"Evidentemente, não existe uma sistemática, mas, em termos gerais, o poema, em mim, nasce de um fato qualquer que me tira o equilíbrio. Eu costumo dizer que é o ‘espanto’ a que se referia Platão: o conhecimento nasce do espanto. É um pouco isso: algo que não precisa ser nem fantástico, uma coisa qualquer. No meu último livro existe um poema que se chama ‘O cheiro da tangerina’. Eu estava na sala, um filho meu descascando tangerina; de repente, aquele cheiro que eu já havia sentido ao longo da vida, desde menino, me rompeu o equilíbrio, me tocou como uma descoberta: eu, na verdade, nunca tinha sentido de fato o cheiro de uma tangerina. Esse estado que eu fiquei, por uma fração de segundo, fica reclamando de mim a expressão. O que significa esse cheiro, como falar disso? Sinto que descobri algo, mas não sei o que é que eu descobri. Eu me nego a fazer uma literatura abstrata, com especulações, com aquela coisa palavrosa, destituída, desligada desse núcleo vivenciado que deu origem ao poema. Qualquer coisa que vá nascer ali tem de estar ligada àquele momento original. É assim que nasce: algo se rompe, o tecido conceitual do mundo, o meu tecido conceitual – cada um tem o seu –, que mantém o mundo em ordem, que define tudo; esse tecido se rompe a qualquer momento e é preciso restabelecer o tecido, essa ferida que se abre. O poema é, de certo modo, a tentativa de incluir, eu não diria no mundo conceitual, no mundo humano experiências que não estão formuladas. O poeta formula o que não está ainda formulado e, nesse sentido, ele amplia o universo humano."
Fonte: RICCIARDI, Giovanni. Auto-retratos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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