"Qual é o meu Credo? Por que eu escrevo? Sabe? Eu penso assim: cada ser humano tem seu lugar no mundo eno tempo, de acordo com a sua capacidade. A missão que lhe cabe desempenhar não é nunca maior do que a sua capacidade de desempenhá-la. Ela consiste em preencher esse lugar, servindo à seus semelhantes e à verdade. Mas quero sublinhar que o Credo e a criação artistica são inseparáveis. Não pode haver diferença entre o homem e o escritor. A vida deve corresponder à criação e a criação deve justificar a vida. O escritor que não respeitar essa regra. Um escritor que não respeitar essa regra não presta como ser humano nem como escritor. O escritor está frente a frente com a eternidade responsável perante seu próximo e perante si próprio"
Fonte: Veja, nº 120, 23/12/1970
"A gente faz isso tudo assim meio sem saber. Mas a recuperação da linguagem literária me preocupa, e muito. O bom seria reunir, depressa, tudo, todas as palavras - de Portugal, do Sertão, dos tupis, dos clássicos, galicismos, gírias, termos novos arrancados dos desvãos do latim, tecnicismos, cinemismos, neologismos premiados em concursos - e depois confiar a uma comissão de artistas a alta tarefa de selecionar as necessárias, as 'boas', para a elaboração da nova língua - que seria simples, formosa, exata em força e sutileza. É preciso uma montanha de minério, para poder-se extrair uma grama de metal raro. Se a gente pudesse ensinar às crianças o idioma falado no céu, este mundo melhorava tanto que era um espanto. Sejamos modestos, porém. Os que gostam da 'língua brasileira' deveriam querê-la pelo menos como filha sensata e prática, que, quando sai da casa materna, traz consigo o maior número de de jóias da família que pode obter. E a língua portuguesa é mãe tão desprendida... Uma palavra é coisa sagrada, em todos os sentidos. Já leu aquele assombroso poema 'Aporo', em A Rosa do Povo? Não é novo gênero, mas é espécie inédita, que, para o meu uso, batize de tecnema, palavra que os gregos tinham. Dá matéria para uma sagarana de meditação... E o relaxamento da língua escrita é perigoso, leva à pobreza. Quando a gente abrir os olhos, já será tarde. O capiau está mais certo: comoo vocabulário, involuntariamente escasso, de que dispões, ggosta da ostentação, de opulência, de beleza, de inventar nomes. Para os defeitos dos seus cavalos e as cores dos seus bois, dá-se a um luxo incrível de termos exatos, marcando as mínimas gradações. Gente esperta!... Gosto, muitas vezes, do escritor desleixado, mas isso apesar do seu desleixo. Enfim não quero falar mais nisto porque eu mesmo, que em literatura aceito conselhos e observações acerca de quase tudo, fecho questão, quando tocam no estilo. É melhor bricar com estas palavras bonitas: malga, marna, marga, tagra, lala, granja, plaga, barda, dal. No primeiro livro que Deus me mandar escrever, hei de usar todas eleas,nem que seja como nomes de gatos e cachorrinhos importados, digamos: de Coimbra. Quando penso que havia um bichinho de pêlo rico, que se chamava 'talpa' e passou a se chamar de 'toupeira', fico desanimado do programa de progressos do após-guerra",
Fonte: LIMA, Sônia Maria van Dijck (org). Ascendino Leite entrevista Guimarães Rosa. 2ed. João Pessoa: Editora Universitária, 2000 (Entrevista publicada originalmente n' O Jornal (RJ), de 26/05/1946.