Volta para a capa
Grande entrevistas

Mário de Andrade 1

Conduzida por Joel Silveira, em abril de 1939, e publicada originalmente na revista Vamos Ler (RJ), nº 144, 4 de maio de 1939 e republicada no livro: LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T.A. Queiroz, Editor. 1983.

                                                    ***

   Antes de 1922 era um poeta cheio de forma impecável, quase um alexandrino. Depois houve a "debacle". Foi por aí, precisamente, que o lutador tomou sua verdadeira característica e surgiu, com força e energia. Formou nos primeiros grupos revolucionários que, ao lado de Graça Aranha, transformaram radicalmente a literatura nacional. Foi, também, um dos vanguardeiros na luta por um Brasil mais sozinho, um Brasil que se fizesse, repentinamente, conhecido dos brasileiros. Na "Semana de Arte Moderna", apareceu como uma das figuras marcantes. Hoje está provado que esta "Semana de Arte Moderna" não resolveu lá grande coisa. Pelo que se depreende gora, chega-se à conclusão triste e. decepcionante que os discursos e o excesso de idéias atrapalham tudo... Com ela ou sem ela, a literatura seguiria, logicamente, este caminho que vem tomando. O clima lá de fora tinha que influir por força. Mas, de qualquer maneira, a "Semana de Arte Moderna" apressou a carreira. E há mesmo quem diga, hoje, que a Revolução de 30 nada mais foi que uma conseqüência da Revolução de 22.
    Daí esse interesse notável que Mário de Andrade vem despertando, de uns 12 anos para cá, dentro da literatura nacional. E dentro dela, ele é, sem dúvida, um dos capítulos mais pitorescos, digamos assim. Uma paisagem estranha, quase sem uniformidade. Excesso de temas. Emaranhado de assuntos. É que o homem, meus senhores, entende de tudo, opina sobre tudo. Desde a música até à crítica teatral. E da crítica teatral à crítica dos livros. Cada ano encontra Mário de Andrade fazendo alguma coisa de novo. Não descansa. Sabe unir a ação prática de um Roquette Pinto, por exemplo, à criação intelectual de um José Lins do Rego ou de um Jorge Amado. Fértil e inesgotável. Revolucionário em tudo que faz ou cria. No estilo, na poesia, na prosa, nos ensaios de cultura. O que define melhor Mário de Andrade é que ele, em tudo que escreve, dá sempre a sua opinião. Às vezes nem chega a respeitar a opinião dos outros. Pouco importa. O que importa é que a sua opinião é a certa: olhem bem, vejam como eu digo, meditem sobre as minhas considerações. Talvez não seja um literato. Ou talvez seja somente um literato.
    Este capítulo pitoresco da literatura brasileira, da nova literatura do Brasil, anda atualmente por estas plagas. Pensamos nele. O melhor lugar para se encontrar Mário de Andrade é na rua. Ele pouco fica em casa. A rua é seu mundo. E dentro deste mundo o oásis predileto é aquela mesa ao ar livre, no "Amarelinho". Mesa que vai passar, sem dúvida, para a história da arte e da literatura do nosso país. Todas as tardes o grupo é ali animadíssimo e precioso. Portinari, Santa Rosa, José Lins do Rego, Rubem Braga, Mário de Andrade, Graciliano Ramos - todos eles vão para ali discutir, conversar, tomar "chopp". Quem passa por fora nota logo que aqueles homens são seres estranhos. Eles falam e gesticulam demais. Foi pois no "Amarelinho" que fomos encontrar o autor de Macunaíma. Ainda era cedo, a tarde começava, e Mário de Andrade estava sozinho, lendo um vespertino. Aproximamo-nos:


- Dá licença?


Ele virou-se, meio assustado, endireitou os óculos grossos.

Pode sentar.

- Vim lhe segurar para uma entrevista. Pode ser?

Entrevista para onde?

- Para a série que estou fazendo no Vamos Ler!

É, tenho lido. Gostei muito da do José Lins. Mas acho que não vou ter muita coisa para contar. Você quer saber é da vida da gente, não é?

- Da vida e da obra. Aliás prefiro que você vá conversando sobre o que achar interessante. Eu vou tomando minhas notas.

Ah! bem. Então escute. Mas... Você não quer fazer uma pergunta inicial? Para eu poder coordenar o assunto, compreende?

- Pois sim. Vai aí a mais simples: em que ano você nasceu?

Nasci em 1893, em São Paulo.

   E por aí continuou. Falou quase uma hora e das notas que conseguimos apanhar, tiramos tudo isto que vai aí em baixo. Mário de Andrade foi um dos artistas revolucionários que principiaram a usar sistematicamente nos seus livros a língua nacional, libertando o estilo literário no Brasil das regras gramaticais da língua de Portugal. Livros como o Clã do Jaboti (poesia), contos como os de Belazarte e a rapsódia romanceada do Macunaíma (talvez a obra principal do escritor) são inteiramente libertos de preocupações que não sejam americanas e brasileiras, e vazadas numa linguagem que positivamente não corresponde mais às regras psicológicas e técnicas do português de Portugal. O seu livro, Paulicéia desvairada, representa uma das principais contribuições ao assunto e foi a primeira obra a usar sistematicamente o verso livre no Brasil em 1920. O movimento de renovação das artes no Brasil e libertação do espírito acadêmico, movimento que estourou com a "Semana de Arte Moderna", realizada em São Paulo, e que revolucionou as artes brasileiras, teve em Paulicéia desvairada, publicado nesse mesmo ano da "Semana" (1922, um dos seus principais gritos de combate).
    Como musicista, Mário de Andrade se dirigiu francamente para as pesquisas da nacionalização da música brasileira. Dedicou-se principalmente, nesse sentido, à crítica e às pesquisas folclóricas, principalmente musicais. Suas obras técnicas mais importantes, como o Ensaio sobre a música brasileira, as Modinhas imperiais, o livro de crítica, Música, doce música, são francamente orientados nesse sentido da pesquisa da coisa nacional. O Ensaio supra citado pode ser tido por uma das primeiras obras, senão a primeira, que deram aos estudos de folclore musical, no Brasil, uma orientação verdadeiramente científica. .
    Essa orientação, Mário de Andrade a desenvolveu, em seguida, como Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, cargo que ocupou desde a fundação do Departamento, até maio de 1938. Nesse Departamento iniciou curso de Etnografia e Folclore. Fundou a Sociedade de Etnografia e Folclore, que está fazendo os primeiros estudos sul-americanos de cartografia folclórica. E criou a Discoteca Pública de São Paulo, que além do arquivo folclórico-musical brasileiro, gravado por meios não mecânicos, está gravando em discos e filmando as canções e bailados populares do país.
    Recentemente, por sua iniciativa, o Departamento de Cultura realizou o Congresso da Língua Nacional Cantada, que reuniu os maiores filólogos, musicólogos e compositores do país e mais uma centena de instituições pedagógicas e artísticas do Brasil. Ainda por iniciativa de Mário de Andrade deu-se andamento em São Paulo das Primeiras Casas de Cultura Proletária, cuja organização técnica lhe pertence. Foi ainda autor do ante-projeto de que derivou a Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, destinado ao tombamento, proteção e estudo do patrimônio artístico do país. Em 1938, transferindo-se para o Rio de Janeiro, Mário de Andrade assumiu o cargo de Diretor do Instituto de Artes, na Universidade do Distrito Federal, onde está regendo ainda a cátedra de História e Filosofia da Arte.
    A conversa de Mário de Andrade nada tem de pretensiosa. O escritor fala como se estivesse contando coisas já por demais sabidas e que nunca é demais repetir. O que ele ama, acima de tudo, e esta movimentação crescente, esta angústia de estar sempre fazendo alguma coisa. Aquela cabeça parece que nunca conheceu descanso. Dali já saíram as idéias mais originais, quase absurdas. E quantas ainda não vivem lá dentro, espremidas, doidas para verem a luz do sol?
    Eu poderia botar um ponto final aqui na minha vida. Estamos em pleno ano de 1939, num belíssimo e ensolarado abril. Muito bem. Mas você acha que é hora pra outra? Eu não acho. Tenho cá para comigo que quem começa a luta deve ir até o fim. E eu vou. Minha vida absolutamente não terminou. Estou vivendo plenamente a hora presente vivendo de um modo absoluto. E tenciono viver, com a mesma energia e desassombro, as horas próximas do futuro. Logo notamos que chegara a hora das perguntas. E tínhamos algumas já engatilhadas.

- Mário, quantos livros você já escreveu? Podia me dar a lista completa?

Lista não dou. Mas vou dizendo. É muito mais prático. O meu primeiro livro chamou-se Há uma gota de sangue em cada poema, livro de versos, que apareceu em 1917. Seguiu-se a famigerada Paulicéia desvairada, que, como já lhe disse, foi posto a venda em 1922. Depois veio A escrava que não é Isaura, arte poética, em 1925, Losango cáqui em 1926, também poesia, Primeiro andar, contos, em 1928 (do qual apareceu em 1932, uma nova edição), Amar, verbo intransitivo, romance, em 1927 (traduzido em 1933 para o inglês com o nome de Fraulein, e posto à venda em Nova Iorque naquele mesmo ano), Clã do ]aboti, poesia, em 1927, Macunaíma, rapsódia, em 1928 (nova edição em 1937), Ensaio sobre a música brasileira, em 1928. Compêndio de história da música, em 1929 (e mais duas edições em 1933 e 1936), Modinhas imperiais, em 1930, Belazarte, contos em 1934 Música, doce música, crítica, em 1937, O samba rural paulista, folclore, em 1937, O Aleijadinho e Alvares de Azevedo, crítica, em 1936 e Namoros com a Medicina, um livro de etnografia e folclore, que apareceu este ano.

- E sobre viagens? Tem viajado muito?

Nunca saí do Brasil, a não ser em pequenas incursões nos limites do Peru e da Bolívia. Em compensação conheço quase todo o meu país, tendo mesmo feito pormenorizadas viagens de estudo pelo Nordeste, pela Amazônia e por Minas Gerais.

- Nota-se sempre em seus livros a presença do Brasil. Considera-se um nacionalista convicto?

Não. Apesar de minha orientação nacional, não sou um "nacionalista" no sentido apologista desta palavra. Considero-me um cidadão do mundo, e se trabalho a coisa brasileira, é pelo interesse humano que isso tem.

- E como vive dentro da vida? Suas preferências?

Gosto de comer e beber bem. Exerço a preguiça sistematicamente porque considero a preguiça uma necessidade para os povos de climas quentes. De resto, somente um pequeno contato com as minhas obras, me demonstra muito mais marcado pelo tropicalismo que propriamente pelo nacionalismo.

   Abrimos aqui um parênteses para assinalar mais uma originalidade deste espírito incomum. Mário de Andrade possui uma bela biblioteca e é bibliófilo. Tendo o bom gosto de conservar intactos os livros que lhe dedicam, compra outro exemplar da obra para lê-la. Possui assim a mais bela coleção de duplicatas da bibliofilia nacional. Sua coleção de gravuras e desenhos é também notável com mais de mil documentos. Do mesmo interesse é a sua coleção de obras de arte populares brasileiras (sic). Continuamos com nossas perguntas, aproveitando o bom humor do escritor:

- Sua obra tem recebido muitas restrições e ataques?

Se tem, não sei. Nunca leio ataques à minha obra nem cartas anônimas. Só leio elogios. Quando me perguntam a razão desse método, respondo que leio os elogios porque eles não me impedem de guardar a opinião que tenho sobre minhas próprias obras; não leio os ataques porque podem ser verdadeiros e não leio as cartas anônimas porque tenho receio de modificar o juízo otimista que faço da humanidade.

- Tem algum livro novo no prelo?

Tenho um livro de poemas: Girassol da madrugada, que sairá em edição limitada, ilustrado por Santa Rosa. E preparo também um romance que pretendo terminar ainda este ano e que, talvez provisoriamente, tem o título Quatro pessoas.

E fazendo um ar sarcástico:

É excusado dizer que as quatro pessoas são principalmente três.

- E ...

Não, rapaz. Basta de perguntas. Vamos gozar a tarde. Você Já tem material bastante para fazer o seu "vale". Vamos tomar pacificamente o nosso "chopp".

E ali ficamos por mais quase uma hora a "gozar a tarde". Outros intelectuais foram se chegando, e logo era uma volta cerrada em torno da banca, onde Mário de Andrade, com aqueles óculos enormes aquela risada ribombante, pontificava como um deus, pletórico de saúde e humor
______________

- Por que escrevo?

- Como escrevo?

- Onde escrevo?

- Música

- Política

- Crítica literária

- Relações literárias

- Entrevista 2 (1939)

- Academia
- Biografia