Mário de Andrade 2
Entrevistado por Homero Senna e publicado originalmente na revista d' O Jornal", de 18/02/1945 e republicado no livro SENNA, Homero. República das letras. 3ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, de onde foi extraída.
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Está claro que indo a São Paulo não poderia deixar de entrevistar, para esta minha série de "Vida, Opiniões e Tendências dos Escritores", mestre Mário de Andrade, o poeta admirável do "Notumo de Belo Horizonte", o conteur delicioso e humaníssimo de Belazarte e o ensaísta ágil e seguro de Aspectos da Literatura Brasileira. Desde o movimento modernista de 1922, de que foi um dos próceres, Mário de Andrade é urna das figuras de maior renome e prestígio não apenas do grupo paulista, mas das letras brasileiras. Tudo o que diz ou escreve tem um cunho tão forte de sinceridade, é tão bem pensado e vem expresso sempre numa forma tão pessoal e saborosa, que seria absurdo perder a oportunidade de ouvi-lo e fazer com que falasse sobre algumas das questões que aqui estão sendo debatidas.
O poeta de Paulicéia Desvairada é um cidadão dos mais amáveis, sempre disposto a receber os jornalistas e qualquer estudante ou escritor que com ele queira debater assuntos de Arte, em geral, ou de Literatura, em particular. Embora invariavelmente muito ocupado e às vezes cheio ainda por cima de compromissos sociais' (almoços, casamentos etc.), quem quiser levar-lhe, pam discussão, um problema qualquer de sua especialidade, longe de encontrar um professor empertigado e solene, desses de camisa engomada e colarinhos duros mentais, topará um camaradão, sempre muito atento à conversa, os olhos vivos fuzilando através das grossas lentes dos óculos e o sorriso se abrindo amiúde no carão comprido de mestiço.
Marcamos a entrevista para as duas da tarde, no Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional, que funciona num dos belos edifícios dessa nova e movimentadissima Rua Marconi, onde ficam atualmente as lojas mais bonitas de São Paulo (2).
Mário já me esperava quando cheguei e, levando-me para um grupo estofado que havia no outro lado da sala, foi logo se declarando à minha disposição. Eu, relendo naqueles dias a sua Pequenta história da música, muito me impressionara com um conceito ali emitido, segundo o qual, para o seu autor, um dos principais componentes da Arte, dentro da Civilização Cristã, é "a procura do Prazer sem interesse prático imediato, isto é, é um divertimento, uma brincadeira." (3) Ora essa... Então Arte divertimento, brincadeira? E como estava ansioso de ouvir o poeta esclarecer melhor essa sua estranha concepção, tão em desacordo, aliás, com suas idéias mais recentes sobre o assunto, fui direto à questão. Mário, porém, de início, quis evitar a discussão de problemas assim transcendentais:
Isso não é pergunta para entrevista, toma muito tempo explicar.
Mas como eu insistisse, adiantou, ainda que sem satisfazer plenamente minha curiosidade:
Conforme escrevi na Pequena história da húsica, uma das coisas mais difíceis de definir é a Arte. E as definições que são apresentadas não satisfazem. Por isso mesmo acho melhor não teorizarmos como fiz no livro. Prefiro reconhecer que, para mim, a Arte é uma atividade interessada, na qual eu me sirvo da Beleza como elemento de convicção das idéias, sentimentos, fatos que desejo expor. Se não mudei muito no conceito da minha profissão de artista-escritor; se já num dos meus primeiros livros eu afirmava que, no fenômeno artístico, "a Beleza é uma conseqüência (4) por outro lado reconheço que, a Beleza, só por si, pode ser uma atividade interessada, e é uma necessidade imediata do homem.
E prosseguindo:
Apenas me penaliza muito, e me escandaliza também, que as artes da palavra, as mais atuantes dentre as belasartes, se preocupem exclusivamente com a Beleza e a expressão desrelacionada do indivíduo, num tempo destes. Veja bem que falei em "preocupação exclusiva". Não é por causa da guerra, dos totalitarismos, dos imperialismos, que a Beleza e a expressão individualista do ser deixam de existir. Apenas: existe a guerra também, e os defeitos e crimes sociais do momento. E eu tenho a certeza de que agora estes são muito mais importantes.
- Acha então que a literatura atual tende a dar mais importância ao social que ao individual, e que essa será também a orientação da literatura do futuro?
Não acho: é uma realidade fácil de provar. Percorra as seções literárias dos jornais, e verá escancarada essa tendência. No aliás admirável Congresso de Escritores, verdadeira legitimação de dignidade para a inteligência brasileira, com grande sofrimento meu que até agora me sangra, uma indicação muito acertada de Antônio Rangel Bandeira sobre a valorização da poesia só causou mal-estar e sorriso entre os congressistas. No entanto eu sei que talvez cinqüenta por cento daqueles escritores estimam a poesia, muitos até eram poetas. É que no momento estavam desequilibradamente preocupados com outra coisa...
- Mas então pensa que a uma poesia individualista sincera, é preferível o poeta se forçar e fazer uma poesia social insincera, que ele não sente?
Que é a sinceridade?
- Creio que sou eu que estou entrevistando...
Aceito. Você adquiriu no berço, com a língua que lhe ensinaram, uma sinceridade infantil de falar, espontânea, que depois, no grupo escolar, com o aprendizado, diante de convicções novas adquiridas, você forçou por modificar. Quando saiu do grupo, a convicção que lhe foi imposta pelos seus professores, e confirmada pelos seus pais, já lhe fizera adquirir uma sinceridade nova de falar que você depois foi sempre modificando, não só ela mas todos os seus conhecimentos espontâneos, à medida que ia adquirindo convicções novas. E sempre forçando. Pois bem: a convicção intelectual nos obriga a forçar nossas sinceridades espontâneas, ou erradas, em proveito de uma sinceridade maior.
- Acredita, então, que a poesia socíal é uma sinceridade maior que a poesia individualista?
Não acho isso não, Deus me livre! O que eu quero dizer é que o problema da sinceridade não interfere no caso, nem sequer na arte em geral. Toda aquisição de técnica é um trabalho forçado, ou, pelo menos, não é uma espontaneidade. Nós vivemos eternamente adquirindo convicções novas e num etemo trabalho de reeducação de nós mesmos. O que eu quero dizer é que se o artista está convencido de que, nesta horrível atualidade, ele deve participar das lutas sociais também com a sua arte, ele não deve se arrepelar com o fantasma bobo da insinceridade. Force um bocado e se reeduque numa sinceridade maior. Ele já não fez tantos poemas individualistas, tantos contos gratuitos que jogou fora por malsucedidos? Que mal há que jogue fora mais alguns exercícios de... espírito social, até acertar a mão? O poeta, o artista está educado por século e meio de arte gratuita, não-participante, socialmente conformista, distanciadora de classes, a serviço da classe dominante e para gozo dela. Pois cabe a ele, é seu dever, se reeducar.
- E que destino prevê para a Poesia? Pensa que ela se tomará cada vez mais, livre, ou a tendência será para voltarmos aos moldes antigos?
Penso que ela se tornará cada vez mais livre, mas no sentido de libertação de escolas e de definições exclusivistas. Essa liberdade é que lhe permitirá renovar o que você chama de moldes antigos
- Mas voltaremos à metrificação e à rima?
Não se trata de voltar a processos de poética que jamais foram abandonados. Trata-se apenas de adquirir maior equilíbrio entre a realidade de um determinado estado-de-poesia e os elementos de poética que lhe sejam mais adequados. Era natural que a grande invenção do verso livre nos intoxicasse um bocado. Intoxicou demais a muitos... Não há dúvida que na poesia dos últimos trinta anos o verso livre predominou, um pouco por moda, um pouco por fadiga, que levou os poetas menores, e os sem poesia nenhuma, a dormirem dentro da sua aparente facilidade.
- Você, pessoalmente, pretende voltar à métrica?
Se não me engano, jamais a abandonei. Em todos os meus livros, mesmo no mais impressionista de todos, o Losango cáqui, há poemas em versos medidos. Aliás, no prefácio de Paulicéia desvairada, eu já afirmava que o verso livre para mim vinha se acrescentar aos outros. E aludindo à guerra de 1914, recente então, dizia que, nesse caso dos metros, eu não era apenas aliado, mas, como a Argentina, ficava neutro para me enrquecer. Mas de fato ultimamente tenho metrificado muito.
Qual a razão disso?.
Justamente uma reeducação poética. Preocupado em participar mais diretamente dos problemas políticos do nosso tempo, não hesitando mesmo em reconhecer que o meu conceito de arte interessada e a minha atitude artística sempre dirigida por um utilitarismo qualquer me propunham uma poesia de combate e uma arte de circunstância, o verso medido e a própria rima se impuseram à minha poética por serem processos dinâmicos de maior alcance social. Quando em 1942 compus a minha tragédia coral do "Café", que conservo inédita por motivos alheios à minha vontade, (5) ainda a pretendi escrever em versos livres. Mas logo a exigência do coturno, por se tratar de uma tragédia cantada por corais, me obrigou a uma fraseologia artificial, tão cheia de cadências e tão fortemente ritmada, enfim, tão voluntariosamente construída, que os versos não saíram do que se possa chamar exatamente de verso livre. Com isso o problema do verso dinamicamente social se impôs à minha preocupação. E quando, o ano passado, o acaso me fez descobrir uma nota bem antiga, com uma referência ao jogral de Vigo, Martim Codax, principiei a compor com a maior rapidez uma série de poemas na sua maioria metrificados e rimados, quase todos eles poemas de combate, que intitulei Lira paulistana. (6)
- Quer dizer que não considera a rima uma prisão?
A rima é uma prisão para os escravos da rima, da mesma forma que é uma fornecedora de idéias para os que não têm idéias. Também o metro é uma prisão para os que contam sílabas nos dedos e não têm senso rítmico, mas é de uma liberdade expressional extraordinária para os que sabem metrificar. Tudo depende de não erigir rima nem métrica em preconceito de ourivesaria. Ou em preconceito, simplesmente. (7) Nestes poemas da Lira paulistaiza eu rimei quando a rima se impôs naturalmente, ou exigiu procura normal. Mas quando a rima não veio, ou necessitei de uma palavra que não rimava, deixei muito sinceramente de rimar. Enfim: metro e rima não significam nenhuma volta ao passado, embora sejam perigos graves atualmente, porque podem induzir muito o poeta leviano e sem técnica, ou sem poesia, a voltar também ao estilo e ao espírito de certas escolas poéticas já ultrapassadas. Especíalmente ao Parnasianismo, ainda cheiroso entre nós. E ainda são um perigo sempre, porque levam o artista a afeiçoar determinados ritmos e a dormir dentro deles. Entre os poetas que recentemente se puseram metrificando entre nós, é sensível o abuso que já estão fazendo da redondilha, e sobretudo do verso de cinco sílabas.
- De maneira que para você o metro e a rima não são moldes antigos?
Absolutamente não. São moldes eternos, como o verso livre também é. Aliás, já não posso mais ser contra os rnoldes antigos, depois da experiência da Lira paulistana. Já lhe disse que esses versos nasceram porque me deixei seduzir pela poesia de Martim Codax. Com isso sucedeu que muitos dos meus poemas saíram pelo processo paralelístico galego-português, a princípio pretendidamente, em seguida com a maior espontaneidade. Mas tenho a pretensão de o ter renovado... dialeticamente, se me permite. E isso, reconheço que, desde o princípio, com a maior espontaneidade. Alguns desses poemas parecem verdadeiras proposições poéticas de tese, antítese e síntese. Mas o mesmo não se dará na fonna, com estrofe, antístrofe e epodo?...
Faz uma pausa, mas logo prossegue:
De resto, tenho pensado muito, depois dessa experiência da Lira Paulistana, sobre o problema do pensamento poético na poesia luso-brasileira. Não há dúvida que o paralelismo é um processo normal e constante do nosso pensamento poético, sobretudo no folclore. Creio, mesmo, que o uso e o estudo do folclore é que facilitaram muito, em mim, a manifestação do pensamento poético paralelístico.
Quer dar um exemplo para O Jornal?
Ainda não desejava publicar esses versos, desculpe. (8)
- E a obra que realizou é a que pensava realizar quando começou a escrever?
É. Ou, por outra: eu sempre realizei o que quis realizar, e sempre obtive, na poesia como na prosa, na crítica como na ficção, os resultados que tinha intenção de obter. O que não quer dizer que todas as minhas intenções fossem acertadas. Não sou filho do acaso, nem minhas obras o são.
- Então está satisfeito com sua obra?
Não.
E sorrindo: Mas isso é outra conversa ...
Agora Mário me conta como se fez escritor:
O estalo veio num desastre da Central - diz muito sério - durante um piquenique de subúrbio.
E como eu achasse graça:
É verdade, sim. Me deu de repente vontade de fazer um poema herói-cômico sobre o sucedido, e fiz. Gostei, gostaram. Então continuei. Mas isso foi o estalo apenas. Antes já fizera algumas estrofes soltas, assim de dois em três anos; e aos dez mais ou menos, uma poesia cantada, de espírito digamos superrealista, que desgostou muito minha mãe. - "Que bobagem é essa, meu filho?" - ela vinha. Mas eu não conseguia me conter. Cantava muito aquilo. Até hoje sei essa poesia de cor, e a música também. (9) Mas na verdade ninguém se faz escritor. Tenho a certeza de que fui escritor desde que concebido. Ou antes... Meu avô materno foi escritor de ficção. Meu pai também. (10) Tenho uma desconfiança vaga de que refinei a raça...
- E essa história de língua brasileira?
Isso é um assunto que já está me aborrecendo. De resto, não é o problema da existência ou não da língua brasileira que interessa ao escritor brasileiro. O problema é outro: é um problema de honestidade artística. (11)
- E que atitude devemos tomar: seguir à risca as regras da gramática portuguesa, ou nos insurgir contra ela?
Nem uma nem outra. Para o artista na plena posse de sua capacidade, a gramática deixa de existir. Mas o escritor que não conhecer a fundo e preliminarmente a gramática, jamais será um artista. Poderá ser um gênio, mas não será digno da sua profisão. (l2)
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Notas:
(1) Quando da publicação desta entrevista na Revista do O Jornal, do Rio, precisamente uma semana antes da morte de Mário de Andrade, foi ela comentada pelo escritor mineiro Aires da Mata Machado Filho, em artigo intitulado "Mário de Andrade e o Problema da Língua", depois enfeixado no volume Crítica de Estilos, Rio de Janeiro, Agir Editora, 1956.
(2) A entrevista é de 1945.
(3) A propósito dessa e de outras teorias que procuram explicar o fenômeno artístico (sobretudo literário), veja-se o precioso livrinho do professor argentino Raúl H. Castagnino Que és literatura?, Buenos Aires, Editoral Nova, s.d.
(4) A Escrava que não é lsaura, in Obra Imatura, São Paulo, Livraria Martins, s.d, p. 206.
(5) Incluída no volume das Poesias Completas, São Paulo, Livraria Martins, s/d.
(6) Mário de Andrade - Lira Paulistana seguida de O Carro da Miséria -, Livraria Martins, s/d, depois incluídos também nas Poesias Completas.
(7) "Fazer obrigatoriamente um soneto é que é um mal. Rimar obrigatoriamente o é que é um mal" - já havia ele observado a Manuel Bandeira (carta de 13-7-1929, in Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, Rio de Janeiro, Organização Simões Editora, 1958, p. 229).
(8) Podem agora ser lidos no volume das Poesias Completas.
(9) Em entrevista que concedera a Silveira Peixoto e foi depois, juntamnte com outras, reunida em volume, Mário também se referiu a essa cantinguinha surréaliste, o que prova que de fato se lembrava dela com freqüência, ou pelo menos sempre que alguém indagava de suas primeiras produções literárias. A pedido do repórter, interessado em conhecê-la na íntegra, Mário apanha um pedaço de papel, toma um lápis e, alguns momentos mais, apresenta-lhe estes versos:
"Fiori de-la-pá,
gêni-trans-féli gúidi-nus pigórdi,
gêni-trans ... féli gúii-nórdi,
Geni".
(Falam os Escritores (2. série), Curitiba, São Paulo, Rio, Editora Guaíra Ltda., 1941, p. 19).
(10) Procurando esclarecer estes antecedentes literários de Mário de Andrade. apelamos para M. Cavalcanti Proença, grande conhecedor e exegeta da obra do autor de Macuizaínza. Mas Proença também os desconhecia, e aconselhou-nos a escrever para Oneida Alvarenga, que, pessoalmente ou através da irmã do escritor, talvez nos pudesse dar as informações pretendidas. Estas, obtidas através de D. Lourdes Camargo, vão transcritas no Apêndice.
(11) No Apêndice, o leitor encontrará maiores explanações e comentários a respeito da posição de Mário de Andrade no concemente ao problema da linguagem.
(12) Em mais de um artigo de crítica, dos que enfeixou depois no volume O empalhador de passarinho, Mario insiste neste tema, e no da necessidade que tem o artista de trabalhar a sua obra. "Em arte, a forma há de prevalecer sempre esteticamente sobre o assunto" (p.8). "O importante esteticamente não é a verdade documental, e sim a verdade artística" (p.170). "Jamais me preocuparam erros de gramática, mas me preocupam 'erros' de linguagem que fragilizam a expressão" (p.105).
"Mas acontece que muitos, justamente porque ignoram tais problemas (relativos à aquisição, pelo artista, dos elementos formais necessários à realização artística) ou não querem o trabalho, a luta de se cultivar, se insurgem contra a cultura, consideram ninharias os problemas da forma, e só exigem o núcleo, a 'mensagem'. Se esquecem que justamente por isso abundam no mundo os mensageiros que, em vez de mensagens, o que trazem são cartas anônimas, vagas e impessoais notícias, sem caráter nem força, que podem quando muito indicar pra que lados sopram os ventos da vida" (p. 106).
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