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Grandes entrevistas

José Saramago

Entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 07/09/1992, sob o comando de Rodolfo Konder, com a participação de Luiz Antonio Giron, Hamilton dos Santos, Edla Van Steen, Fábio Lucas, Ivan Ângelo e Jayme Martins.

José Saramago: Não professor, apenas...

Rodolfo Konder: Para nós o senhor será sempre um professor.

José Saramago: Não ganho, nem perco com isso. [simpático]

Rodolfo Konder: Então está bem. Eu vou abrir falando um pouco das comemorações da independência do Brasil. O Brasil está vivendo um período de comemorações da independência. Mas, ao mesmo tempo, há uma preocupação muito grande com a reaproximação com Portugal, tanto no plano econômico, quanto no plano cultural. Estamos vivendo uma nova época. Os valores da independência estão sendo substituídos pelos valores da “interdependência”?

José Saramago: É assim? Aqui? É assim aqui e é assim, de uma certa maneira, em toda parte. A questão que penso, que se deve pôr, é se junto a essas questões, dependência e independência, se devemos juntar, digamos, essa outra, de valores, quer dizer, eu compreendo esse sentido do colega dizer valores da interdependência, mas começo a ter algumas dúvidas se isso fala de valores da dependência. Suponho que a dependência, qualquer que ela seja, embora é realmente verdade que neste mundo global em que nós vivemos já há uma interdependência mútua, mas o que acontece é que em casos como esse, mesmo que essa interdependência pareça, ou devesse ser, digamos, entre iguais, porque uma verdadeira e bem entendida interdependência deveria ser entre iguais, que dependessem um do outro, mas que dependessem igualmente, quando, enfim, quando nós sabemos que não é isso que se passa, quer dizer, nesse mundo de interdependências há uns que são mais dependentes do que outros. Então, estamos cá em saber em que grau que se coloca esse grau de dependência, quer o Brasil, que estamos aqui a falar, quer o meu próprio país, que em matéria de dependência, haveria muita coisa a que se dizer.  O que eu duvido é que se possa falar em valores de dependência. Valores de interdependência penso que sim, mas sob condição de que a relação seja entre iguais, tanto quanto possível.

Edla Van Steen: Eu vou fazer uma pergunta literária para você, que é a minha área. Eu sei que você é poeta...

José Saramago: Já fui, já fui...

Edla Van Steen: Já foi poeta. Você precisa me explicar como é que é isso de dizer que deixou de ser poeta?

José Saramago: Não, deixei de fazer versos... [risos]

Edla Van Steen: Ah, só nesse sentido?

José Saramago: Pode-se dizer que sim.

Edla Van Steen: Eu acho que o Brasil ainda não descobriu que você é um ótimo autor de teatro. Você tem três peças publicadas. O que eu queria saber é em que momento você escolhe o gênero, que você decide o gênero daquilo que você vai escrever?

José Saramago: Vamos ver. O teatro no meu trabalho foi, e continua sendo, de certo modo, algo que depende das solicitações exteriores. Eu creio, estou convencido disso, e olhando para trás posso comprovar, que nunca, de modo próprio, por um movimento meu, eu iria escrever uma peça de teatro. Sempre aconteceu que alguém me pediu. E a primeira vez que me pediram, eu disse: “isso é um disparate, eu nunca fiz teatro, não sei”. Mas esses pedidos, esses pequenos desafios, levam a pessoa a colocar-se, efetivamente a questão: serás capaz ou não serás capaz? E assim fiz a primeira peça de teatro...

Edla Van Steen: Eu acho que a maioria dos autores...

José Saramago: Eu penso que sim. Digamos, enfim, é realmente isso que se sucede, na verdade é que mesmo quando esses desafios não nos vêm de fora, temos que, digamos, temos que estabelecê-los dentro de nós próprios. Depois dessa primeira peça, veio uma outra...

Edla Van Steen: Foi A Noite, não?

José Saramago: Foi A Noite, que se passa na redação de um jornal, para isso eu aproveitei um pouco a minha própria experiência jornalística, que se passa na redação de um jornal na noite de 24 para 25 de abril. E depois fiz uma outra que, digamos, foi na mesma linha de continuidade, que o Camões é meu personagem e, mais tarde, anos depois, fiz uma outra peça que se chama A Segunda Vida de Francisco de Assis. Não de São Francisco de Assis, do Francisco de Assis, que mostra uma vez mais que, sendo eu, não crente, e mesmo – a palavra clara é ateu – não sei porque, mais ou menos, me acho envolvido em questões que têm sempre a ver com religião. E a prova é que agora mesmo, e já que se falou em teatro, estou a escrever uma peça sobre os anabatistas, do século XVI, dos grandes conflitos, das guerras religiosas dessa época, na cidade de Münster, qual peça servirá de base para um livreto de uma ópera que se representará, já está decidido que se representará...

Edla Van Steen: Aliás, foi um sucesso fantástico Blimunda no Scala, de Milão?

José Saramago: É, eu não fui muito tido nem muito achado, porque a adaptação foi feita pelo próprio Aziu Corghi, que é o músico, a tradução foi feita a partir do próprio livro, pela Rita Desti, aliás uma magnífica tradutora. E, portanto, tenho alguma experiência teatral e, agora, também prática...

Edla Van Steen: Mas, você não vai escrever um libreto, então?

José Saramago: Não... quer dizer, que não resulta de apetites meus, mas de coisas que me vem, digamos, um pouco de fora. A questão é saber se o faço de uma maneira aceitável ou não. Creio que sim, senão não tinha continuado.

Edla Van Steen: É sempre um desafio pegar um novo gênero?

José Saramago: É, de uma certa maneira. Eu acho que nós somos capazes de fazer tudo. O que acontece que há coisas que fazemos melhor. Portanto, a questão é essa.

Edla Van Steen: Você acha que no romance é melhor?

José Saramago: Assim, com verdadeira ou falsa modéstia, acho que sim.

Fábio Lucas: O que eu tenho notado na sua obra, em grande parte, é um grande diálogo com a literatura de modo geral. E muitas das suas personagens já nascem com a sua certidão de nascimento anteriormente passada por outros cartórios. Assim, o Ricardo Reis é uma personagem, é um heterônimo do Fernando Pessoa, Jesus Cristo é uma personagem de uma civilização, e assim como Camões é uma personagem da história literária. Essa escolha é, talvez, uma estratégia para dialogar com a cultura?

José Saramago: Não, eu não poria a questão em termos de estratégia. A estratégia implica numa reflexão anterior, numa decisão: vou fazer isso, por estas e aquelas razões. Eu creio que não, que não se trata disso. Trata-se, talvez, da consciência muito clara, enfim, muito viva, que no fundo no fundo, nós somos feitos de papel. Quer dizer, cada um de nós é muito mais feito de papel do que de carne e osso. E digo que somos feitos de papel porque somos feitos das leituras que fizemos. Então, parece-me um erro, de certa maneira, parece-me um erro dividir, digamos, a vida entre o que é realidade, o que chamamos de realidade – as pessoas que estão por aí, nós próprios aqui todos juntos – e esse outro universo feito de palavras, de personagens, de livros, de páginas. Tudo isso, no fundo, tem, às vezes tem, creio que tem, eu diria que tem sempre, ou pelo menos tem mais fortemente em muitos casos, tem mais influência em nós do que a própria realidade, isso que chamamos de realidade. Portanto, se nos meus livros de fato há o apelo constante a esses seres de papel, para encontrar outros seres de papel, outros, em primeiro lugar o autor, e depois outros seres de papel, que são os leitores, é por uma razão muito simples: é que eu não separo isso a que chamamos de realidade dessa outra realidade fictícia, que é da imaginação, que é da invenção, e a ambas eu vejo embrechadas uma na outra. Portanto, quando vem um Ricardo Reis, vem um Ricardo Reis por razões que também são, muito, da minha própria realidade. Quando eu encontro, eu descubro o Fernando Pessoa, não é o Fernando Pessoa que eu descubro quando tinha 18 anos, é o Ricardo Reis. E durante alguns meses, como eu não sabia da existência do Fernando Pessoa, o Ricardo Reis foi, para mim, um poeta real, de carne e osso. Foi mais tarde que eu soube que não era mais que um heterônimo. Então, toda esta, digamos, todo este imbricamento entre o que é fictício e o que é real, julgo eu, é o que passa pelos meus livros.

Fábio Lucas: Mas outra coisa que também me ocorre, talvez seja pelo princípio dialético, é que sendo a sua formação no materialismo histórico, a sua dedicação é muito grande a personagens, ou personalidades ou mitos que, justamente, se opõem a essa formação. Por exemplo, é muito instigante a presença de Fernando Pessoa em quase toda a sua obra, ele faz pontas várias vezes no seu texto narrativo. E, assim também o próprio Cristo. Esse romance que criou tanta celeuma, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, ele, na verdade, para grande parte dos leitores, ele oferece um corte, digamos, de um lado, Deus, que seria a representação da civilização judaico-cristã, e de outro lado o Cristo humanizado, portanto sacudido pelas paixões humanas, inclusive fortemente sacudido pela paixão amorosa. Mas, nessa sistemática – mesmo porque o Cristo tem, durante a permanência do seu romance, uma grande intimidade com o demônio, que seria a encarnação dessas paixões humanas, ele levava Cristo também a cometer os seus pecados – mas o que me admira e eu queria a sua explicação sobre isso, é essa sedução pelas personagens, digamos, que não estariam dentro da canônica do materialismo dialético.
 
Roberto Pompeu de Toledo: Posso acrescentar uma coisa? O Saramago é, notoriamente, um materialista histórico que tem visões [risos]. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é produto de uma visão. Ele escreve sobre Jesus Cristo, e colocou fantasmas junto.

José Saramago: Vamos ser mais objetivos, O Evangelho Segundo Jesus Cristo é produto de uma ilusão de ótica. É produto de uma circunstância, infeliz claro, circunstância essa que é a miopia do autor. Se eu tivesse uns olhos sãos, eu teria visto aquilo que lá estava e nada mais. Então, quando muito, pode trazer, enfim, uma proposta da vantagem da miopia para a criação. Isso sim. Mas o que eu quero dizer em resposta à questão que foi posta por Fábio Lucas, é que eu realmente sou materialista. Mas, ainda que míope, não sou cego. E o ponto de vista em que eu me coloco, eu diria que parece um pouco com este lugar em que estamos, porque este lugar é circular. Isto aqui é um pouco claustrofóbico, digamos assim, mas eu imagino que estou numa sala como esta, num espaço como este, circular, mas com janelas a toda volta. Essa idéia de que o materialista canônico deveria estar focado numa janela só e ver apenas uma faixa da realidade circundante, seria de fato redutora. Digamos que eu, materialista, elegendo, eventualmente, uma das janelas, ou duas, ou três, não deixo de visitar, de freqüentar todas as outras janelas. Então, isso me permite tomar a figura de Cristo, que não é Cristo, Cristo naquele momento não é Cristo, é apenas Jesus, é apenas um homem, que tinha que viver todas as paixões dos homens, porque se não fosse para viver todas as paixões dos homens não valeria a pena que ele encarnasse, quer dizer, se não fosse para isso, ele mantinha-se como espírito, e como espírito teria que resolver aquilo que tinha que resolver. Mas, para sofrer, tinha que ser homem. E, para isso, encarna. Mas, tendo encarnado, não se limita a sofrer. Tem também o direito de chegar ao prazer, a sua própria imaginação. E é esse homem inteiro, tão inteiro quanto eu fui capaz de fazê-lo que está lá, e no fundo não tem nada a ver, ou tem a ver, que realmente é o fundador do cristianismo, mas eu tomo como homem que é, e penso que todos os fundadores, fossem o que fossem, sempre foram homens. Mesmo que depois estivessem divinizados ou idealizados, começam sendo, por ser aquilo que nós podemos ser, que é a única coisa que podemos ser: homens. A partir daí, é esse homem que me interessa e, sendo ele vítima – e se nós olharmos para os evangelhos, é esse sentimento que temos sempre – ele é conduzido, enfim, pela vontade política de Deus, que quer, como eu digo no meu evangelho, ou como tenho dito, quer ampliar a sua base social de apoio, quer deixar de ser um Deus de um pequeno povo, quer tornar-se universal, católico, e, portanto precisa, como sempre acontece em casos desses, de uma vítima. Escolhe a vítima que, ao que parece, é o seu próprio filho. E é este sentido do sacrifício humano – não é o sacrifício de um Deus, é o sacrifício do homem, mais uma vez, para servir interesses que, nesse caso, são de Deus, mas que poderiam ser, digamos, de outros homens, mais poderosos.

Fábio Lucas: Só mais uma coisa que me intriga. É em relação à política literária de um modo geral. É a situação do escritor português em frente ao escritor brasileiro. Ainda existe em nós, por herança cultural, muito interesse pelo que se faz em Portugal e a sua presença aqui é, não somente um retrato disso, como até um orgulho para nós termos, em língua portuguesa, um escritor do seu valor e da sua importância. Mas, os seus livros, as suas obras, estão permeadas dessas tensões Europa, América, Portugal, Brasil, essas tensões. O Jangada de Pedra é, talvez, o melhor símbolo disso. Ocorre agora um problema internacional. É que Portugal está sendo programado para aderir a um esquema de um mercado comum europeu, portanto está sendo programado para ser mais europeu do que americano, digamos assim. Como você considera esse estado permanente – eu tenho ouvido, de portugueses, queixas em relação à europeização de Portugal, ou a quebra ou a erosão de valores culturais tradicionais de Portugal. E, por outro lado, o que explica pouco também para mim é que há muito pouco interesse na camada de escritores portugueses pelo que se faz no Brasil, em termos de produção literária. Há referências, há remissões, mas dentro da geração moderna de escritores portugueses, eu acho que o único cuja obra, às vezes, dialoga com um ou outro escritor brasileiro é o Abelaira, e a sua obra que coloca, às vezes, o problema do Brasil, mais como instância cultural.

José Saramago: São muitas questões. Eu vou começar por isso da europeização de Portugal. Europeizar alguma coisa é torná-la parecida, semelhante à outra coisa. Europeizar significaria que Portugal se pareceria com a Europa, ou tornar-se-ia semelhante à Europa. Aqui, coloca-se a questão inevitável: que Europa? Qual Europa? Porque a Europa não existe, quer dizer, o europeu não tem sentido, quer dizer, é apenas o habitante de um espaço físico, é o habitante de uma geografia, seria a mesma coisa que dizer que, do ponto de vista de Marte, por exemplo, dizer fulano é terrestre, portanto, qualquer um de nós que vivemos aqui na Terra podemos ser designados assim, terrestres. Mas, isso não adianta nada, porque omite, esquece as diferenças que existem entre os terrestres. Dizer que Portugal se europeíza é esquecer a própria diversidade da Europa que está patente e cada vez mais patente, ao mesmo tempo em que por um lado se pretende unir a Europa, é óbvio, é evidente para toda a gente, que as pulsões das identidades locais, regionais, estão a ferver. E há casos gravíssimos, como é o caso, por exemplo, da Iugoslávia e outros casos, como o da antiga União Soviética, no interior de países que não tem nenhum dos problemas de identidade, parecem não ter, eu lembro, por exemplo, quando foram os Jogos Olímpicos, que apareciam cartazes em Barcelona que diziam “Liberdade para a Catalunha”, como se a Catalunha vivesse privada de liberdade, é um absurdo total e completo. Mas isso apenas significa que num momento em que a Terra se globaliza, que há essa tendência para unificar, para laminar, para esmagar, enfim, justamente, as diferenças, por uma espécie de instinto de sobrevivência, os grupos sociais, étnicos, religiosos, culturais de um modo geral, levantam-se isso. Isso em relação à questão da europeização. Com relação à outra questão, eu não sei de quem é a culpa. Nos anos 50, nos anos 60, os autores brasileiros não só eram conhecidos de grandes camadas de leitores, em Portugal, conhecidos, lidos, admirados, como exerciam influência, exerceram influência, em alguns casos, sobre os próprios escritores portugueses. A verdade é que não sei o que se passa entre nós que quando é possível encontrarmos, encontramos ao mesmo tempo todas as razões para continuarmos juntos, e depois nada disso, ou muito pouco disso, passa para o plano do trabalho em comum. E eu creio que aqui está justamente a grande questão. Enquanto Portugal e o Brasil, e agora também devíamos incluir aqui a África, digamos Angola, Moçambique, Cabo Verde, tudo isso, enquanto nós não encontrarmos maneiras de trabalhar em comum, qualquer tentativa de aproximação será sempre ou instrumentalizada, ou visando objetivos que não são exatamente, ou podem não ser, os da cultura, e esse caminho que nós ainda não encontramos, como trabalhar em comum. Porque no dia em que trabalharmos em comum o conhecimento vai mover-se num sentido e num outro sentido.

Hamilton dos Santos: No O Evangelho Segundo Jesus Cristo o senhor vai construindo a família do carpinteiro José quase que à semelhança de Charles Dickens. Fiquei, mais ou menos, com essa impressão. Ele é incompetente, como trabalhador, como carpinteiro e, de repente, o senhor resolve justamente salvá-lo dessa incompetência. É por que vieram à tona os seus princípios marxistas? O senhor estava indo longe demais com esse personagem?

José Saramago: Não, não tem nada a ver.

Luiz Antônio Giron: Ele se conscientiza, no seu romance? Dá essa impressão de que ele se conscientiza.

José Saramago: Vamos a ver. Aquilo que o leva a essa consciência nova não é exatamente a relação que ele tenha com a sua atividade profissional. Isto é, digamos, o que dá o pão. Digamos, a consciência dele é de fato, digamos, entra em crise e aquilo que o leva a essa crise, a esse sentimento, é a consciência da sua própria culpa. Quer dizer, não tem nada a ver com o fato dele ser carpinteiro. Podia ser o melhor carpinteiro deste mundo e podia ser genial, tudo isso, mas o que acontece, de fato, não está já nessa área, quer dizer, é o puro e simples homem que comete, no meu entender, que comete um crime por omissão. E aí, se ele é bom profissional ou se ele é mau profissional, não significa grande coisa e de resto há que entender, sendo Nazaré o que era, uma pequena vila, uma aldeia, uma pequena cidade, como se quiser, podemos imaginar que o lugar dos grandes profissionais, dos grandes carpinteiros, dos grandes pedreiros, dos grandes escultores, não era, com certeza, em Nazaré. Seria em Jerusalém, seria em Séfolos, seria onde, efetivamente, eram chamados para construir palácios e tudo mais. Ele não construía palácios. Ele era, digamos, o homem a quem a porta se vai bater para dizer “faz me aí o cabo de uma enxada”. Portanto...

Hamilton dos Santos: Mas ele passa no vestibular do contramestre para fazer o templo?

José Saramago: Como?

Hamilton dos Santos: Ele passa no vestibular do contramestre para construir, para ser um dos carpinteiros para construir o templo. O que eu perguntei é se não seria uma forma de inserir uma interpretação marxista?

José Saramago: Não, ele é carpinteiro de obra grossa, digamos assim. E aí aquilo que eu precisei tem muito mais a ver com uma estratégia de narrativa. Eu precisava fixá-lo em Jerusalém, porque se eu não o fixasse em Jerusalém, voltaria imediatamente para Nazaré e eu não tinha história que pudesse contar. Então, ele vai lá, aliás, não sabemos bem o que ele faz lá e isso era completamente diferente, a única coisa que sabemos é que aquilo que ele sabia podia ter serventia no templo, mas no templo não havia apenas grandes obras, havia, quer dizer, aplainar, digamos, uma tábua, qualquer carpinteiro, mesmo sem ser muito competente, faz. A consciência dele é outra. Esse é o problema que vem depois, com a crise moral, com a crise de consciência, o sentimento da culpa, o remorso e a responsabilidade. Portanto, não tem nada a ver com o meu marxismo, como se eu quisesse engrandecê-lo pela via, digamos, da profissão, e eu acho que se começamos a engrandecer as pessoas pela via das profissões, acabamos mal.

Roberto Pompeu de Toledo: Eu queria voltar aqui à questão da Europa, que diz respeito também à questão da independência, interdependência, lançada aqui de início. Nós todos sabemos que o Saramago é um crítico, pelo menos alguém que faz restrições sérias, a esse processo de europeização, enfim, de interdependência européia. Agora, o que, fundamentalmente, há de errado a seu ver nesse processo?

José Saramago: O que há de errado, a meu ver, nesse processo, fundamentalmente, é que ele começa e decorre à margem da vontade dos povos. Quer dizer, toda essa formação, toda essa criação de uma Europa unida, que começa, digamos, pelo aço e o carvão, pouco a pouco isso vai alargando, o Tratado de Roma, tudo isso, pouco a pouco vai ampliando os seus objetivos, até agora o Tratado de Maastrich, que, aliás, pouca gente conhece, digamos, o seu conteúdo, tendem a isso mesmo, a união política, financeira, econômica, o mercado livre, quer dizer, fazer da Europa uma coisa só. Que eu compreendo que seja possível e, quem sabe, mesmo desejável se chegar aí. Mas, penso que se deve chegar aí pela vontade dos povos. E não porque os governos, que singularmente, e isto é curioso, que singularmente, são bastante diferentes, que sejam governos conservadores, socialistas, neoliberais ou democratas cristãos onde quer que estejam, e podem mesmo suceder-se, agora é socialista e amanhã é conservador, todos estão de acordo com essa Europa. Eu penso que devemos nos interrogar se faz algum sentido que os governos que se declaram diferentes nas suas afirmações, nos seus programas, digamos, nas suas propagandas eleitorais, para depois, na prática, fazerem todos, independentemente daquilo que dizem ser, fazerem todos exatamente a mesma coisa. Porque o plano europeu não admite controvérsia, quer dizer, não admite uma controvérsia, ou admite uma controvérsia interna, mas não admite que se oponham aos sistemas econômicos, porque ele é um só e quem quer que o siga, quem quer que lá esteja, seja socialista, conservador, liberal, o que quer que seja, tem que servir àquele projeto. Portanto, é uma questão super estrutural, é uma questão de governos que decidem e os povos assistem. São milhões e milhões e milhões de pessoas que não tem informação suficiente sobre as razões, os objetivos e as conseqüências finais, mesmo que não sejam finais, nunca sabemos quais são as finais, as conseqüências futuras, imediatas desse projeto, as pessoas, o comum das pessoas, não sabem. Então, esse primeiro pecado, essa espécie de pecado original, do meu ponto de vista, é suficiente para que eu diga: “sim, mas?” Pelo menos eu digo: “sim, mas?”

Roberto Pompeu de Toledo: Mas essas pessoas elegeram esses governos.

José Saramago: Mas eles elegeram esses governos... eu dou um exemplo: o Partido Socialista Operário Espanhol fez em sua campanha, quando veio a assumir o poder, fez a sua campanha com base no "não à NATO”. Quer dizer, os votos obtidos, ou pelo menos muitos deles, foram também por essa razão. E quando o PSOE se achou instalado no governo, levou a população, com uma campanha com aspectos de manipulação, não digo manipulação, mas de pressão de voto, a votar na adesão à entrada na NATO. Portanto, acontece muitas vezes e, provavelmente, no Brasil também acontece, que os eleitores votam em pessoas que lhes prometeram algumas coisas e que depois os eleitores verificam que essas coisas não foram cumpridas. Isso não é só aqui, não é só no Brasil, é em todo o mundo. Então, nesse sentido, qualquer coisa que é feita, não direi contra a vontade, porque a vontade não foi expressa, mas foi feita na ignorância da vontade real dos povos.

Roberto Pompeu de Toledo: Como, em geral, acontece com as medidas de governo.

José Saramago: Quase sempre, quase sempre.

Rodolfo Konder: Você cita o caso da Espanha. Será que depois dos resultados conseguidos com a integração, os espanhóis votariam contra essa integração hoje?

José Saramago: São duas coisas diferentes. Quando da campanha eleitoral, que levou o PSOE ao governo, a questão da integração européia vinha longe. Nesse momento, na Espanha, não se falava, era mais a questão da entrada da Espanha na NATO. Isso, enfim, isso sim. Agora, se me perguntar, vamos dizer, você tem todas essas dúvidas sobre a legitimidade dessa integração européia, se perguntar aos povos se eles a querem agora, é perfeitamente possível. E nós sabemos a força do fato consumado, que pode levar pessoas, que numa outra situação anterior, com informação suficiente, poderiam tomar uma decisão, agora, colocadas dentro da decisão já tomada, eventualmente não tem outro remédio senão estar de acordo com aquilo, para que não foram chamadas.

Jayme Martins: Voltando à literatura. Uma obra assim sumarenta de vivência humana, eu imagino que os seus livros tenham provocado a alma de muitos dos leitores. Agora, o autor tem conhecimento da vida de algum leitor que tenha sido profundamente alterada pela leitura de suas obras?

José Saramago: Bom, profundamente alterada, vamos ver, eu lembro de alguém...

Jayme Martins: Ou tocada.

José Saramago: Tocada, alterada, não diria, enfim, modificada profundamente, porque isso as pessoas também não confessam, não vão dizer, mas eu lembro de dois casos, enfim, eu sou, posso dizer que sou, um autor que tive a sorte de receber muitas cartas de seus leitores. Muitas, muitas, muitas, que levantam para mim sérios problemas, porque queria eu poder responder as cartas de toda a gente que me escreve, mas eu verifico que as cartas por responder crescem em progressão geométrica, enquanto que eu apenas vou reduzindo em progressão aritmética. Mas eu lembro do caso de uma pessoa que emigrou para o Brasil, justamente para aqui, depois da revolução de 1974, emigrou para aqui e aqui fez a sua vida, tinha perdido aquilo que tinha lá em Portugal, mas refez aqui a sua vida, organizou-se, tudo mais, estava perfeitamente disposto a não regressar. E, um dia, lendo um livro meu, salvo engano, foi Memorial do Convento, achou que o seu lugar era lá. Escreveu-me uma carta dizendo isso mesmo, uma carta que me emocionou muito, emociono-me facilmente quando as pessoas abrem, como é esse caso, seu coração, mas devo dizer que recebi a carta com emoção, lógica da situação, mas ao mesmo tempo com algum ceticismo, como é que é possível esse homem vai agora resolver todos os seus negócios para voltar a Portugal por causa de um livro? Bom, pode ser que sim, mas eu tenho algumas dúvidas. Passados seis meses, esse homem me escreve de Lisboa para dizer: “já cá estou, conforme eu disse, resolvi toda a minha vida e já cá estou em Portugal” [risos].

Gilberto Mansur: Parece que você tem umas 800 cartas de beatas portuguesas protestando contra o Evangelho.

José Saramago: Não sei se são 800.

Gilberto Mansur: São agressivas?

José Saramago: As cartas são muitas e não são cartas de pessoas que me quereriam muito mal se pudessem, há também muitas outras, mas, de fato, o Evangelho moveu, num sentido ou noutro, muitíssimas pessoas que provavelmente nunca escreveram cartas a autores e dessa vez acharam que deviam escrever mesmo. Tem as pessoas que dizem que eu devia ser condenado à morte na fogueira, sem direito a sepultura, é certo que depois acabava a carta dizendo rezo por ti, portanto, havia uma esperança. E há outras pessoas, enfim, católicos, que dizem que o livro, apesar de chocante, não os ofendeu e que compreendem e tudo isso. Mas o que há agora é uma espécie de carreira de cartas, é como se houvesse uma central que desse instruções, nas várias regiões do país, para me submergir com cartas, em que dizem que eu não podia ter feito aquilo, que eu sou uma pessoa sem-vergonha, como é possível atacar Deus nosso senhor, Jesus Cristo, a Virgem Maria, tudo isso, mas enfim, isso está na lógica das coisas. Mas, queria acrescentar só uma coisa mais. Há tempos escreveu-me uma senhora portuguesa, do Norte, que me dizia, e era a propósito não desse livro, mas da história do cerco de Lisboa. Ela dizia-me que quando soube, quando teve conhecimento que eu estava a escrever a história do cerco de Lisboa, ela encontrava-se muito doente, tão doente que os médicos não tinham dado grandes esperanças de vida. E quando ela leu essa notícia, isso são palavras dela, não minhas, teve a saudade do livro que não podia vir a ler, isso é, ipses literis: “eu sentia saudade de um livro que não podia vir a ler” e depois acrescentava, felizmente, os médicos se enganaram e eu continuo viva e vim escrever para lhe dizer isso e aquilo e etc. Ora bem. Essa comunicação, essa corrente, eu chamaria de corrente de afetividade, entre esses leitores e o autor que tem sorte de os ter é, de fato, para mim uma coisa que não tem preço. Não sei porque, se me perguntarem como é que isso acontece, talvez eu tenha muita dificuldade, ou então direi que a única resposta está nos livros, mas a verdade é que sou um autor a quem as pessoas amam. Mas, sou também um autor a quem as pessoas detestam [risos].

Hamiton dos Santos: Entre os que detestam, nesse último livro, o senhor também não recebeu muitas cartas, muitas queixas, porque parece que só os cristãos foram ofendidos, mas se você analisa a conversa de Deus com Jesus, os judeus também saem bastante ofendidos, já que o Reino é considerado medíocre por Deus?

José Saramago: Hoje, enfim, quer dizer, essa é uma responsabilidade histórica que não cabe a mim, nem a nenhum de nós. É certo que o que se diz é que Jeová, ou Javé, escolheu aquele povo. O povo judaico é o povo eleito. E, provavelmente, acontecia com Javé aquilo que acontecia com os habitantes de um mundo, digamos, o mundo naquela época desconhecia que existia mais mundo, provavelmente, podemos dizer, eu sei que é uma ironia fácil, mas podemos dizer que ao se criarem Javé desconheciam a maior parte do mundo que ele próprio tinha criado. É um pouco absurdo que um Deus que cria um mundo, escolha para si, de uma forma tão particular, apenas uma parte do mundo e as pessoas que viviam nessa parte do mundo. Portanto, quer dizer, se os judeus se sentiram ou não chocados, eu acredito que não. Onde eles podem se sentir chocados é em algumas coisas ditas no diálogo de Jesus, no templo, quando Jesus tem 12 anos de idade e vai saber do escriba e vai pôr as questões da culpa e da responsabilidade, aí é que os judeus, os judeus de hoje, não os judeus de então, podem sentir que algumas setas que estão ali estão apontadas para eles, diretamente para eles. Digamos, eu creio que isso possa, talvez, se explicar de outra maneira. Eu não recebi reclamações de judeus, mas de católicos sim.

Ivan Ângelo: Como não temos aqui, hoje, telespectadores telefonando, eu vou tentar fazer perguntas que, talvez, eles queiram saber de um escritor tão famoso, quais são seus processos e tal. Algum tempo atrás, numa entrevista, você disse que era um escritor muito rápido. É rápido no gatilho. Pensa bastante e depois, quando senta para escrever, escreve rapidamente. Eu queria saber se nesse tempo de pensar, nessa maturação, que anotações você faz, ou se não faz anotações, guarda tudo na memória e depois aquilo flui com essa maestria que você demonstra quando a obra já está pronta. Quais são os seus processos?

José Saramago: Vamos lá ver. Para resumir, o meu processo é, digamos que, isso varia de linha contínua. E digo isso para significar o seguinte, eu não sou do tipo de escritor, e isso não tem nada a ver com a qualidade final da obra, evidentemente, não sou do tipo de escritor que escreve 80 páginas para depois transformá-las em 200 ou em 250 ou em 400. Quer dizer, o processo de reescrita que pode levar, por um lado, à ampliação, mas também pode levar, por outro lado, à redução. Aquilo que acontece comigo é que eu começo a escrever, e vou escrevendo, vou escrevendo. E não há caso nenhum, em nenhum dos meus livros que, tendo chegado ao fim, eu tenha dito: este capítulo está a mais ou este capítulo precisa ser desenvolvido ou, ao contrário, preciso reduzi-lo. O livro que eu vou escrevendo é o livro que vai ficar.

Ivan Ângelo: Tem anotações, tem um plano...

José Saramago: Não há plano. Eu não diria que há plano. Eu costumo dizer que a única coisa que eu sei quando começo um livro, além das informações, dos dados concretos quando preciso deles, quando se trata de um romance que vai para os lados da História, é evidente que é necessário, enfim, é necessário que aquilo tenha sentido histórico, então eu preciso ler, estudar, recolher dados. Mas, o que eu costumo dizer que a única coisa que sei verdadeiramente é que vou de Lisboa para o Porto, mas isso não significa que vá pela auto-estrada, ou que vá em linha reta, de avião, pode significar que eu tendo que chegar ao Porto, que é meu ponto de destino, o da viagem e o do livro, eu passo por Castelo Branco antes, que fica quase na fronteira com a Espanha. O modo como chegar é que fica dependente do próprio processo da escrita, quer dizer, eu posso, em dada altura, fazer uma incursão lateral, posso parecer até que voltei atrás, porque é, digamos, vamos lá ver, vou ver se encontro uma maneira mais flagrante de dizer isso, uma palavra, cada palavra, nasce da anterior, e essa palavra não pode existir, sem que exista a anterior e todas as outras anteriores. Por isso eu sou, literalmente, não é que sou literalmente incapaz, mas não sou capaz mesmo, de modo nenhum, se estou a escrever o capítulo terceiro, de um livro, por exemplo, mas que sei que haverá uma história qualquer mais para adiante, e que seria o capítulo 24, por exemplo, eu não interrompo a leitura, não interrompo a escrita do capítulo terceiro para, por uma espécie de inspiração súbita, ir escrever o capítulo 24, porque, para mim, isso é completamente impossível, porque o capítulo 24 depende do 23 em tudo. Não apenas na sucessão, na ordem numérica, mas nos múltiplos fios – e nós que estamos aqui sabemos disso – de que se compõem uma narrativa. Se há alguma espécie de lei, é para além desse sentido de que tem que se chegar ao Porto, mas estou livre para decidir o caminho que eu quiser, eu diria, por exemplo, como quem vai atravessar a corrente de um rio e tem meia dúzia de pedras que lhe permitem ir para o outro lado, passando de pedra em pedra. O que eu sei é que ao longo da história que eu vou contar há meia dúzia de pedras fundamentais e tem que passar por lá, senão cai na água. E, por outro lado, à medida que escrevo, vou antecipando, em pequeníssimos resumos, o capítulo seguinte. Em pequeníssimos resumos, que não tem mais do que quatro, cinco, seis linhas. É a única coisa, digamos, que eu faça...

Ivan Ângelo: Do capítulo seguinte ou outros vários?

José Saramago: Um ou dois capítulos seguintes. Sou incapaz...

Edla Van Steen: O famoso gancho para o próximo capítulo.

José Saramago: É, de uma certa maneira é isso. Eu sei que o capítulo seguinte daquele que eu estou a fazer, terei que dizer isso, assim e assim, mas de modo nenhum articular toda a história que vou contar num "x" número de capítulos, seguindo depois. Aquilo que eu não faço é uma espécie de “guião”, eu estou em cada momento livre para não escrever aquilo que pensava, num outro momento, que iria escrever. E é esse sentimento de liberdade, aquilo que um crítico português chamou – e muito bem, e eu não tinha pensado nisso, e os críticos servem justamente para isso, para dizer como é que nos devemos pensar – ele designou a minha escrita de escrita desprogramada. E é de fato uma definição exemplar. É de fato uma escrita que se comporta desprogramadamente.

Gilberto Mansur: Eu queria, também pensando um pouco no telespectador, que certamente conhece, como o senhor diz, conhece mais o Evangelho Segundo Jesus Cristo, eu queria fazer algumas perguntas voltadas para esse livro. Eu já ouvi dizer, algumas pessoas já me disseram, que o leram como se fosse uma longa oração, como se fosse uma demonstração de fé, até mesmo religiosa, apesar da sua posição que a gente conhece, de materialista. Mas, a pergunta que eu queria lhe fazer é a seguinte, a gente sabe e tem uma grande curiosidade com relação aos evangelhos apócrifos, que existiram até o Conselho de Trento, nos anos 200, que São Jerônimo recolheu, copidescou e o Vaticano, a partir daí, simplesmente, praticamente proibiu a existência e a circulação desses evangelhos, a que muito pouca gente teve acesso. Então, o que eu queria perguntar é se você teve acesso a isso em algum momento, conhece esses evangelhos e de que maneira? E, ao mesmo tempo, se você não consideraria um crime de lesa-humanidade o Vaticano praticamente proibir a circulação desses evangelhos aos quais a humanidade deveria ter acesso?

José Saramago: Vamos ver. Comecemos pela proibição. O que a Santa Sé fez foi declarar que certos evangelhos eram canônicos e outros eram apócrifos. Portanto, fez uma escolha entre os documentos que considera bases da igreja, enfim, portanto, que são os quatro evangelhos, e depois os quatro apóstolos e tudo que vem depois, mas do ponto de vista dos evangelhos os quatro evangelhos, e declarou os outros apócrifos. Não previu a situação, quer dizer, pode, num certo momento, ter, enfim, logo após essa decisão, é possível que se tenham criado dificuldades da difusão, mas neste momento os evangelhos apócrifos estão publicados em praticamente todas as línguas. Embora eu tivesse tido tanta dificuldade de encontrá-los em português, que tive de comprar uma edição espanhola, da Biblioteca dos Autores Cristãos, onde está tudo, Santo Agostinho, tudo isso, e também os evangelhos apócrifos. Tive, portanto, acesso a eles. Os evangelhos apócrifos são, na maior parte dos casos, fragmentos. Há alguns bastante completos, como é o caso do evangelho, dos evangelhos, que não é apenas um, são três ou quatro, são chamados Evangelhos da Infância, em que se narra a infância de Jesus, de uma maneira mágica, com coisas extraordinárias, e algumas nada recomendáveis, por exemplo acontece, em certa altura, que Jesus estando brincando num regato e depois, digamos, um funcionário de um moinho, os moinhos que as crianças fazem, a água passa e faz girar o moinho e houve um amigo dele, um colega, uma criança da mesma idade, que deu um pontapé naquilo, estragou aquilo e Jesus ficou tão zangado que o matou [risos]. E depois os pais da criança morta foram queixar-se aos pais de Jesus, Maria e José, como é que isso, essa criança que faz essas coisas, e, aliás, parece que aconteceram dois casos, num ele fez ressuscitar a criancinha morta e no outro não. Portanto, Jesus, segundo os apócrifos, não era assim tão bondoso e tão caridoso. O que acontece é...

Gilberto Mansur: Esses evangelhos, de alguma maneira, influenciaram o senhor?

José Saramago: Não, rigorosamente nada. Devo dizer que quando eu não conhecia os evangelhos apócrifos, quando estava para escrever esse livro. E tive que conhecê-los e fui conhecê-los e até tinha uma grande esperança que viessem a ser muito úteis, porque como eram apócrifos as pessoas não os conheciam tão bem e eu poderia tirar dali umas coisas que iriam, enfim, dar mais consistência à minha história. No final das contas, nada. O único episódio que eu tirei dos evangelhos apócrifos, mas deslocando totalmente no tempo é o episódio dos pássaros de barro que, nos evangelhos apócrifos, Jesus faz 12 passarinhos, ou 10 passarinhos de barro, e depois bate as palmas e eles voam. Eu passei isso para Jesus já homem, para a cena logo após a grande conversa no meio do lago, entre Deus, o diabo e Jesus, quando, por assim dizer, se anunciam as primeiras vocações. Jesus é ali que faz os tais passarinhos de barro e é esse episódio, digamos, de São Tomé, que quer ver para crer se os pássaros voam.

Luiz Antônio Giron: Ligando com a pergunta do Gilberto, eu queria saber o seguinte: você pegou o maior best-seller da literatura mundial, que é a Bíblia, são os evangelhos, e você se baseou em algum evangelho dos quatro principais ou você criou livremente a partir deles? Isso é a primeira coisa. A segunda coisa é a seguinte: a que você atribui tanto ódio de alguns católicos, de alguns religiosos, quanto ao sucesso que o seu livro despertou no público?

José Saramago: Sobre a primeira questão, a verdade é que os alicerces do meu livro não são apenas os quatro evangelhos, chamados de evangelhos sinópticos, é também o Antigo Testamento. Porque não podemos esquecer isso. O Deus do meu livro não é o Deus de que hoje se fala. O Deus, digamos, da igreja, hoje, é o Deus do amor, o Deus da compaixão, um Deus de perdão. Aquele Deus não tem nada a ver com o Deus que foi sendo refeito ao longo destes dois mil anos. E que acabou por se assemelhar ao filho. É um caso extremamente curioso, porque ao longo desses vinte séculos a idéia de Deus vai sofrendo modificações e acaba, por fim, o pai por se assemelhar ao filho. A doçura de Cristo, a mansidão, a dignidade, tudo isso, que estão nos evangelhos, tem as suas exceções, porque Jesus também soube ser violento, foi violento muitas vezes. Mas este sentido de caridade que está em Jesus foi, ao longo desses vinte séculos, passado para o pai. Portanto, o meu Deus, ou melhor, dizendo, para não haver equívocos, o Deus do Evangelho segundo Jesus Cristo é o Deus bíblico, é o Deus dos judeus. Porque Cristo era isso mesmo, Jesus era isso mesmo, um judeu, nada mais do que isso. Não há, aqui, um cristianismo nascido antes, quer dizer, não há um cristianismo nascido antes de poder ter vivido. E aquilo que fez o cristianismo o que é, é a sua própria vivência. Portanto, além dele ser indiferente, que se tratasse do Evangelho segundo Marcos, ou Mateus, Lucas ou João, qualquer dos quatro, eu tomei diferenças e leitura, foi também a leitura, não de todos os livros do Antigo Testamento, evidentemente que não me interessariam, mas de alguns deles, além do O cântico dos cânticos, que é inevitável e que é aproveitado literalmente num diálogo entre Jesus e Maria Madalena. Há também as diferenças, ou Eclesiastes ou o Levítico, e há alguns outros livros. Quanto à segunda questão, enfim, eu penso que o choque produzido nos católicos e reparo que não há protesto dos protestantes. Aqueles que se sentiram atingidos foram, exclusivamente, eu diria, os católicos, eu penso que é natural, porque todo e qualquer livro, toda e qualquer idéia que ponha em causa o que está estabelecido, porque repare, eu, às vezes, digo que há uma coisa que me surpreende muito, é que depois de uma missa, não aparece uma, duas ou três pessoas mortas. E digo isto por uma razão muito simples: como é possível agüentar a presença de Deus e continuar vivo? E, contudo, digamos, a missa acaba e, independentemente do grau de fé e de participação que os fiéis tenham, mas é um ato pouco social. Eu acho que se Deus estivesse lá, se as pessoas sentissem a real presença de Deus, não agüentariam, quer dizer, não é possível. Então, o livro que aparece, como é este caso, que vai por em causa toda essa instabilidade, toda essa maneira normal de ter uma relação com a religião, em que tudo é subitamente desequilibrado, as pessoas que vivem dentro de um edifício, de uma casa que está toda bem distribuída, de repente vêem alguém mudar as paredes, abrir janelas onde não havia, digamos, algumas delas tapá-las, as pessoas sentem-se, fora do seu contexto e isso pode desencadear vários tipos de reação.

Luiz Antônio Giron: Tem alguma passagem do livro que você acha que chama mais a atenção por este aspecto do choque?

José Saramago: Enfim, há várias...

Luiz Antonio Giron: Eu, por exemplo, acho que quando você descreve a morte de Jesus Cristo, quando você descreve isso com crueza, com grande crueza mesmo, eu acredito que aí esteja um dos motivos da revolta. Você descreve Cristo como não tendo visto a tigela negra onde o sangue gotejava. Quer dizer, é uma coisa muito chocante para quem pode ter fé, eventualmente.

José Saramago: Há aí vários aspectos. Em primeiro lugar, é óbvio para toda gente, essa tigela negra, que é uma tigela vulgar, comum, de barro, é a representação do Graal. Quer dizer, aquilo que seria esse vaso magnífico onde o sangue de Cristo foi recolhido, transforma-se, no meu livro, numa simples tigela de barro...

Luiz Antônio Giron: Que Cristo não vê.

José Saramago: O não ver, a verdade é que ele está em trânsito da vida para a morte. Não creio que isso tenha chocado. O que choca, por exemplo, tendo em vista a importância do culto mariano, hoje, eu acho, de uma certa maneira, que a pirâmide, se é que pode se chamar assim, a pirâmide de relação religiosa, dentro do cristianismo está, de alguma maneira, invertida, quer dizer, deveria ser, logicamente, me parece que deveria ser logicamente, Deus, Cristo e Virgem. Mas, se nós olharmos bem, veremos que há um processo de inversão. A Virgem aparece em primeiro lugar, depois aparece Cristo e só depois é que aparece Deus. O culto mariano, de uma certa maneira, fez inverter toda essa relação, trocar os pés pela cabeça nessa relação. Portanto, há a circunstância dele ter feito de Maria, mãe de Jesus, uma mulher igual a todas as outras mulheres. Há a circunstância da presença do diabo. O diabo é o anjo da anunciação, o diabo é educador de Cristo e ele, em concordância com Deus, porque no fundo eles são um só. No fundo, são um só. E há uma frase, por exemplo, terrível, que nunca nenhum católico, digamos, não há perdão que chegue para isso, que é quando, na tal conversa dentro do barco, no meio do lago, cercado de nevoeiro, depois daquela descrição toda do que vai acontecer no futuro, o diabo diz: “é preciso ser Deus para gostar tanto de sangue”. E realmente, se o católico, se o crente, é colocado diante de um Deus, que fez do sangue, do sofrimento, da renúncia, da abdicação da vontade, do sacrifício, do martírio, fez o alicerce do seu poder, e se o diabo aparece a dizer realmente é preciso ser Deus. E, agora, é curioso, não apenas esse Deus, mas todos os deuses, todos os deuses pediram sangue. E essa relação de sacrifício dos homens, que continuamente se sacrificam, é uma transcendência que, enfim, não conheço. É de fato, absurdo. Para mim, tudo isso, é bastante absurdo, se é que pode se dizer bastante, porque ou é absurdo ou não é [risos], portanto não se pode dizer “bastante absurdo”. Então, eu diria que é absurdo mesmo.

Gilberto Mansur: Além dos evangelhos, você leu muito sobre Cristo? Existe um livro na literatura brasileira que você não deve ter lido...

José Saramago: Não, não...
 
Hamilton dos Santos: O senhor pensou nas feministas na construção da personagem de Maria?

José Saramago: Não pensei nas feministas, mas essa pergunta poderia ser posta de uma outra maneira: se eu pensei muito nas feministas quando construí a personagem Maria Madalena. Porque a Maria...

Hamilton dos Santos: Ela é loura, não é?

José Saramago: Dizem que sim, que era loura [risos]. Quer dizer, provavelmente vem daí a idéia que as loiras são mais perigosas que as morenas. Enfim, sobre isso eu não tenho nada a dizer, se são umas ou se são outras. Mas, as feministas... Essas duas mulheres, Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, são duas faces da mesma mulher e isso mostra-se quando, nas bodas de Canaã, quando Maria, mãe de Jesus, percebe que não tem mais o que fazer na vida do filho, entrega o filho, entrega-o de fato a Maria Madalena. Digamos que a Maria Madalena é mais uma personagem feminina das minhas que não tem a ver com o tempo em que, de fato, se viva, como não tem Blimunda, como não tem outras muitas, que são representações de uma mulher que está colocada num tempo, mas que no fundo não é produto dele, porque a mulher produto do tempo, mulher e judia daquele tempo, é a mulher que eu, cuidadosamente, tentei descrever no princípio do livro, como a mulher que não tem importância, que não tem um significado social, que entra na sinagoga pela porta lateral, que nem que todas as mulheres de Israel ou da Palestina estivessem dentro do templo, o serviço religioso não pode começar...

Hamilton dos Santos: Mas o senhor não está dizendo que Maria, no seu livro, não tenha esse componente feminista, porque, por exemplo, quando ela está grávida, ela pensa na possibilidade de desta vez, na Páscoa, não ter que servir os homens, não ter que preparar as comidas.

Edla Van Steen: Você acha que isso é problema de feminismo? [risos]

José Saramago: Não, eu não diria que seja, quer dizer, nenhum ser humano é totalmente passivo sempre, todos nós temos, mesmo que não concretizemos, movimentos de protesto interior, de revolta, tudo mais, ai de nós se fossemos passivos a 100%. E se é verdade que o sistema social e ideológico, religioso, de um tempo que condenava as mulheres, de fato, à passividade, também é certo que no seu foro íntimo, da sua consciência, da sua alma, essas coisas estavam lá. Quando uma mulher tem que viver num lugar em que os homens se permitem dizer “abençoado seja, Senhor, por ter me feito homem”, quer dizer, quando a mulher não tem outra coisa para dizer a Deus, senão “graças, Senhor, por ter me feito segundo na tua vontade”, quer dizer, quando a mulher está reduzida a isso, é preciso que Maria, na medida do possível, manifeste essa capacidade de indisciplina, mas que essa indisciplina se manifeste totalmente na Maria Madalena, que quer estar fora.

Jayme Martins: Essa inversão que o senhor se referiu a pouco, de Deus, Cristo, Virgem Maria, para o inverso, Maria, Cristo e Deus, há um exemplo muito concreto disso adotado pela própria igreja na China, por exemplo, quando o jesuíta Mateus disse: “vai pregar o cristianismo junto ao Imperador e aos eruditos da Corte” e, vendo a descrença dos chineses num Deus que, afinal de contas, acaba pregado na cruz, ele recorre então a imagem da Virgem Maria, tanto que a igreja matriz de Pequim acaba sendo a igreja de Nossa Senhora da Conceição. E aí então é que o cristianismo consegue uma grande popularização na China, a ponto de o taoísmo acabar introduzindo também uma mulher no seu panteão de divindades. Agora, já que estamos falando em China, vamos a minha pergunta: apesar dos fracassos sofridos pela experiência socialista pelo mundo afora, como é que as convicções políticas e ideológicas de Saramago se mantém intactas no essencial? Qual é a esperança, afinal de contas, nesse sentido?

 

Rodolfo Konder: Eu vou pegar uma carona nesta pergunta do Jayme, porque acho que temos aí um tema interessante sobre a sua reflexão. Talvez até um pouco do fascínio que você exerce, além da qualidade da sua literatura, esteja nessa tensão entre o escritor e o militante. É porque você, por exemplo, falou em corrente de afetividade, falou em diversas janelas, falou em múltiplos fios na condução do seu trabalho, falou até em alma, que era uma palavra banida do catecismo dos materialistas dialéticos.

José Saramago: Alma, espírito, aquilo que nós não sabemos identificar. É só. É por uma comodidade lingüística, nada mais.

Rodolfo Konder: Mas eu perguntaria, dentro da pergunta do Jayme, se essas tensões entre o militante político, que acredita num partido único, por exemplo, e o homem das múltiplas janelas, se elas não dificultam o trabalho de criação? Se o militante não patrulha o escritor?

José Saramago: Eu creio que se pode responder a isso facilmente pela leitura dos meus livros. Não creio que alguém, quem quer que seja, sinta, ou perceba, ou distinga, na leitura qualquer dos meus livros, vigilância eventual, suposta vigilância que o militante teria no ato da escrita em exercer sobre o escritor. Definitivamente, não creio que isso se encontre lá. Em segundo lugar e, portanto, voltando um pouco à pergunta, para complementar, como é que diante dessa derrocada toda alguém tem o atrevimento, ou o descaramento, de continuar a dizer: pois sim, caiu, mas eu continuo. A questão também pode ser posta ao contrário: por que, por uma coisa ter acabado, coisa esta que não é "a" coisa, mas é apenas uma delas, que foi apenas uma delas, que não se constitui, ao derrocar-se, como a morte da morte, o fim do fim. Poderíamos perguntar por que isso haveria de significar a renúncia a princípios meus. Que tem essa ligação profunda. Quero dizer, se meus princípios estivessem dependentes do maior ou menor êxito de sua aplicação, então eu seria tanto mais fiel a esses princípios quanto mais os resultados fossem favoráveis ao meu ponto de vista, o que se confundiria, perigosamente, com o oportunismo. Então, aquilo que se passa é completamente diferente. Os princípios, para mim, são intocáveis. Aquilo que, a partir deles, aquilo que representa a utilização ou a tentativa de se transportar para uma prática o que está contido nesses princípios, posso dizer que, em princípio, também, tenho a parte da responsabilidade que resulta da minha adesão a esses princípios, mas não posso assumir a responsabilidade que resulta da má aplicação desses mesmos princípios. Quer dizer, eu não sou obrigado, em primeiro lugar, eu não sou obrigado a renunciar aos meus princípios porque a União Soviética se desmantelou e também não era obrigado antes a crer, como, aliás, não cria, que aquilo que estava sendo feito na União Soviética fosse a efetiva concretização de princípios os quais eu era fiel então e continuo a ser fiel. De uma maneira mais clara, a União Soviética nunca foi para mim uma referência exclusiva e permito-me introduzir aí um matiz que é, quando foi dito que eu acredito no partido único. Eu não acredito num partido único, eu não defendo a existência de um partido único, qualquer que ele seja. O que eu defendo é legitimidade de um partido, que tenha como base a aplicação desses princípios, e que não lhe seja negada a possibilidade de difundi-los, de promovê-los, em igualdade com qualquer outra tendência política que siga caminhos diferentes. Porque, para mim, há uma coisa que está rigorosamente clara. É que, de fato, da noite para o dia, milhões e milhões de comunistas, que pareciam sê-lo, ou diziam sê-lo, deixaram de ser de repente. O que me permite duvidar da autenticidade dessa convicção, nas 24 horas antes. Em segundo lugar, a consciência da dissensão tremenda, que é conseqüência da evidência de um fracasso. Milhões de pessoas neste momento sofrem, sinceramente sofrem, essa dissensão. Mas tem também essa idéia, que para mim é fundamental: o socialismo dissentiu e provavelmente voltará a dissentir nas novas tentativas que se façam para estabelecê-lo. Por uma razão muito simples, porque promete e tendo prometido não cumpre, como foi este o caso, dissentirá. Já o capitalismo, louvado seja Deus, não vai dissentir nunca, por uma razão muito simples, porque não promete nada.

Fábio Lucas: Ainda sobre o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, a história dele oferece agora, recentemente, dois episódios. Um é que houve um embargo de um secretário de Estado para que ele entrasse na lista dos livros portugueses a serem apresentados ao Prêmio Europa de Literatura. Outro, contrariamente, não foi um embargo, foi uma consagração, quer dizer, o livro recebeu o grande prêmio da Associação Portuguesa de Escritores. Como você recebeu uma coisa e outra?

Hamilton dos Santos: Eu queria só emendar na sua pergunta dizendo o seguinte: me parece que não houve, pelo menos por parte da igreja, como houve, por exemplo, no caso do filme Je Vous Salue Marie, do Godard, uma preocupação tão intensa com o seu livro. Claro, houve algumas polêmicas, mas elas não foram tão fortes. Me parece até que, na verdade, os políticos fomentaram mais essas polêmicas do que a própria igreja. O senhor acha que a igreja está se tornando mais tolerante com isso ou criando uma estratégia para não produzir mais mártires culturais?

José Saramago: A igreja é uma coisa muito complicada e a igreja não tem uma estratégia, tem estratégias e pode se dar um exemplo: no norte de Portugal, onde as pessoas são muito conservadoras, os bispos que lá estão são tão ou mais conservadores ainda do que as pessoas que lá vivem. No sul, no caso, por exemplo, do bispo de Setúbal, que é um distrito operário, a linguagem desse bispo e o comportamento desse bispo é completamente diferente. Portanto, a igreja é suficientemente hábil para pôr, consoante à necessidade, os seus porta-vozes e os seus condutores, digamos, do povo de Deus, do seu rebanho, de acordo com as especificidades de cada lugar. E, nesse caso, a igreja terá pensado, ouve reações de eclesiásticos, o arcebispo de Braga fez uma homilia tremenda denunciando o livro, chamando nomes ao autor, essas coisas todas, mas a igreja como instituição, em Portugal, guardou silêncio. Mandou os seus porta-vozes dizer aquilo que convinha, para que os fiéis também não ficassem desamparados e sem a voz da igreja, eu imagino que nas igrejinhas das aldeias, quando se fala do Evangelho Segundo Jesus Cristo, dizem o pior de mim, quer dizer isso é o que eu imagino. Mas a igreja não se meteu muito nisto. Às vezes, qualquer tentativa para comparar isso com o caso Rushdie, eu digo, por favor, respeitemos...

Roberto Pompeu de Toledo: O senhor imaginou que alguma vez poderia acontecer algo parecido com isso?

José Saramago: Não, de modo nenhum. Eu saio à rua, ninguém me diz nada, quer dizer, a agressividade das pessoas, quando existe, manifesta-se epistolarmente, quer dizer, escrevem cartas ou devolvem, por exemplo, à editora – o que aconteceu em dois ou três casos – o livro todo rasgado, todo esfacelado. Ficam por aí. A questão posta sobre o prêmio. Por razões que não vem ao caso, porque de fato precisaríamos juntar aqui uma quantidade de dados que não interessam, a minha disposição estava em, se o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores me fosse atribuído, recusá-lo. Os portugueses todos conhecem as razões, mas não vale a pena falar aqui. Simplesmente apresentou-se uma dificuldade, é que tinha havido toda essa história, digamos, da proibição, do veto, ao livro em relação a esse prêmio literário europeu. O que deu o escândalo que todos nós sabemos. Escândalo dentro das fronteiras e fora delas. Digamos, dizer eu que não queria o prêmio, seria acrescentar, como eu disse, ao escândalo de uma exclusão o choque de uma recusa. Pareceria que eu estava a arranjar maneiras de fazer falar de mim, com vista ao marketing e ao aumento das vendas. Estava nessa dúvida, quer dizer, nos dias anteriores à divulgação do prêmio, quando se tornou claro, porque sempre nós ficamos sabendo como as coisas se passam, que provavelmente o prêmio me ia ser dado, eu estava pensando no que eu vou fazer, no que eu vou dizer. E, conversando com a minha mulher sobre isso, ela de repente tem a idéia luminosa, de fato luminosa, que resolveu a questão. Eu aceito o prêmio como prêmio que é, digamos, a distinção honorífica, mas o dinheiro dele eu encaminho em outra direção e essa direção foi a compra de livros para enviar aos povos africanos de expressão oficial portuguesa, os chamados horrivelmente PALOPS. Eu acho que não se deve chamar a ninguém de semelhantes coisas, mas enfim, o mundo do jornalismo abrevia essas coisas e realmente dizer países de expressão oficial de língua portuguesa era grande demais. Então, PALOPS já está. Digamos, a razão foi essa, a razão da minha recusa e da decisão de aceitar o prêmio sim, mas renunciar ao seu valor tem essa causa.

Fábio Lucas: A sua mulher foi a boa conselheira nesse caso?

José Saramago: A minha mulher sempre é minha boa conselheira, e mais do que conselheira, é o outro lado de mim.

Edla Van Steen: Por falar em mulher, deixa eu perguntar uma coisa sobre mulher. Os escritores gostam de dedicar livros, em geral. Eu queria saber de você o que significa dedicar um livro seu, por impresso, e se alguma vez você se arrependeu de ter dedicado um livro?

José Saramago: Bom, se eu não tivesse me arrependido de nada em toda a minha vida, seria o caso de perguntar então por que se arrependeu de ter dedicado o livro? Eu arrependi-me e penso que é uma coisa de todos nós, que nos arrependemos de coisas que fizemos e podemos nos arrepender até de dedicatórias escritas com muita sinceridade e que passam a não ter nenhuma razão de ser. De uma certa maneira, pode-se dizer o seguinte: o homem que dedicou esses livros, sendo o mesmo, já não é o mesmo. É outro homem, tem que se entender isso, e não é que ele pretenda fazer desaparecer o homem que foi. O que existe é o direito de retirar, daquilo que esse homem fez, aquilo que o homem que ele é hoje, se tornou, supérfluo, enganoso, falso, tudo o que quiser, e então retira a dedicatória.

Edla Van Steen: Só quero perguntar uma outra coisinha. O Giovanni Pontinni me disse, há alguns dias, que ele tem uma enorme correspondência com você sobre o problema de tradução da sua obra. Em geral, você gosta das traduções feitas?

José Saramago: Eu gosto, em geral, das traduções feitas, gosto mais ou menos. Há traduções que posso ler, que eu posso tomar conhecimento, no caso da italiana, no caso da francesa, muito menos no caso da inglesa, mas em todo caso o suficiente na leitura. Há outras que me escapam completamente, a sueca, a dinamarquesa, ou finlandesa, ou holandesa, japonesa ou o hebreu, tudo isso me escapa. Vou, às vezes, denunciando informações que algumas pessoas podem dar, quanto à qualidade das traduções. Algumas das melhores, penso que existem excelentes tradutores, sobretudo existem excelentes tradutoras, o que não significa que não tenham também bons tradutores, como é o caso do Giovanni Pontianni, como a Rita Desti, (...?) e alguns mais.

Gilberto Mansur: E no Brasil, você acha que deveria se mexer em alguma coisa? Teve um livro seu que foi, não é?

José Saramago: Eu nunca autorizei que nenhum livro meu fosse mexido, como também não permitiria, se dependesse de mim, que um livro de um autor brasileiro fosse mexido em Portugal.

Ivan Ângelo: Às vezes é.

José Saramago: Eu sei que é, eu sei que é, mas aí recrimino o autor. O autor eu penso que deve dizer assim: “eu escrevo em português. As variantes, as mudanças, as especificidades do lugar e da cultura diretamente em que estou, a cultura brasileira, levam a que a minha escrita e a escrita comum sejam diferentes em alguma coisa”. Mas a questão também é essa, que nós temos que aprender justamente com as diferenças. Eu considero que ganho mais podendo ler um livro brasileiro, de um autor brasileiro, na forma que ele usou. Ganho mais porque sei mais. Fico, a saber mais, ao saber que a minha língua pode dar aquelas voltas. Isso é um enriquecimento.

Edla Van Steen: Você é contra a integração proposta?

José Saramago: Eu acho que não, o que há é esse projeto do acordo ortográfico.

Ivan Ângelo: Aqui se falou muito de um livro só aqui. Falou-se um pouco em Ricardo Reis, mas falou-se, principalmente, do Evangelho. Eu queria saber como você, que empregou, deu o melhor de si, para escrever cada um dos livros que você escreveu, em qual você acha que acertou mais a mão, que te satisfaz plenamente? E qual o outro que, hoje, de alguma forma, não te satisfaz tanto? Enfim, faça uma escolha.

José Saramago: Essa é terrível pergunta, quer dizer, no fundo é uma pergunta equivalente a alguém que tem quatro filhos, há um incêndio em casa e dizem que só pode salvar um, e ele vai lá e o que ele faz? Provavelmente, aquilo que ele seria obrigado a fazer por quem lhe pôs diante desse dilema é morrer com os quatro filhos. O melhor era isso. Mas, como não é esse o caso, eu começo pelo livro que eu considero o menos conseguido, para não chamar falhado, ou coisa assim. É, evidentemente, Jangada de Pedra. Por uma razão muito simples, óbvia: desde o primeiro momento, eu não precisei chegar ao fim do Jangada de Pedra para saber que aquele livro estava condenado a ser, irremediavelmente, falhado.

Ivan Ângelo: Você já tinha essa impressão enquanto escrevia?

José Saramago: Sim, sim, eu sabia isso. E, por uma razão claríssima: o clímax do livro, quer dizer, o ponto forte do livro está no princípio. O ponto forte da Jangada é a separação, o corte da península, dos Pirineus. Tudo o quanto vem depois, o autor tem que terminar de contar aquela história, mas ele sabe, e eu sabia, que não encontraria nada mais forte do que aquilo que já lá está. Portanto, esse livro é, desse ponto de vista, falhado. Não digo que seja na escrita, no concreto das situações, mas é um livro que está posto ao contrário. Se eu pudesse ter escrito o livro ao contrário, pondo a fratura no fim, mas aí era outra história que tinha que começar, pois se a fratura ponho no fim, precisava continuar, para explicar o que acontecia depois. Então, ali está. Esse livro é o tal. Os outros, é muito difícil. Há várias razões. Eu, às vezes, digo que eu ponho, talvez, O Ano da Morte de Ricardo Reis acima dos outros. Mas, ao mesmo tempo me pergunto por que eu iria colocar O Ano da Morte de Ricardo Reis acima do Memorial do Convento? Ou da História do Cerco de Lisboa? Ou do Evangelho? De modo que, como no ciclismo quando eles chegam no Pontão, quer dizer, aquilo que eu desejo é que meus livros cheguem todos em Pontão e que sejam creditados ao mesmo tempo. Eu admito que A Jangada de Pedra vem 2 minutos atrasados, e é bem feito [risos].

Gilberto Mansur: O sucesso do Evangelho, que é o seu livro que fez mais sucesso, que vende mais, balançou alguma coisa? Você tem uma predileção por ele com relação aos outros?

José Saramago: Não, não. O que eu considero é que a “carreira” do Evangelho, para pormos a questão assim, não vai poder ser julgada por questões quantitativas. Razões de ordem exclusivamente quantitativas. Não digo exclusivamente, mas, quantitativas. Quer dizer, tem 140 mil exemplares publicados em Portugal, vendidos em Portugal, vai vender com certeza mais, mas aquilo que eu espero que aconteça é que o livro tenha, produza e continue a produzir nos leitores, efeitos profundos. E por aí é que eu penso o Evangelho. É possível que o Evangelho seja, dos meus livros, aquele que vai ficar, não por razões meramente, exclusivamente literárias, mas porque, ao contrário dos outros livros, que também levantam questões que não são de ordem meramente literárias, este põe muito mais questões. E essas questões, suponho eu, vão levar as pessoas a ler o Evangelho, espero que dentro de 50 anos ainda leiam. Daí pra diante, enfim...

Gilberto Mansur: E ele te deu mais trabalho? Tem algum livro que te deu mais trabalho?

José Saramago: Não, não. O livro que eu penso que me deu mais trabalho, mais esforço e mais suor, foi A História do Cerco de Lisboa, por causa dessa diferença de planos, século XII, século XX, a articulação entre isso, digamos...

Luiz Antônio Giron: Você acredita nessa, você falou que Jangada de Pedra não funciona porque...

José Saramago: Não, ele funciona.

Luiz Antônio Giron: Funciona menos, porque no começo tem um ponto culminante. Você acredita nessa linearidade do romance, de narrativa que conduza a um ponto culminante, nesse momento do romance contemporâneo?

José Saramago: Não, não, eu não quero dizer que eu não sinta, que eu pense que o interesse tenha que vir crescendo, até chegar ao fim onde seria a apoteose. Agora, considero que é um livro desequilibrado porque o ponto fortíssimo está à entrada dele e faça o autor o que fizer, ao longo dele, já não pode equilibrar. Se eu tivesse um ponto forte a princípio, outro mais adiante, outro mais perto do final, o livro equilibrava-se. Mas, o livro não pode equilibrar-se, porque o clímax é na abertura do livro. A partir daí ele vai como pode.

Rodolfo Konder: Saramago, infelizmente o nosso tempo está chegando ao fim. Então, em nome da TV Cultura eu queria agradecer muito a sua presença aqui. A entrevista foi excelente, muito interessante, tenho certeza que os telespectadores também gostaram muito. Agradecer aos jornalistas e aos escritores que nos ajudaram aqui a fazer a entrevista...

José Saramago: Eu posso também? Só por um minuto? Agradecer o modo simpático como se comportaram comigo. Podiam ter me esfacelado e não me esfacelaram [risos]. A troca de idéias em que, de fato, resultou esse encontro, a oportunidade de conhecer gente nova, de rever amigos meus e, enfim, e se isso serviu para que os meus leitores conhecessem um pouco melhor, eu fiquei conhecendo um pouco melhor, através das vossas questões, o interesse que os brasileiros tem por aquilo que eu faço. Muito obrigado.

 

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