é um grande neoliberal. Faz muito boa dupla com o Collor, fez uma dupla muito boa com o Collor no início, não vamos esquecer isso: Do caso da edição do último programa do Lula com o Collor, caso do Collor chegando de uma viagem do exterior , tomando banho na piscina do Roberto Marinho, o Roberto Marinho fotografando o Collor, com crédito na foto: “Foto: Roberto Marinho”, tudo perfeito. E hoje é cúmplice do senhor Fernando Henrique e tudo mais. Se der certo, ótimo, honra e louvor para ele, se der errado, ele muda de lado. Muda de lado em favor do vencedor. Não faz meu gênero, evidentemente.
Luciana Villas Boas:
Você acha que a cultura brasileira está em crise ou está muito vigorosa? Porque a gente está vivendo um período tão estranho, tão ambíguo...
Carlos Heitor Cony:
Você fala cultura, Luciana, de uma maneira muito radical. A cultura brasileira eu acho muito boa. Hoje em dia a gente encontra, a começar pela imprensa, hoje em dia o nível do elemento da imprensa é a mais inquietação. Antigamente, talvez, existissem mais especialistas. Havia uma cultura geral humanística que está faltando hoje nos colégios, isso, sim. No meu tempo, o camarada ia ser advogado, jornalista ou médico e parava de estudar. Hoje em dia, não, hoje em dia há uma inquietação. Eu tenho a impressão que na classe média, sobretudo, há uma supervalorização da cultura.
Luciana Villas Boas:
E a nossa produção em artes, você acha que está rica? Porque é engraçado, às vezes você encontra pessoas brilhantes com posições totalmente opostas. É um período muito difícil de analisar, este que a gente está vivendo.
Carlos Heitor Cony:
Bom, aí você fala sobre arte. Eu acho que a arte está sempre em decadência. Eu acho que a arte é aquela questão do decadentismo que o Marcelo Coelho falou. É preciso ver que a arte nunca será uma causa, ela é sempre um efeito. Ela é o efeito de uma época contraditória, que tem muita coisa no ar. O século XX está acabando, foi um século que balançou muita coisa, balançou certezas, dúvidas. Tivemos o século do socialismo, do nazismo, da bomba atômica, do computador. Foram coisas muito importantes que aconteceram para bagunçar. Em décadas, nós balançamos séculos. O mundo que eu vivi, que eu nasci, foi completamente diferente do mundo de hoje. Há uma precipitação histórica muito grande. Então, os nossos valores ficam meio embaralhados, mas eu acredito que haja, devido sobretudo à técnica que consegue divulgar os conhecimentos, que há, digamos assim, uma preocupação maior pela arte, pelo fato artístico. Não quer dizer que a qualidade da arte tenha melhorado. Eu não acredito, por exemplo, que tenha aparecido um músico melhor do que Beethoven, até hoje. Não acredito. E não acredito, também, que haja um compositor popular melhor que Ari Barroso até hoje.
Humberto Werneck:
Que autores brasileiros você lê? Autores brasileiros contemporâneos de ficção ou de poesia? Você costuma ler, o que você destaca?
Carlos Heitor Cony:
Não, eu sou péssimo leitor de literatura brasileira. Eu só fui ler literatura brasileira quando escrevi o meu primeiro livro. Meu editor disse assim, perguntou: “Você leu o Jorge Amado?”. Eu nunca tinha lido Jorge Amado. Eu tinha lido Machado de Assis, Manoel Antônio de Almeida e Lima Barreto, que é a minha trindade pessoal. Esses três eu tinha lido, mas, nunca tinha lido Jorge Amado, nunca li Graciliano Ramos.
Matinas Suzuki:
Cony, você fala nessa trindade sua e fala numa espécie de romance carioca que você gostaria de seguir. É possível, hoje, do Rio de Janeiro, escrever retratando o Brasil?
Carlos Heitor Cony:
Até certo ponto, sim. O Rio de Janeiro é um caldeirão que reflete mais o Brasil, nesse ponto, do que São Paulo. São Paulo, nesse ponto, é tudo especial. Para você ter uma idéia, o português chegou em Santos, um Anchieta que era um homem genial, resolveu fazer a capital depois da serra. Já tornou São Paulo diferente do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, não, o Rio foi ali, engatinhando, é o caranguejo que vai explorando as coisas. O Rio de Janeiro é todo errado por causa disso. E, depois, o Rio de Janeiro é um pântano, é o pior lugar para fazer uma cidade. Não era possível fazer. Se houvesse o computador para fazer uma revisão, o Rio de Janeiro receberia uma bomba atômica porque está tudo errado. É muito bonito, mas justamente por isso está tudo errado. São Paulo está mais certo, nesse ponto. Agora, é um caldeirão muito grande, é um caldeirão que representa, talvez, o brasileiro médio. A cabeça do brasileiro ainda é muito condicionada, contra ou a favor, pela mentalidade formada pelo Rio de Janeiro, porque, no fundo, o Rio de Janeiro foi um laboratório, pelo menos durante dois séculos em que ele foi capital da República, o Rio de Janeiro foi um laboratório onde todas as experiências foram feitas e se espalharam por lá. É um exemplo que o Nelson Rodrigues gostava muito de dar, quando o Moreira César morreu em Canudos, houve uma guerra na rua do Ouvidor. O que é que aquilo tem a ver com as calças? Quer dizer, um fato que aconteceu em Canudos repercutiu na rua do Ouvidor. Morreu mais gente na rua do Ouvidor do que em Canudos, nesse dia. Quer dizer, isso é uma coisa típica do Rio de Janeiro e que ainda permanece, até certo ponto. Essa violência do Rio de Janeiro é uma violência nacional que se destaca no Rio de Janeiro porque o Rio é o palco, tem mais luzes, tem mais infra-estrutura para a violência. É preciso ver que o Rio de Janeiro tem uma infra-estrutura para a violência. É a cidade mais violenta do Brasil, mas lá tudo é o Brasil, é o microscópio do Brasil.
Marcelo Coelho:
Cony, vou voltar ao JK. Você acha que Brasília, afinal, fez bem ou fez mal para o país?
Carlos Heitor Cony:
Eu vou expressar a minha opinião. Eu acho que Brasília, em princípio, fez mal. Não quer dizer que o Rio de Janeiro devesse ser a capital. Eu, como carioca, o fato do Rio de Janeiro ser capital, sempre prejudicou. O governo federal foi um hóspede horrível para o Rio de Janeiro, era um feudo do governo federal. Os melhores cargos, as melhores posições, as melhores casas, isso desde o tempo da Corte de Dom João VI. Quando a Corte chegou ao Rio de Janeiro, expulsou os burgueses cariocas das boas casas para instalar a Corte portuguesa. Então, o vigário brasileiro foi expulso para dar o melhor púlpito da cidade a um padre português. E o oficial, o cortesão e tudo mais. Desde aquela época o Rio de Janeiro foi, digamos assim, a cozinha do governo federal. Então, seria ótimo o Rio de Janeiro perder a condição de capital da República, mas, como estado da Guanabara seria ótimo. O melhor período da história do Rio de Janeiro foi do estado da Guanabara...
Marcelo Coelho:
Você acha que parte da crise atual do Rio se deve ao processo da fusão [dos dois estados]?
Carlos Heitor Cony:
Isso, Marcelo, no caso do Rio de Janeiro específico. A fusão prejudicou o Rio de Janeiro mortalmente. Agora, a capital me parece que foi feita de forma atabalhoada. Discordo do plano piloto do Lúcio Costa. Respeito muito o Lúcio Costa, uma pessoa admirável, um passarinho, uma das pessoas mais geniais que eu conheci na minha vida, mas eu acho que é uma cidade muito inumana e, sobretudo, ela não correspondeu àquilo que se queria, que era ser uma cidade de qualidade de vida boa e onde os acontecimentos nacionais pudessem ser analisados com calma. Juscelino sempre dizia: “Aqui [no Rio de Janeiro] nós não podemos governar porque tem o Chateaubriand, tem o Roberto Marinho, o Orlando Dantas”. E perto do Rio de Janeiro tinha os Mesquita de São Paulo, o Casper Líbero. Então ele achava, o Juscelino, que indo para o interior, ninguém iria se incomodar. Eu acho que lá eles ficaram até mais reféns de um poder muito mais deletério do que o que estava aqui no Rio de Janeiro. Eu acho que Brasília, nesse ponto, foi mal colocada e mal administrada. Agora, evidentemente, no livro do JK eu fui obrigado a defender Brasília porque eu não estava defendendo o meu ponto de vista, estava defendendo o ponto de vista do JK.
Bráulio Neto:
Cony, eu queria voltar para o aspecto pessoal. Uma coisa que eu fiquei curiosa lendo o livro. Você foi casado quantas vezes?
Carlos Heitor Cony:
Eu estou casado há 20 anos. Meu último casamento dura 20 anos, mas fui casado várias vezes, realmente.
Bráulio Neto:
Você tem filhos?
Carlos Heitor Cony:
Tenho, tenho três.
Bráulio Neto:
Tem uma frase no livro que me chamou muita a atenção, que é a seguinte: “Ninguém é grande em sua casa”. Qual é a imagem que você acha que seus filhos têm de você?
Carlos Heitor Cony:
Eu acho que é uma imagem péssima [risos]. Eu acho que é uma imagem péssima. Não estou falando isso aí para o programa. Não sou um bom pai por diversos fatores, é uma pergunta muito pessoal. Gostaria de ser um pai diferente. Gostaria de ser o pai que meu pai foi.
Luciana Villas Boas:
Você acha que o jornalismo está pegando pesado na invasão da vida privada das pessoas?
Carlos Heitor Cony:
Está pegando. É um dos, não vou dizer a palavra vício, mas eu acho que é um dos erros que vai levar o jornalismo a uma exaustão. O pessoal hoje já não quer mais saber se... que ir até o fundo da questão. Hoje, por acaso, estávamos discutindo sobre uma pessoa em certa evidência aí, se ela não era sapatona. Então, todo mundo sabe que é , mas não bastava isso, queriam a fotografia das duas na cama. Só isso poderia satisfazer a sede de informação, o direito de informação que o povo tem de saber. É uma forma deteriorada, é uma forma perversa de ver a realidade. Já não basta a gente saber que fulano é sapatão, que fulano não é, entendeu, que eu sou casado várias vezes, que fulano é ladrão, quer saber tudo, é uma forma de necrofilia. Ou então de cropofilia, para usar uma palavra que o Roberto Campos usou no outro dia. Cropofilia, comer coisas podres.
Matinas Suzuki:
Já que estamos falando de invasão de privacidade, se você me permitir, eu gostaria de saber se você confirma ou não um episódio que o Paulo Francis relata no prefácio do livro do Antônio Maria, que você era tão famoso nos anos de 1960 que o Antônio Maria teria passado por você em São Paulo, essa coisa toda. Essa história é verdadeira? Será que você poderia recontá-la para nós?
Carlos Heitor Cony:
Eu estava no Correio da Manhã e o Antônio Maria escrevia no Última Hora. Escrevia em outro jornal, me parece, acho que era o Última Hora. E nós nos pegávamos volta e meia. E eu fui fazer uma entrevista e o Antônio Maria estava dando em cima de uma mulher muito bonita, uma pianista muito bonita, casada com outro pianista, já falecido, e deu em cima da mulher desvairadamente. A mulher não queria nada com o Antônio Maria. Tanto que ele também estava dando em cima da Danuza Leão para ver o bicho que sobrava [risos]. A moça deu entrevista para mim, saiu no Correio da Manhã, primeira página do segundo caderno, entrevista grande, uma mulher linda e tal, pianista, toquei piano com ela. O Antônio Maria ficou com raiva de mim e começou, então, a fazer uma porção de picardias comigo, que eu respondia também. Até que um dia ele me ligou e disse: “Você broxou” [risos]. Ele contou essa história que o Paulo Francis narra, não só o Paulo Francis, muita gente já narrou essa história: Ele foi ao avião, estava no avião indo para São Paulo, e tinha uma mulher lendo o meu livro, uma mulher muito bonita, e ele se apresentou como eu. “Muito obrigado por estar lendo o meu livro”. “Ah, é você?” “Sou, sou eu mesmo” e deu em cima da mulher, foi, foi, foi, terminou indo para a cama com a mulher. Eu perguntei: “A mulher era boa, correspondeu?” E ele: “Não sei porque eu broxei, aliás, você broxou” [risos]. Essa história faz parte do anedotário do Paulo Francis. Eu também tenho histórias do Paulo Francis que posso contar, e um dia contarei.
Ruy Castro:
Agora, no começo do ano, a sua candidatura à Academia Brasileira de Letras foi lançada a sua revelia. Quer dizer, os seus amigos sabem que essa vaidade você não tem, certamente.
Carlos Heitor Cony:
Não, eu tenho muita vaidade.
Ruy Castro:
Não essa.
Carlos Heitor Cony:
Para você ver como eu sou vaidoso, porque eu sou vaidoso, eu não entro para a Academia [risos], mas, não, não posso falar mal da Academia, tenho amigos lá. O problema é que não faz meu gênero [Carlos Heitor Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 2000. Ocupa a cadeira de número 3, cujo patrono é Artur de Oliveira]. Tenho muitos amigos lá, gosto muito dela, respeito, mas não faz meu gênero. Como também não dou noite de autógrafos, você sabe disso. Publiquei vários livros, nunca dei uma noite de autógrafos. O que não quer dizer que eu não goste de vender livros, eu adoro. Se você tiver um milhão para me dar, pode me dar que eu aceito. Se um milhão não te faz falta, pode me dar que eu aceito, agora, não vou te pedir nunca um tostão. Então, não faço noite de autógrafos porque não vou pedir a um amigo para comprar um livro meu. Compra se quiser, lê se quiser. Eu não tenho cara suficiente para pedir um tostão a ninguém. Agora, se quiserem me dar um milhão, eu aceito. A Academia é a mesma coisa. Eu não vou pedir votos a ninguém. Eu não tenho condição de chegar para o Lira Tavares e pedir: “General, eu sou fulano de tal, escrevi um livro aqui, Quase memória, é muito bom, o Ruy Castro gosta muito dele, o Marcelo Coelho, o Bráulio...”, não posso fazer [risos], não tenho condição.
Bráulio Neto:
Mas você acha que numa Academia que tem espaço para o Sarney teria espaço, por exemplo, para um compositor como Chico Buarque, Caetano Veloso?
Carlos Heitor Cony:
Sim. Primeiro, que tanto o Caetano, os dois exemplos que você citou, tanto Caetano quanto Chico Buarque, são poetas excelentes. Eu acredito que na música popular brasileira você tem Noel Rosa, Orestes Barbosa, Chico Buarque e Caetano Veloso. São os melhores poetas da música popular brasileira, os quatro. Agora, se eles quiserem entrar, é um problema deles, eu jamais entraria. Se eu fosse William Sheakespeare, se eu fosse Goethe, eu não pediria para entrar na Academia, tranqüilamente. E não sou Goethe, imagina se fosse.
Luciana Villas Boas:
O Chico disse também que está fora dessa próxima disputa. Agora, Cony, você acabou não dizendo, você tem prazer no ato de escrever ou, como disse o Chico, eu acho que ele falou com muita graça, que detesta escrever. Ele gosta de ler depois e eu acho...
Carlos Heitor Cony:
Ao contrário, eu gosto de escrever, acho uma realização, todo o meu prazer é escrever. Uma das coisas que me dá mais prazer é escrever. Tanto que eu passei as minhas férias agora escrevendo, podendo fazer outra coisa, escrevi, tenho muito prazer. Eu não gosto é de ler.
Luciana Villas Boas:
Não fica lambendo a cria depois?
Carlos Heitor Cony:
Não.
Luciana Villas Boas:
Então, não é vaidoso.
Ivan Ângelo:
Você sempre escreve com a rapidez desse livro? Porque todos os livros que você falou foram escritos rápidos.
Carlos Heitor Cony:
Esse livro eu escrevi em 21 dias, mas o meu segundo livro, A verdade de cada dia [publicado em 1959], eu escrevi em 9 dias. Foi o seguinte: Eu tinha escrito o livro para um concurso e era inédito. Escrevi um livro chamado O ventre, que foi meu primeiro livro, mandei para um concurso da Academia e da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro. Era um prêmio conjunto, Prêmio Manoel Antônio de Almeida. Quando saiu o resultado, disseram assim: “O melhor livro que nós tivemos é O ventre, mas não podemos dar porque é uma casa oficial, um organismo oficial e não podemos publicar um livro pornográfico”. Esculhambou e não me deu o prêmio. Eu fui reclamar e disseram...
Humberto Werneck:
Quem era da comissão? Você se lembra da comissão julgadora?
Carlos Heitor Cony:
O Austregésilo de Athayde, Rachel de Queiroz. parece, e Antônio Olinto, parece, que era colunista do O Globo, nessa época. Me lembro que parece que foi feito pelo Austregésilo de Athayde, meu amigo, amigo de meu pai, citado, aliás, nesse livro. Ele não sabia que o livro era meu. Ele até me disse: “Se eu soubesse que o livro era teu, eu te dava o prêmio do livro” [risos]. Mas o fato é o seguinte: Eu fui lá reclamar e me disseram: “Se inscreve no ano que vem”. “No ano que vem? Tudo bem”, “Mas, tem uma coisa, as inscrições terminam daqui a uma semana”. Então, fui para casa e em 9 dias eu escrevi o segundo. Aí a comissão foi o Drummond, Callado e Rachel de Queiroz, foi a comissão que julgou. Aí eu ganhei o prêmio. No outro ano, ganhei de novo. Ganhei três vezes seguidas, quer dizer, ganhei duas vezes e aí que eu arranjei editor, o Ênio começou a editar meus livros, mas foi na base do concurso que começou.
Matinas Suzuki:
Cony, o Cláudio Gouveia, de Salvador, Bahia, e o José Lobato, aqui da Vila Mariana, em São Paulo, perguntam o que você acha se o Lula fosse presidente da República?
Carlos Heitor Cony:
Ele não faria muita coisa, não. Eu acho o PT completamente despreparado para o poder, completamente despreparado. O PT é o Partido Comunista sem os penduricalhos históricos do Partido Comunista. Eu acho que seria muito pior. Não quer dizer que o Lula não seja uma boa pessoa, é uma ótima pessoa, é uma ótima pessoa para bater um papo, fumar um charuto cubano. Gosto muito dele, respeito muito, acho um fenômeno, mas o PT não está preparado para ser poder. Não está preparado nem para ser oposição, Matinas, nem para ser oposição.
Matinas Suzuki:
Você vota, Cony?
Carlos Heitor Cony:
Voto, infelizmente [risos], mas sempre voto em candidatos que perdem. O único candidato que eu acho que elegi foi o Ari Barroso, em 1947, vereador do Rio de Janeiro. Ari Barroso foi candidato a vereador do Rio de Janeiro em 1947. Eu gostava muito da música dele, votei nele e ele foi eleito. Foi, talvez, o único candidato que eu emplaquei até hoje.
Humberto Werneck:
Nas últimas eleições, por exemplo, presidenciais, você votou em quem?
Carlos Heitor Cony:
Eu votei, eu acho que votei no... Ah, Brizola! Votei no Brizola, que era o que tinha menos chance, não é? Era o que tinha menos chance.
Luciana Villas Boas:
E no segundo turno, votou no Lula?
Carlos Heitor Cony:
Segundo turno eu votei em branco. Eu acho o Lula um fenômeno, mas do PT eu tenho muito medo. Eu acho o PT despreparado.
Luciana Villas Boas:
Então fala um pouco do Brizola.
Carlos Heitor Cony:
Bom, Brizola é um louco. O Brizola é o seguinte: Eu participei, ele me convidou para fazer... Um dos últimos programas do partido dele [PDT – Partido Democrático Trabalhista], quando ele estava para deixar o governo já, ele me convidou para fazer uma pergunta a ele. A pergunta que eu fiz agradou muito a ele, mas desagradou muito ao partido, que foi o seguinte: É que eu notei no Brizola, que ele tinha deixado de ser o político, tinha abandonado o palanque e adotado o púlpito. Ele ficou com uma idéia meio messiânica, ele virou messiânico. Ele estava mais preocupado em ser, assim, um reformador religioso do que propriamente um político. E deixou rolar uma péssima administração, deixou rolar uma série de coisas não bem explicadas até hoje, que nós estamos herdando, mas ele, pessoalmente, queria botar uma roupa branca, uma cruz e ir pregando tranqüilidade, pregando fraternidade, pregando educação. O que me faz votar no Brizola, primeiro é uma fidelidade. Muita gente vota no Brizola há muito tempo: Darcy Ribeiro, Oscar Niemeyer, Antônio Callado, Luís Carlos Prestes, temos um grupo de pessoas que não são exatamente porra-loucas e que votam no Brizola porque reconhecem nele um histórico, um passado que falta a outros, ou melhor, os outros têm passado, mas traíram o passado. O Brizola não, sempre foi aquele mesmo. O programa de educação integral dele, mal aplicado, que afinal entrou um pouco de vaidade dele e do Darcy Ribeiro, disputando, quando a idéia básica não é deles, é do Anísio Teixeira, que foi preso na época por ser comunista porque a idéia era comunista. A educação integral é, me parece, o toque de pedra, é toque de qualidade que pode, no meu entender, resolver o problema nacional do Brasil como um projeto nacional. O que falta ao Brasil é a educação. Confunde-se, no Brasil, educação com ensino. Bota-se um aluno numa sala de aula três horas por dia, ensina-se os rios da margem esquerda do Amazonas, da margem direita, as capitais da Europa, Viena, a capital da Áustria etc, manda-se essa criança para casa, onde não tem comida, onde não tem pai, onde não tem mãe, onde vê a irmã trepando com o irmão porque tudo é promiscuidade. Então, essa criança sabe vagamente que a Áustria tem uma capital chamada Viena, mas o que ela aprende na vida real é muito maior. Porque falta uma estrutura nacional de educação para a criança. A educação integral do Anísio Teixeira, não do Brizola, nem do Darcy Ribeiro, do Anísio Teixeira, o que era? Era sacrificar toda uma geração para investir na educação. Eu me lembro do exemplo que o Anísio Teixeira dava, muito interessante, que era o seguinte: Os judeus que vieram da Europa por ocasião das primeiras perseguições na Rússia, na Polônia e, sobretudo, na Alemanha, deixavam lá suas casas, suas indústrias, pequenos comércios, as suas poupanças, suas bibliotecas, suas universidades e vinham tentar a vida no novo mundo: Argentina e o Brasil. O que eles faziam ao chegar aqui? Eram homens na faixa dos 40, 42, 45 anos, enfim, toda a vida pela frente ainda e já tinham um patrimônio, tinham um passado, mas tinham filhos. O que eles faziam? Iam bater no subúrbio vendendo jóias. Por quê? Porque eles precisavam de dinheiro para investir nos filhos. Então, formaram toda uma geração de doutores. Se você pegar a segunda geração de judeus dessa gente, é advogado, médico, engenheiro, professor, profissionais liberais e grandes comerciantes. Então, houve um sacrifício, é uma coisa que está imbuída na alma judaica, diversos acidentes históricos que sofreram através dos tempos e, quando viam o negócio perigar, a primeira coisa que eles fazem é: “Nós estamos perdidos, realmente perdidos... vamos salvar o que podemos salvar”. O quê? Os filhos. Salvar como? Só por um intermédio: educação. Então, é aquele troço, pega a criança, bota dentro de uma lata de margarina, bota concreto em cima para prender a criança e bota o violino [risos]. Passa trinta anos tocando o violino e não pode sair porque se sair, ela cai, mas, sai um violinista, sai um expert.
Matinas Suzuki:
Cony, infelizmente, o nosso tempo acabou. Tem dois recados aqui dos telespectadores. A senhora Carmita, filha da dona Nita, sua vizinha na rua Cabuçu, pede para você ligar para ela [risos] e deixa aqui o telefone. E o Francisco de Assis Furtado, que diz que leu o seu livro em 1964 escondido no seminário, pergunta: “Se você fosse hoje mandar uma mensagem ao crucificado, qual seria essa mensagem?”
Carlos Heitor Cony:
É difícil. A mesma mensagem que eu mandei em 1964. Um sacrifício inútil.
Matinas Suzuki:
Cony, muito obrigado pela sua presença no Roda Viva esta noite. Eu agradeço bastante à nossa bancada de entrevistadores, agradeço as perguntas que foram muitas e eu as encaminharei ao Cony. Agradeço a sua atenção e lembro que o Roda Viva volta na próxima segunda-feira, às dez e meia da noite. Até lá, uma boa noite e uma boa semana para todos.
|