Ferreira Gullar
Entrevista conduzida por Weydson Barros Leal, publicada no site http://entrevistasempauta.blogspot.com.br em 16/062011
Weidson - Há uma geração de poetas, posterior à sua, para quem os referenciais literários são completamente diversos dos chamados "luminares" da poesia moderna brasileira. Fale um pouco sobre isso.
Gullar - Na verdade, é uma geração que absorveu uma certa desordem e deu a ela uma ordem que é diferente da nossa. Para eles, Quintana, por exemplo, tem uma importância muito maior do que Drummond e outros que foram os orientadores, os "luminares" da nossa geração. O Quintana tem mesmo algo muito pessoal, é um poeta muito interativo, que tem muito humor, ele é diferente... E é por isso que eu também acho importante abrir a discussão, torná-la um pouco mais aberta a coisas diferentes da gente.
Weydson — Numa entrevista recente, você disse que escreve esporadicamente, e só quando tem "algo novo a dizer". Você acha que o que difere o bom poeta dos demais é esse discernimento na hora de escrever?
Gullar — Sim, claro. Eu não estou querendo estabelecer um "democratismo" que inclui tudo. Mas eu acho que de um determinado patamar em diante todos são poetas, quer dizer, quando você chega no patamar de Vinicius, Jorge de Lima Murilo Mendes, Drummond, todos são poetas... Eu me lembro quando comecei a ler Murilo Mendes — eu era garoto em São Luiz — Mundo Enigma, Poesia Liberdade, eu achei aquilo tudo deslumbrante. Eu deitava na minha rede, à tarde, e punha do lado uma pilha de livros. Todos os dias eu lia Manuel Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Eu adorava todos eles. Eu não estabelecia aquela coisa de que um era melhor de que o outro. Quando eu lia Bandeira, eu gostava daquela emoção contida, pura; depois eu pegava o maluco do Murilo Mendes e lia aquelas coisas: "as nuvens jogam boxe"..., depois ia para Drummond, aquele troço mais denso... Eu sempre procurei passar pros jovens, depois, quando eu já estava mais experimentado, essa idéia da pluralidade, sempre a idéia da pluralidade.
Weydson — E nessa época de S. Luiz, ainda dentro dessa idéia da pluralidade, você chegou também a conhecer poetas estrangeiros?
Gullar — Sim, claro. Alguns eu já havia tido oportunidade de conhecer. Foi aí que eu comecei a aprender francês por minha conta. Pegava umas traduções. Um dia um amigo me mandou as Elegias de Duíno, e eu adorei o Rilke. Agradeci com uma carta entusiasmada dizendo "que poeta maravilhoso", daí eu saía atrás de outros livros desse poeta. E assim, nessa procura, eu fui conhecendo Valéry, Rimbaud, Mallarmé.
Weydson — Que poeta, ou poetas, você recorda de ter, nessa época, mexido realmente com você?
Gullar — Na verdade, não foi um ou dois. Alguns poetas me revelaram o que era a poesia. Porque o fundamental é saber "o que é a poesia". Você nunca chegará a Teresina se não souber pra que lado fica Teresina. Eu não digo que a poesia seja uma coisa definível, mas você tem de saber o que é isto: "aonde eu quero chegar"; ou seja, esse "aonde eu quero chegar" tem de existir. Eu me lembro quando li Fernando Pessoa, Drummond, Valéry, e alguns versos me marcaram ao me mostrar o que era a poesia, como quando Valéry dizia: "Beau Ciel, vrai ciel, regardez-moi, qui change". Isso não é apenas uma idéia, mas a sua colocação diante da realidade...
Weydson — Então a poesia, como a arte em geral, é uma forma de fugir da realidade?
Gullar — Eu não diria que é uma forma de fuga, porque ao mesmo tempo ela procura tomar a vida possível. Ela não quer sair da vida. O homem não faz poesia para sair da vida, ele faz poesia para ter coragem de viver. Além disso, há o fato de que o homem nasce pra morrer. Então, nada tem sentido. E por isso a religião existe, porque ela é a resposta para isso, porque ninguém agüenta...
Weydson — Você tem religião?
Gullar — Não, infelizmente.
Weydson — Por que "infelizmente" ?
Gullar — Porque é bom ter religião. A religião é que alivia você desse pesadelo de que o cara nasce pra morrer. Entremente, você ama, faz poesia, se diverte, faz o que quiser. Agora, numa certa altura da sua vida, quando você leva uma porção de cacetadas é que a morte passa a existir - porque no começo a morte é apenas ficção: você sabe que se morre, mas você não pensa que você vai morrer — mas no momento que ela passa a existir, no momento que morre seu filho, aí é verdade... Na hora que morre o seu amigo querido, aquele que lutou com você, que era seu companheiro (ou sua companheira) e que não existe mais, aí...
Weydson — Apesar de dizer que a morte era um ficção, em toda sua vida — pela própria condição de intelectual contestador, poeta, pensador, em épocas de ditaduras e regimes totalitários — você esteve sempre no limite do risco de morte, ou muito próximo desse limite...
Gullar — A morte é um tema permanente em minha poesia, e eu sempre achei insuportável ter que morrer. A minha poesia está cheia disso, dessa luta com a morte. Mas, hoje, olhando bem, eu vejo que aquilo era brincadeira. Porque eu nunca tinha sentido de fato a morte, eu nunca a tinha palpado.
Weydson - É mais fácil, então, escrever sobre a morte quando não a sentimos tão próxima?
Gullar — Até o amigo, ela ainda é suportável; o negócio é quando você perde um filho... Porque no fundo, esse é o processo da própria vida. E talvez o homem seja constituído de maneira a não conhecer a realidade toda de uma vez, porque, assim, acho que ele não agüentava...
Weydson — Isto quer dizer que o conhecimento da "verdade" seria insuportável?
Gullar - Mas a verdade absoluta não existe...
Weydson — Então como funciona, a seu ver, o processo da criação de tudo?
Gullar — Eu sou uma pessoa perplexa diante do absurdo da existência. Quando eu ouço na televisão que todo o sistema solar é algo em torno de O,2% da massa do sol e que o sol é uma migalha no que se conhece do universo, é uma loucura... (risos) Então o que é meu gatinho (mostrando o seu gato no tapete) dentro disso tudo? Essa idéia de que houve um tempo em que era o Nada é um absurdo, não é possível imaginar que algum dia era Nada... mas é fascinante imaginar que cada um de nós faça parte dessa coisa extraordinária que é o universo.
Weydson — Você acha que os críticos dão excessiva importância à sua poesia política ?
Gullar — A fase estritamente política de minha poesia é muito reduzida, e o número de poemas realmente políticos é insignificante. Mas os críticos, de repente começam a me colocar como se eu fosse um poeta político porque, como cidadão, fui realmente muito atuante. Eles confundem a coisa. A mesma coisa é o concretismo na minha poesia. Esse é um período que dura na verdade poucos anos, e as obras que escrevi aí são de quantidade reduzida. E se eu tivesse insistido naquele caminho eu jamais teria escrito o Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Na Vertigem do Dia, coisa que me gratificam porque eu sei que representam uma experiência de vida e emoção nas pessoas. E eu sei disso porque as pessoas me dão retorno.
Weydson — Sempre que você fala "Academia" eu sinto algo distante, ironicamente distante. Você nunca pretendeu, ou não pretende, entrar pra Academia ?
Gullar — Eu acho que Academia e Poesia são incompatíveis. Eu não tenho nada contra as Academias, mas acho realmente que a cultura tende a se institucionalizar. É um absurdo imaginar a cultura como mera manifestação individual ou sempre marginal. Isto não tem saída. Pelo próprio processo da sociedade a tendência da cultura é se institucionalizar e nisso não há só perdas, há ganhos. Isto é uma coisa. Agora, eu, pessoalmente, com o meu temperamento, e com a minha maneira de ver a poesia, eu me sentiria mal, seria como se eu estivesse me traindo.
Weydson — O que aconteceu entre Josué Montello e Antônio Houaiss, pela sucessão da presidência lhe incomoda?
Gullar — Não, porque eu acho que aquilo é próprio da Academia. Nada mais natural, na Academia, do que isso. Porque, afinal, se trata de uma entidade onde está se disputando o poder. É um aparato social que como todo aparato social tem lá suas coisas.
Weydson — Mas como você vê isso numa Academia de Letras?
Gullar — O que eu acho é que a Academia é uma instituição anacrônica. Primeiro o cara se vestir de fardão e espada, cara, da Academia tem minhas amigas, pessoas que eu admiro como grandes escritores. Tem muitos, dentro da Academia, de modo que essa minha crítica não vai em detrimento deles. Agora, que a Academia é anacrônica, é. Não serve pra nada. Para que serve a Academia? A Academia não tem função alguma. É uma instituição meramente consagratória. Mas aí ela peca. Porque ela consagra, muitas vezes, quem não tem razão de ser consagrado.
Weydson — Mas qual a diferença entre a Academia e o Conselho Federal de Cultura, do qual você faz parte ?
Gullar — O "Conselho" é outra inutilidade. Veja vem, o Conselho não "aconselha"! Pode até aconselhar, mas o ministro não ouve! Então, serve para quê ? Não serve pra nada.
Weydson — Mas isso não depende de que o Ministro esteja à frente do Ministério da Cultura?
Gullar — Não, não depende. Isto é uma outra coisa. Esse ministro aí está desrespeitando as pessoas. Porque o Conselho existe institucionalmente. Dentro da estrutura do Ministério. O Conselho existe e ele não pode desconhecer isso.
Weydson — E o que seria preciso para resolver o problema?
Gullar — O ministro teria que abrir uma discussão com o Conselho para saber que destino dar àquilo. Uma reestruturação. De que maneira integrá-lo ao Ministério de modo eficaz. Isso é o que tinha que ser, e não fazer de conta que não existe.
Weydson — E por quê, então, o Conselho é uma "inutilidade"?
Gullar - Pelo seguinte: Quando o Conselho foi criado não existia o Ministério da Cultura. O primeiro Conselho criado dentro do Ministério da Educação exercia funções que hoje são do Ministério da Cultura, então, no momento que o gerou o pinto e o pinto saiu do ovo — quer dizer, o Ministério da Cultural saiu do Conselho de Cultura, e nasceu o Ministério, o Conselho deixou de existir; ele é uma "casca", o pinto já está "cantando de galo".
Weydson — Mas ainda assim, o Conselho não seria um fórum mais democrático para gerir a cultura do que um Ministério ?
Gullar — Mas o problema é que no momento em que você cria um Ministério da Cultura e há um Ministro, das duas uma, ou o Ministro dirige o Ministério ou o Conselho.
Weydson — Eu sei que até pouco tempo você participava ativamente do carnaval de rua do Rio de janeiro, saindo inclusive à frente da Banda de Ipanema, como um dos mais animados foliões. Você ainda participa do Carnaval de rua?
Gullar — Eu sempre tive muita ligação com a música popular, e quando me casei com a Thereza (minha falecida esposa) ela era uma pessoa ligadíssima em música popular, o que era uma de nossas muitas afinidades. Como ela era carioca, desde que nós nos conhecemos ela se interessava muito pelos desfiles de carnaval. Nessa época — logo que cheguei ao Rio — eu tinha visto apenas um desfile, sozinho, trepado numa caixa de querosene lá na avenida. A partir daí, nós começamos a ir todos os anos. No início era na Avenida Presidente Vargas, em 54, 55, por aí. Depois nós arrastamos pelo nosso itinerário o Vianinha, o Paulo Pontes, o pessoal do CPC (Centro Popular de Cultura) também, e passamos a freqüentar e participar de todos os desfiles. Mais tarde, a Thereza passou até a desfilar no Salgueiro.
Weydson — E você?
Gullar — Na verdade, eu nunca quis desfilar. Porque aí não combinava muito com a minha cabeça...
Weydson — E na Banda de Ipanema?
Gullar — Mas a banda era um bloco de sujos. Então saíamos em grupo, brincando e tomando cerveja. Mas depois a própria Banda de Ipanema virou uma bagunça e foi de certo modo tomada por um pessoal meio barra-pesada e começou a ser perigoso, porque de repente sumia teu relógio, etc. Por isso eu passei mais a olhar do que participar. Até dois anos atrás eu ainda fui...
Weydson — Você chegou a ter uma amizade próxima com Manuel Bandeira? Como era a sua relação com ele?
Gullar — Eu nunca me aproximei dos grandes poetas da época. Nem do Drummond. No entanto, com quem eu tive certa proximidade foi com o Murilo Mendes, mas porque ele era amigo do Mário Pedrosa, e dele eu me aproximei porque ele não era poeta, mas crítico de arte. Porque quando eu cheguei ao Rio eu procurava não os escritores, mas os artistas plásticos e os críticos, e especialmente o Mário Pedrosa. Como ele era muito amigo do Murilo Mendes, me levou à casa dele e eu me tomei amigo do Murilo Mendes. E fui várias vezes à casa dele. Agora, o Bandeira eu conheci porque eu trabalhava no jornal do Brasil e ele era colaborador do jornal. E o Bandeira era uma simpatia de pessoa. Murilo, que também era simpático, delicado, estabelecia uma ligação um pouco distante pelo temperamento dele. Já o Bandeira era uma pessoa afetuosa, e despretensiosa. Ele não tinha essa mística de gênio, imortal, não. Inclusive, na época, incluiu uma referência a mim naquele livro dele que faz um estudo da poesia brasileira e traz uma antologia. Ele incluiu um poema meu na então nova edição do livro em que é feita uma menção à Luta Corporal. E como ele sempre ia levar a colaboração dele no jornal a gente conversava, se encontrava na esquina. Ele sempre muito engraçado, muito irônico... Então nossa relação foi essa, de jornal...
Weydson — E com o Drummond?
Gullar — O Drummond era uma pessoa mais fechada. Com o tempo também nos conhecemos através de encontros ocasionais, no lançamento de livros dele, em enterros de amigos comuns... Evidentemente ele tinha conhecimento de minha poesia. Quando eu mandava um livro meu para ele, ele às vezes respondia com um bilhete, com um livro oferecido, sendo sempre muito cordial. Mas havia gente que ficava ligando pra ficar conversando no telefone. Como não sou muito de telefonar, nunca mantive esse tipo de relação com ele. No entanto, havia uma relação carinhosa e respeitosa entre nós. Eu o respeitando como um grande poeta, como um mestre, e ele sendo gentil comigo.
Weydson — Como você vê o momento literário no Brasil de hoje?
Gullar - É muito difícil fazer generalizações. Há momentos em que, não se sabe por que, se produz muita literatura de qualidade, e há momentos em que se produz quase nada. Ninguém sabe o que determina isso. Assim como em determinadas épocas a pintura e a música florescem e em outras não. Eu sempre cito como exemplo o final do século XIX na França. Nunca vi tanto pintor genial junto. É inacreditável: Manet, Monet, Pissaro, Renoir, Cézanne, e em seguida, Gauguin, Matisse, Rédon, e depois é Picasso, é Braque... É inacreditável quando você pega da segunda metade do Séc. XIX até os anos 20, a quantidade de artistas geniais. Mas de repente pára. Qual é o cara genial que tem lá agora? Ninguém. Esses fenômenos são inexplicáveis. É claro que, às vezes, o florescimento cultural depende do florescimento econômico. Por exemplo: Ouro Preto, antiga Vila Rica. Lá você teve o florescimento da escultura, da arquitetura, numa cidadezinha no interior do Brasil, no séc. XVIII. Em compensação você tem exemplos de grande florescimento econômico sem ter o cultural. É claro que sem riqueza nenhuma você não constrói igrejas; você não pode produzir livros se não tiver recursos; mas você pode ter os recursos e não produzir. Todo mundo sabe que a criação artística é individual. Você pode até trabalhar em equipe, mas é uma soma de individualidades criadoras. Não existe a criação coletiva por si mesma. Então, o que importa, é que agora um poeta, um garoto de 17 anos, esteja lá no interior do Rio Grande Sul, ou de Pernambuco, fazendo uma grande poesia que nós ainda não conhecemos.
Weydson — Você acha que hoje ainda é preciso que esses novos talentos venham para o Rio de janeiro para terem suas obras reconhecidas?
Gullar — É claro que, onde ele estiver, ele terá que se manifestar, que se expor ao público, do contrário ele não será conhecido. Mas eu acho que no Brasil de hoje não há mais aquela necessidade de vir para o Rio de Janeiro para ser reconhecido. Há vários exemplos de artistas e escritores que vivem em seus estados e são reconhecidos. É claro que o Rio de janeiro e São Paulo continuam a ter uma capacidade de repercussão maior; sobretudo o Rio. Aqui essa capacidade é até maior do que em São Paulo. Isso faz parte da história brasileira. Entretanto, o grande escritor, o jovem poeta não precisa morar no Rio de janeiro. O que acontece é que, como hoje não há crítica literária, há uma dificuldade muito grande pra tudo que é escritor e poeta, more ele no Rio ou não. A crítica literária acabou, não existe mais.
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Entrevista conduzida por
Vivi Fernandes de Lima e Rodrigo Elias,
publicada na Revista de História, de Biblioteca Nacional em 18/10/2010 http://www.revistadehistoria.com.br/ (22/03/2010)
Vira e mexe, isso acontece. Algum curioso o avista e pergunta: “É você, o poeta Ferreira Gullar?” “Às vezes”, devolve nosso entrevistado. Logo ele, que deixou o Maranhão aos 21 anos para se tornar um dos nossos mais famosos escritores, ensaístas, tradutores, dramaturgos, críticos de arte... “Não trabalho em poesia. Isso não se faz por vontade”. Este, aliás, foi o caso de sua obra mais conhecida, Poema sujo (1976), que, escrito no exílio, voltou por linhas tortas ao Brasil na voz do próprio poeta, numa gravação feita pelo amigo Vinicius de Moraes.
Gullar, na verdade, nasceu José Ribamar Ferreira em São Luís, em 1930. Ainda jovem resolveu adotar o sobrenome da mãe, já que uns poemas de qualidade duvidosa assinados por um certo José Ribamar Pereira estavam sendo atribuídos a ele. Quarto de onze irmãos, Gullar se mudou definitivamente para o Rio de Janeiro em 1951. Foi locutor de rádio, editor de revistas literárias, revisor de O Cruzeiro, jornalista e crítico no Diário Carioca e no Jornal do Brasil. Enquanto isso, levou adiante um projeto de experimentação: foi precursor do concretismo paulista e autor do Manifesto Neoconcreto (1959). Em 1961, deixou a vanguarda de lado em nome do engajamento político. “Eu me envolvi com a poesia política a partir de um contexto social. Mas não é a política que define a poesia”, apressa-se a esclarecer.
Recentemente agraciado com o Prêmio Camões, o principal da literatura de língua portuguesa, Gullar está prestes a publicar um novo livro de poemas, Em alguma parte alguma, e recebeu a RHBN em sua casa, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Hoje o poeta se divide entre os poemas, análises e reflexões sobre artes plásticas, as crônicas semanais na Folha de S. Paulo e os muitos debates para os quais é convidado. Nesta conversa, nosso entrevistado fala um pouco de cada um desses afazeres. Para ele, a crítica de arte desapareceu, a arte contemporânea não faz jus ao nome e a reeleição é um perigo. Pois é: Gullar preserva intacto o espírito crítico que faz dele um dos principais e mais controversos pensadores do país.
REVISTA DE HISTÓRIA O que significa para você ter recebido o Prêmio Camões este ano?
FERREIRA GULLAR Bom, eu tenho pouco a dizer sobre isso porque o prêmio tem a importância que é atribuída a ele. Eu só posso dizer que fiquei muito contente com o reconhecimento do meu trabalho.
RH Você ficou 12 anos em silêncio entre os livros Barulhos (1987) e Muitas Vozes (1999). Na época, chegou a dizer que pensou que fosse parar de escrever poemas, mas que isso fazia parte do processo de criação. Como é esse processo?
FG Na verdade, o que aconteceu entre o Barulhos e Muitas Vozes é comum acontecer. Não se trata de silêncio. Eu escrevo pouco e, consequentemente, não posso publicar um livro por ano, porque às vezes fico um ano inteiro sem escrever poema algum. Então, tenho que esperar um tempo até considerar que o livro tenha um número suficiente de poemas ou que o livro esteja pronto, que o que ele expressa está, de fato, concluído. Não é que eu fique em silêncio.
RH Trabalha em algum poema neste momento?
FG Eu devo publicar um livro de poesias este ano. Mas preciso dizer: não trabalho em poesia. Isso não se faz por vontade. Poesia é uma coisa que as circunstâncias determinam. Eu não posso decidir escrever um poema hoje à tarde. Não vai acontecer. O poema, pelo menos no meu caso, nasce de um espanto, de uma descoberta inesperada. Às vezes, fico um ano inteiro sem escrever sequer um poema. Então, preciso dar tempo ao tempo até ter certeza de que o livro já tem um número suficiente de poemas ou de que o que ele expressa está de fato concluído. Por isso, quando me perguntam se sou o poeta Ferreira Gullar, eu respondo: “Às vezes”.
RH Os jovens poetas se queixam de que têm dificuldades para publicar. Sempre foi assim?
FG Eu acho que sempre foi assim. Drummond, por exemplo, pagou seu primeiro livro. Até Sentimento do Mundo (1940), foi ele quem pagou as edições. Manuel Bandeira publicou Lira dos Cinquenta Anos (1940) com dinheiro dos amigos. Sempre foi assim a dificuldade para se publicar. Hoje pode até ser mais difícil do ponto de vista de editoras, mas tem a Internet, que possibilita que os poetas divulguem seus poemas com muito mais facilidade do que antigamente.
RH A poesia tem alguma finalidade?
FG Claro! Para início de conversa, a poesia é uma coisa necessária para quem faz e para quem lê. Seria fora de propósito que se fizesse alguma atividade humana desnecessária. As coisas são realizadas porque são necessárias de alguma maneira. O número de pessoas que se interessa por poesia evidentemente não é o mesmo daquelas que gostam de futebol, mas tem um público que precisa de poesia. O meu Poema Sujo (1976) é paradigmático neste sentido.
RH Como assim?
FG Eu terminei de escrever o Poema Sujo no exílio, na Argentina. Por que o Vinicius de Moraes trouxe o poema gravado para o Brasil? Por que o Augusto Boal insistiu para que o Vinicius me obrigasse a ler o poema? Ora, porque comovia as pessoas. O próprio Vinicius ficou com o olho cheio d’água quando o leu pela primeira vez. No dia seguinte ele já voltaria para o Brasil. Nós demos um jeito e fizemos a gravação. Se não prestasse, iam achar que ele estava louco. Só que as pessoas se apaixonaram pelo poema. Caso contrário, ele não aconteceria. Não existe amigo, nem decreto presidencial, nem instituição alguma que faça sobreviver uma coisa que não interessa às pessoas. É só isso. A poesia se mantém porque nos toca e se faz necessária na vida das pessoas. Agora, quando não presta, não presta. E aí não há milagre.
RH O interesse pela poesia tem alguma relação com o gosto pela política?
FG Não. Quando comecei a escrever, não tinha nenhum comprometimento político. Os meus primeiros livros, Um Pouco Acima do Chão (que considero imaturo e não o incluí em minha Poesia Completa) e A Luta Corporal (que, para mim, é a minha verdadeira estreia), não têm nada de política. Não acho que a poesia tenha esse dever. Não é a política que define a poesia. Isso é uma opção de cada poeta, muitas vezes determinada pelas circunstâncias. Esse talvez tenha sido o meu caso. Eu me envolvi com a poesia política a partir de um contexto social. A minha poesia só ganha um caráter político de 1962 a 75. Mas também nunca fui de fazer só poesia política.
RH É possível pensar em identidade nacional na arte hoje?
FG Claro. As culturas são nacionais. A minha vida não é universal. Eu me levanto, fico dentro da minha casa, moro em Copacabana... Todas essas coisas são particulares. Nós vivemos no particular. Não existe uma cultura universal. Nascida onde? Na atmosfera, no satélite artificial? Agora, claro que, na medida em que a civilização se torna global, em que os meios de comunicação e o desenvolvimento econômico e tecnológico possibilitam um contato e um intercâmbio maiores, a natureza dessas relações entre o universal e o particular mudam.
RH Neste sentido, como vê o papel da globalização?
FG Eu não sou contra a globalização. Sou contra o que ela tem de negativo. A globalização começa com as Navegações. E isso é enriquecedor. O que é negativo é transformar tudo em estereótipos. Houve um período em que a música popular tinha virado, toda ela, música pop. É bom que uma expressão se torne internacional e que eu conheça o que os jovens estão fazendo em outros países, mas não pode ser uma coisa a tal ponto acachapante que destrua o que eu realizo aqui no meu país. Aí não é legal.
RH Nesse cenário, ainda há espaço para vanguardas?
FG Não. A História não viveu de vanguarda a vida inteira. Não havia movimentos ou manifestos no século XVII. Eles nascem muito tempo depois. Foi um fenômeno do século XX. A vanguarda ampliou as capacidades de expressão das linguagens artísticas, criou uma perplexidade muito grande, e uma liberdade sem limites. O que é perigoso. O próprio Picasso, o principal desintegrador da linguagem velha, chegou a dizer: “É preciso ter alguma norma, algum princípio”. Ele achava que a coisa estava virando bagunça. Pra mim, Duchamp é o personagem que encarna esse drama que surge no século XX, com a desintegração das linguagens anteriores e a busca de um outro tipo mais livre de arte.
RH Por quê?
FG - Duchamp e os dadaístas nos levaram a uma ruptura, a uma radicalização total, a favor de toda e qualquer norma, princípio ou coerência. Ser dada é ser antidada. A negação pela negação. Ao mesmo tempo em que negava a arte em obras como o “Urinol”, Duchamp também a afirmava em outros trabalhos. O seu “Grande Vidro” levou oito anos para ser realizado. Ele passou doze anos fazendo sua última obra, o “Etant Donnés”, e morreu sem terminá-la. Era uma pessoa fora dos quadros estabelecidos, que abandonou a arte e passou doze anos jogando xadrez. Uma personalidade especial.
RH O que acha da arte de hoje?
FG Atualmente temos a chamada arte contemporânea ou conceitual. Na minha opinião, é uma coisa que pouco tem a ver com arte.
RH Por quê?
FG É só ver. Você acha que uma exposição que nos mostra larvas de mosca é arte? Pode até ser muito interessante, mas não tem nada a ver com arte. Lá no CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil] tinha uma mulher que expunha uma porção de pedaços de madeira com uns alto-falantes no meio. O que isso tem a ver com arte? Eu chamo isso de “Caninha 51, a boa ideia”. Tanto podia ser isso, aquele amontoado de ripas de madeira, como podia ser uma porção de gravetos, pedras, ou qualquer coisa. Nada é determinante ou necessário. De fato, alguém teve uma boa ideia e colocou aquilo ali. E me diz uma coisa: o que se faz com aquelas tábuas? Vai guardar? Não. Aquilo já foi exposto em outro lugar, jogou-se tudo fora e depois foram compradas mais ripas... É uma besteirada. Mas não se pode dizer isso. Eu sou o único crítico que diz essas coisas. Todo mundo fica com medo de parecer retrógrado. Todo mundo é avançado, moderno. Eu estou cagando para a modernidade.
RH Sua apreciação é baseada nas diferenças entre expressão e arte, não é?
FG Sim. Arte é expressão, mas nem toda expressão é arte. Se eu pegar essa folha de papel e amassar, estarei me expressando. Um quadro em branco, sem nada, não é uma expressão? É. Se eu fizer um traço preto, é outra expressão. Arte não é isso. Não é feita nem pela natureza, nem pelo acaso. Arte é uma coisa do ser humano. A arte existe porque a vida não basta, a vida é pouca. E a arte nos traz coisas belas, fascinantes, atordoantes, maravilhosas. É para isso que existe. Não serve para mostrar larva de mosca.
RH A realidade não é arte?
FG De maneira nenhuma. A arte é feita para mudar a realidade. A arte inventa, ela não revela realidade. É uma questão de necessidade. Se você ler o Saramago, vai entender que aquele cara tinha necessidade de escrever aquilo. A vida dele era aquilo. Ele não estava brincando, não estava de farra. Ele precisava extrair de alguma coisa palavras, frases e imagens que inventem um mundo do qual ele necessitasse. Certa vez, um artista espanhol me mostrou umas fotografias de uma exposição que ele tinha realizado em Madri. Eram imagens de raízes de árvores enormes que foram tiradas da terra. Eu perguntei: o que você fez com essas raízes? Ele as tinha jogado fora. Você imagina se o Rodin vai jogar fora as esculturas dele? Entendeu? Isso fica entre a vigarice, a esperteza e a burrice.
RH Mas existem exceções?
FG É claro que também no meio disso existem outras expressões, que já tendem a buscar uma coisa com alguma beleza e interesse. Estou falando de maneira negativa de algo que é predominante. Nem todos são realmente destituídos de sentido. Na verdade, acho que os artistas estão naturalmente começando a se tocar e ver que o que estão fazendo não adianta de nada. Daqui a pouco, o cara tem 70 anos e só tem as fotos das exposições que ele fez, mais nada. Não existe obra porque ele expôs um troço que na semana seguinte foi desfeito. Como tudo é happening, fica só a foto do acontecimento. O cara ficar nu no museu é obra de arte; nu na rua, vai preso. Então, quer dizer que o museu é que faz ele virar obra de arte? É o espaço institucional que dá valor a ele? Que diabo de vanguarda é essa? Quando eu era rebelde, eu não queria saber de museu, de porra nenhuma. Rebelde é rebelde. Agora, o cara é rebelde abençoado e subvencionado pela instituição. Vai enganar outro! Que revolução é essa? Isso tudo é mentira, é uma grande farsa. A Bienal de São Paulo é de vanguarda, sabiam? É instituição de vanguarda. Já ouviram falar nisso? Pois é. Ou é instituição ou é de vanguarda! Ou você é institucional ou você é rebelde. Quer dizer: eu sou guerrilheiro, mas não pego em armas e almoço com o presidente! Então é tudo de mentira, virou bagunça, porque libertou tanto que agora é o vale-tudo.
RH Costuma ser procurado por jovens artistas?
FG Uma vez, uma moça brasileira chegou para mim se queixando de que estavam imitando as obras dela. Ela dizia: “Eu inventei dar nó em corda, fui eu que fiz, e agora está o cara expondo no museu uma porção de corda com nó". Eu não aguentei e respondi: “Foi você que inventou? Mas você sabe que, lá em casa, minha mãe dava nó em corda também, os marinheiros, o pessoal da Praia do Caju...” Foi ela quem inventou dar nó em corda, vejam vocês, e ninguém sabia.
RH A crítica de arte tinha um papel importante nas décadas passadas. O que a fez perder espaço?
FG Não sei. Realmente, a crítica de arte era diária. Na verdade, tratava-se mais de colunas com informações, notas e, às vezes, artigos críticos. Quando uma exposição era inaugurada, o articulista escrevia, fazia a crítica daquilo. Isso não existe mais. Em geral, a crítica de arte aparece na apresentação de uma exposição em que o curador assina um texto, que é muito pouco crítico, é promocional. Ele está lá para justificar o que está fazendo. Curadoria, por definição, não é crítica. Ao contrário. Aquele crítico militante praticamente desapareceu. Mas, veja: não foi somente a crítica de arte que sumiu dos jornais e das revistas; a literária também perdeu espaço.
RH Sente falta disso?
FG Sim. Mas quem sente mais falta disso são os jovens poetas. Eles não têm quem aprecie os seus livros. Eles publicam e a coisa fica em silêncio, não tem juízo crítico algum sobre o que eles fazem. Isso é muito negativo. Não vejo motivo efetivo para isso. Talvez tenha um pouco da cabeça dos responsáveis pelos jornais, que costumam subestimar a arte, a literatura. Nós estamos na época da civilização midiática. O que conta é a televisão, o popstar, essas coisas. É uma banalização de tudo. Em função disso, a arte e a poesia, foram colocadas em segundo plano. Isso é uma bobagem, um desserviço à cultura prestado pela imprensa.
RH Você participou da reforma editorial e gráfica do JB nos anos 1960. A imprensa brasileira carece de reformas como aquela?
FG É muito difícil opinar sobre isso. Acho que as coisas acontecem, em parte, por necessidade. A impressão que se tem hoje é que os jornais estão acabando. O Rio de Janeiro tinha uma quantidade enorme de publicações. Hoje tem O Globo, que é o jornal que toma conta, o JB, que está aí, morre, não morre [A entrevista foi feita três semanas antes da impressão do último número do JB], e um ou outro mais popular. E o caso do Jornal do Brasil é bem particular. O JB era um jornal de anúncios classificados. Não tinha nem redação. Era uma publicação feita de transcrições de noticiários de diversas agências. Ou seja: ninguém poderia prever que o JB provocaria uma mudança radical no jornalismo brasileiro. E as coisas aconteceram muito por acaso. Aliás, o acaso tem um papel muito importante na história e na vida das pessoas. Mas o acaso só alcança um resultado determinado se coincidir com alguma necessidade. O mero acaso não resolve.
RH Como se deu a reforma?
FG O Reynaldo Jardim achou que devia fazer um suplemento literário no JB. Ele começou reformando o suplemento feminino e criou um caderno literário, que, por coincidência ou acaso, nasceu praticamente na mesma época da poesia concreta. E esse suplemento tornou-se o veículo para aquele movimento, que teve grande repercussão na vida literária do país. O JB ganhou uma projeção que jamais havia sonhado. Isso fez com que todo o jornal fosse reformado. É claro que a imprensa brasileira estava atravessando um período complicado. Uma mudança se fazia necessária. Na verdade, o Diário Carioca foi a primeira publicação a mudar o modo de redigir as notícias. Eu mesmo fui formado lá.
RH Poderia falar dessas mudanças?
FG A mudança principal dizia respeito a um modo objetivo de redigir a notícia. Até aquele momento havia o que chamamos de “nariz de cera”. O sujeito começava o parágrafo dando uma lição de moral qualquer. A redação moderna não tinha nada disso. A opinião era suprimida. A notícia era a melhor alternativa. Essa maneira de redigir a notícia objetivamente, respondendo às perguntas quem, o que, quando, onde, como e por que, era o que vigorava no Diário Carioca. E isso foi para o JB.
RH O que o tem comovido?
FG A coisa mais difícil é me livrar de emoção. Eu não aguento mais a televisão. Todo dia é aquela tragédia. Gente morrendo em Pernambuco, famílias destruídas por inundações. E nada se faz que dê condições que impeçam esses desastres, que melhorem a vida das pessoas. É só propaganda, propaganda, propaganda. O que o presidente gasta com propaganda é uma nota preta e não precisa nem prestar conta. Eu estou sendo chamado pelo imposto de renda para prestar conta do dinheiro que eu dou para a minha filha. E o aumento que eles estão dando agora no Congresso? Eu estudei Economia quando estava em Moscou, e o professor lá falava: não há milagre econômico. O que eu boto aqui vai faltar lá. Mas aqui parece que há milagres. No Brasil é tudo milagroso.
RH Está desanimado com essa eleição?
FG Não, não estou desanimado. E nada disso é novidade. Estou habituado a ver isso. É sempre assim. Eu me preocupo com as consequências da eleição porque acho que a alternância no poder é fundamental. Ela evita que grupos determinados permaneçam fazendo as mesmas coisas. A alternância é uma das poucas coisas fundamentais. A pior desgraça foi a invenção do Fernando Henrique de promover sua reeleição por puro interesse. É aquele negócio: faço pelo meu interesse, e o preço é o país que paga.
RH E por muito tempo.
FG Pois é. Todo mundo se reelege. É muito difícil que governador ou presidente não consigam se reeleger. Eles já têm toda a máquina. A competição é desigual. O cara vai para a rua fazer propaganda, é seu principal cabo eleitoral. Vamos ver no que vai dar. Eu não sou pessimista porque acho que a própria história se corrige. Mas é uma pena que, em geral, ela só faça isso quando está nas últimas. Antigamente, sabe como isso era feito? Golpe militar. Felizmente, isso acabou. Pelo menos, podemos reclamar.
X.X.X
Entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 15/10/2001, sob o comando de Paulo Markun, com a participação de Ester Góes, Augusto Massi, Ivan Marques, Aracy Amaral, Reinaldo Azevedo, Alcides Villaça e Manuel da Costa Pinto.
Paulo Markun: Boa noite. Nesses tempos em que temos falado tanto de guerra, vale muito, talvez mais do que normalmente, dar voz aos poetas. Vale falar das idéias, das questões da vida e do mundo vistas e sentidas por quem faz poesia. E o Roda Viva entrevista esta noite um personagem que há 50 anos faz da poesia seu testemunho de vida: Ferreira Gullar.
[Comentarista]: O cineasta Glauber Rocha escreveu sobre ele que os jovens poetas das províncias nacionais, nos anos de 1950, ouviam falar de um retirante do Maranhão, moreno e magro como o filho de Antônio Conselheiro [(1830 – 1897), líder social brasileiro que conquistou dimensão messiânica ao liderar a Guerra de Canudos] que chegara ao Rio de Janeiro escrevendo versos, artigos e fazendo discursos contra o academicismo total de nossas artes; e que medalhões tremeram diante do poeta, crítico de arte e do cronista recém chegado. Cinqüenta anos e cinqüenta livros depois, Ferreira Gullar, que nasceu José de Ribamar Ferreira, deixou suas marcas na literatura e nas artes do Brasil contemporâneo. Poesias, contos, crônicas, memórias, ensaios, teatro. Os primeiros textos vieram dos tempos de menino, talvez aos 14 anos, quando ele se misturava a outros tantos Josés de Ribamar pelas ruas de São Luís, por onde a vida se desdobrava aos olhos do jovem poeta. Sereno, aflito, visionário, o poeta, crítico e jornalista polemizou, radicalizou, provocou raiva, brigou com a vanguarda e com a esquerda. Produziu uma obra grande, revista em livros e levada à internet também na forma de poemas eletrônicos, de jogo digital de palavras. Do mar azul que vira marco azul, barco azul que vira azul. Do girassol que gira, que é Sol, faro, farol, girafa, girassol. O maranhense, poeta e crítico das artes, também mostrou outra face. Aventureiro da pintura, desenhou e coloriu geometrias. Caneta, lápis de cor e colagens deram visão ao concreto e ao neoconcreto que tanto povoou suas letras e suas discussões. Estilingue e vidraça, comunista perseguido, deixou o país em 1971 num Rabo de foguete [Rabo de foguete – anos de exílio, livro lançado em 1998] para um exílio de seis anos na Argentina. Foi nesse tempo que fez seu trabalho de maior repercussão: Poema sujo, que Vinícius de Moraes [(1913 – 1980), diplomata, jornalista, poeta e um dos compositores mais conhecidos do Brasil] considerou o poema mais importante escrito em qualquer língua nas últimas décadas. No ano passado, ganhou o Prêmio Jabuti de poesia [lançado em 1959. É o mais importante e tradicional prêmio literário do Brasil]. Foi quando Ferreira Gullar comemorou 70 anos de vida e registrava, em novo livro, sua antologia poética. Toda poesia [lançado em 1980] traz cinco décadas de poesias e palavras reunidas e escritas com a esperança de quem diz pretender que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e o desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens.
Paulo Markun: Boa noite, Gullar. Você escreveu, ao longo de sua obra, vários poemas relacionados com fatos do momento. Sobre a morte do Che Guevara, sobre a fundação do Partido Comunista - não do momento, no caso, você estava evocando mas...-, sobre a guerra do Vietnã. A primeira pergunta que eu faria é a seguinte: este momento que a gente vive de hoje, a partir dos atentados de 11 de setembro, de alguma forma mexe na máquina poética, digamos assim, dá um clique poético?
Ferreira Gullar: Não, pelo menos até o momento não deu, mas me atingiu profundamente. Não gerando poesia, mas é porque a época é outra no que se refere a mim. Na época que eu escrevi esses poemas de participação política, como se diz, a minha colocação diante da vida era outra, a situação do mundo era outra. Então, isso explica, de alguma maneira, porque que eu escrevi aqueles poemas naquele momento. Hoje não, o que não significa que eu não esteja participando do que está acontecendo. Esses fatos, os últimos, me atingiram profundamente e me deixaram muito preocupado.
Paulo Markun: Tem algum otimismo ainda?
Ferreira Gullar: Eu tenho, eu sou muito otimista. Eu costumo dizer que a coisa mais fácil do mundo é ser pessimista. O cara vai ficar velho, brochar e morrer, de modo que tem que ser pessimista [risos]. Então, ser otimista diante desta situação [é] que é difícil. Então, eu acho... porque a minha visão é que o mundo é feito por nós. O homem é uma invenção dele, se ele for pessimista, ele entrega os pontos. Porque não tem quem faça, é ele quem ter que fazer, não pode ser pessimista, tem que encarar a realidade e ir em frente. O pessimismo só desarma o cara, entendeu? Não conduz a nada.
Reinaldo Azevedo: Ferreira, você fez um primeiro... enfim, se eu fosse dividir a sua vida em períodos, você fez um primeiro rompimento importante na década de 1960, que então é chamado do seu rompimento com a vanguarda. Depois, na década de 1970, com Poema sujo, de algum modo um novo rompimento, aí eu já diria de natureza mais política, embora a questão estética estaria muito presente ali também. Era claramente um movimento feito ali pelo poeta e também pelo militante comunista. O que você reviu desse período para cá? Quer dizer, o Ferreira do Poema sujo acrescentou ou deixou de levar em conta quais aspectos, seja de questão política seja da questão cultural? Muita gente viu o Poema sujo como espécie de um testemunho, que irritou, parece, uma boa parte mais da esquerda do que dos conservadores. O que permanece daquele momento para cá?
Ferreira Gullar: Olha, para eu responder a tua pergunta, eu tenho que dizer o seguinte: eu vivo a vida a cada momento, vou refletindo sobre as coisas a cada momento. Eu me tornei comunista para surpresa minha, sabe, eu embarco nas coisas. Eu não tenho um projeto de vida, nunca tive, eu vou vivendo a vida, eu vou inventando a vida. Então, por exemplo, o Poema sujo, o primeiro rompimento não é com a vanguarda. O primeiro rompimento é o autor de A luta corporal [1954] rompendo com o rapazinho que escreveu Um pouco acima do chão em linguagem parnasiana, rimado, metrificado, em 1949 [Um pouco acima do chão foi escrito em 1949] e tal, quando em 1922 já havia se acabado com tudo eu estava lá, contemporâneo de Olavo Bilac. Quer dizer, quando eu descobri a poesia moderna, aí eu me dei conta, aí rompi com aquilo drasticamente, me dizendo que eu jamais voltaria a fazer uma poesia rimada e metrificada. Eu jamais faria uma poesia com princípios, a priori, com normas com regras. Aí eu virei o radical, e enquanto isso era 1949. Em 1945 tinha acontecido o contrário, quer dizer, aí a poesia brasileira tinha voltado à rima e ao metro. Eu estava fora de época quando fiz os meus sonetos e fora de época quando quebrei com eles, porque ai a poesia brasileira já tinha voltado ao soneto. Eu fui andando, buscando caminhos e tal, sabe? A minha reflexão é quase sempre o que está feito, mais do que [o que] vai ser feito. Então, eu estou surpreso de saber que o Poema sujo tem alguma coisa contra a esquerda. O "Poema sujo" é um poema que não tem nada de político, na verdade, essencialmente [refere-se aqui à poesia e não ao livro de mesmo nome]. Aquilo ali é um poema sobre o tempo e a memória, é uma tentativa de resgatar a vida verdadeira. Porque eu me sentia como se eu estivesse à beira da morte. Eu estava numa Buenos Aires, numa Argentina que tinha acabado de sofrer um golpe militar, meu passaporte anulado pelo Itamaraty, anulado em cada página, eu não tinha para onde ir. Os meus companheiros, amigos conhecidos caindo, sumindo e outros fugindo. Eu falei: “bom, o que vai acontecer? É o último momento, eu vou dizer o que eu tenho que dizer enquanto é tempo”. Ai, escrevi aquele poema com a síntese para dizer o que eu tinha que dizer. Aí um amigo meu, que era um argentino, que inclusive pouco versado em psicanálise, ele falou assim: “Na verdade, cara, você foi atrás da sua cidade natal, você foi atrás de terra, na verdade é isso. Como você se sentia solto no espaço, sem rumo, sem apoio, você foi atrás da terra primeira, original”. Então talvez tenha sido isso. Inclusive, o poema tem lá uma coisa muito bonita sobre... eu falo assim: o meu coração, [é] amigo da classe operária. Aquilo não é demagogia, eu estava comovido falando de Bizuza [citada em Poema sujo], da minha tia, do seu coraçãozinho que bate anônimo e tal. E o meu também batendo, aliado da classe operária, meu coração de menino aliado da classe operária. Eu falo isso no poema, embora não seja um poema bonito.
Manuel da Costa Pinto: Você falou uma coisa que eu acho que é importante. Você fala que você estava atrás de uma vida verdadeira, através do poema, um resgate de uma terra, talvez uma memória e uma experiência autênticas, vinculadas à terra brasileira mesmo. Toda vez que a gente lê um poeta tem uma certa tendência, talvez errada, de tipificar e querer buscar o extrato, assim o fio condutor daquela obra. Então, no caso do Bandeira, talvez, seja uma contemplação sensual do cotidiano, no Cabral essas construções mentais. Você parece ser o corpo, essa dimensão muito física da memória, da apreensão da realidade, quer dizer, o corpo seria essa dimensão física, visceral necessária, como você mesmo gosta de definir sua poesia. Isso pode ser uma espécie de fio condutor, uma espécie de apreensão no mundo que está contida na sua poesia?
Ferreira Gullar: Pode ser, eu tenho muita dificuldade de ser abstrato, sabe, eu tenho muita dificuldade. Eu falo que sou preso ao chão. Eu digo: “para levantar do chão, é preciso dois motores de boeing” [risos].
Manuel da Costa Pinto: No entanto, você tem um trabalho muito intenso na abstração no sentido de sistematizar a arte, um crítico da arte, quer dizer, aí são duas dimensões antagônicas.
Ferreira Gullar: Mas aquilo ali é... também para a abstração... Não sei se você já reparou que a crítica que eu faço é sempre uma coisa diretamente ligada à materialidade da arte, quer dizer, é pouco teórico, é uma coisa que sai da observação do quadro, entendeu? Eu acho que é isso, também não sei porque não sou eu que tenho que definir.
Aracy Amaral: Gullar, eu acho que ele tocou num ponto muito fundamental. Porque o seu campo é, realmente, o da palavra, do passional, do sensual, do visceral, do telúrico. Isso está dentro de você, isso emerge de você, de tudo que você escreve. É por isso mesmo que a gente fica profundamente admirada da sua intimidade com as artes visuais. A partir do teu momento de chegada no Rio de Janeiro, quando você entra em contato, seja com Mário Pedrosa [(1901 – 1981), foi o iniciador da crítica de arte moderna no Brasil. Foi considerado o porta-voz da vanguarda carioca e incentivador do movimento concretista], seja com as Bienais de São Paulo, eu conheci você na segunda Bienal de São Paulo, quase como um discípulo do Mário Pedrosa.
Ferreira Gullar: Quase, não!
Aracy Amaral: O próprio discípulo, é o filho muito amado, como disse o Mário Pedrosa. E ele um confessou, naquela homenagem aos 80 anos de idade dele na Bienal de São Paulo, em 1980. Você tem consciência? Você deve ter consciência que, paralelamente ao seu trabalho na televisão, no teatro, na poesia, no ensaio, no romance, nas memórias, no que seja, você foi o crítico de arte mais importante depois do Mário Pedrosa aqui no Brasil, ou junto com ele. Ali você fez, digamos assim, um manifesto neo-concreto. Você tem consciência disso, eu acho, porque você tem uma lucidez. Porque hoje mesmo, no Instituto Cultural Itaú, você se referiu à sua satisfação enquanto autor de estar presenciando a reforma, digamos assim, visual do Jornal do Brasil, num momento assim, tão crucial, no momento em que você trabalhava com Amílcar de Castro [(1920 – 2002), foi o introdutor da reforma gráfica do Jornal do Brasil. Foi um escultor, artista plástico e designer gráfico brasileiro]. Mas além do "Manifesto neoconcreto", não foi só ali e não foi só nos poemas do seu período mais concreto, você chegou a fazer o primeiro poema instalação do Brasil, que eu saiba. Eu não conheço outro que tenha essa dimensão do poeta enterrado que você fez na casa do Hélio Oiticica. Eu gostaria até que você falasse um pouquinho sobre o como se dá e como você pode descrever, para as pessoas que não conhecem o "Poema enterrado", tal como você o definiu ou como você o concebeu. Muito interessante também, que no momento quer fazer a ruptura, que você acha... Uma vez, você me deu um testemunho muito bom que tinha chegado ao máximo, digamos assim, da síntese do enxugamento do poema concreto. Você quis, então, explodir tudo. Houve um artista, que hoje é considerado, digamos assim, um dos grandes artistas do nosso período e contemporâneo, que é o Hélio Oiticica. Ele foi contra, exatamente, que se explodisse e que fizéssemos, digamos assim, uma cultura radical. Esse é hoje um artista considerado radical. Então, eu queria que você falasse um pouquinho desse período seu como crítico de arte. Porque o Ferreira Gullar, com 29 anos, ele escreve sobre todas as etapas, digamos assim, todas as vanguardas do século XX, no Jornal do Brasil. Com 29 anos!, quer dizer, é uma idade em que a maior parte as pessoas acaba de sair da faculdade, da universidade. O Ferreira Gullar e eu mesma, nós pertencemos a uma geração que tínhamos que ler espanhol, inglês, francês, italiano, “o raio que o parta”, porque não havia as traduções que hoje em inundam as livrarias. É uma auto-formação que a gente considera extremamente valiosa e importante para a sua própria formação. O choque cultural de sair do Maranhão, chegar no Rio de Janeiro, absorver tudo aquilo e, seis ou sete anos depois você já estar dando luz àqueles textos no Jornal do Brasil é, digamos assim, quase que uma coisa muito crucial. Gostaria que você falasse um pouco sobre essa sua participação, seja como autor do manifesto do neo-concreto, como do "Poema enterrado" e desse seu projeto de uma explosão radical.
Ferreira Gullar: Eu vou tentar. Eu tenho que buscar uma linha aí, porque são muitas perguntas, muitas questões. Eu vou botar uma linha aí para chegar nesse tal "Poema enterrado". Porque eu acho que isso mostra um pouco como é que eu trabalho. Quando eu comecei a fazer a poesia concreta junto com, evidentemente, com o pessoal de São Paulo que propôs essa linha, eu não me enquadrava muito, mas estava ali tentando e tal. Então, eu escrevi um poema que era o seguinte, era assim a palavra: “Verde, verde, verde, verde, verde, verde, verde, erva”. Na minha cabeça, o poema tinha uma razão de ser assim. Saiu no Jornal do Brasil, um amigo me ligou e disse: “Gullar, eu vi o seu poema hoje e achei muito interessante tal”. Eu falei assim: “você reparou como a palavra erva nasce do verde? Porque é verde, verde, verde, verde, verde, erva”. Ele disse: “Não, não reparei nada não. Eu vi que era verde. Não vi, era verde, uma repetição de verde”. Então não deu, fracassou. O poema fracassou. Criou-se um problema para mim. Como é que eu vou fazer um poema que resulte numa forma geométrica e que, ao mesmo tempo, obrigue a leitura palavra por palavra. Como é que eu vou resolver isso? Criou-se esse problema para mim. Ai, eu terminei descobrindo, depois de um tempo, a solução que era a seguinte: escrever no verso da página. Então, peguei uma folha de papel e escrevi: osso. Aí cortei mais curta e botei: nosso. Ai eu fui escrevendo no verso da página, e acumulando páginas, e as outras páginas ficando mais curtas. Mas aí eu também punha uma maior, que cobria todas as outras, e começava. Então, eu comecei a criar uma coisa que depois ficou conhecido como "livro-poema". Era um livro em que a forma das páginas e as palavras se entrosavam e formavam uma estrutura. Não era mais um livro que seria, como na expressão de João Cabral, um depósito de poemas, ele era o poema. A forma do livro era determinada pela própria criação do poema. Tudo bem, então. Feito isso, eu tinha um objeto manuseável que, modéstia a parte, não estou querendo reescrever a história da arte aqui, mas os bichos dali, o movimento na arte concreta, a participação do telespectador, nasce do "livro-poema" porque o livro é manuseável. Então, quando eu fiz o "livro-poema", eu fiz, ao mesmo tempo, o que era uma estrutura espacial e era manuseável porque era um livro. Então, eu, a partir daí, fiz uma placa branca, botei um cubo azul em cima e escrevi embaixo a palavra: lembra. Então assim, é uma metáfora da lembrança. Quando você tira o cubo, embaixo está a palavra. Você cobre, a partir daí, aquele objeto que tem uma palavra dentro. Você sabe que, então, não é mais o objeto de antes, ele agora tem uma palavra. Então, eu comecei a fazer. É essa coisa de fazer um poema que a gente mexe com a mão e tal, que leva a um poema. Aí eu disse: "eu já faço um poema em que a minha mão mexe, eu tenho uma participação com a mão, agora eu vou ter uma participação com o corpo. Então, eu vou fazer um poema e vou entrar nele”. Então, não tem segredo nenhum, não tem nenhuma genialidade, não tem nada, é uma lógica, vou fazer o poema para entrar nele, só isso. Ai eu bolei, como é que é, desce por uma... Eu sempre fui muito impressionado com os tubos egípcios, aquelas coisas. Desce por uma escada, aí chega lá e encontra um cubo, é o mesmo cubo do poema, é um cubo grande vermelho. Embaixo tem um cubo menor verde, tira o outro cubo, aí embaixo tem um cubo branco, pousado no chão, que eu pego na mão e leio a palavra: rejuvenesça. Quer dizer: É uma descida. Eu não sei que diabos significa isso, mas eu fiz. Tudo bem, esse é o enterrado. Publicamos no nosso suplemento, o suplemento era nosso, a gente publicava o que queria. Então publicamos lá o "Poema enterrado" no suplemento. O Hélio Oiticica viu o "Poema enterado" e disse assim: “Cara, isso é uma maravilha, vamos ter que construir isso”. Eu falei: “que construir cara, você está pirado. Como é que nós vamos construir isso?” “Meu pai está fazendo uma casa para a família lá na Gávea pequena, e lá no quintal ele diz que vai fazer uma caixa d'água, mas não vai fazer caixa d'água coisa nenhuma, vai construir o poema”. Aí foi para a casa, brigou com o pai dele, o pai dele diz que não, ele caiu com febre de 40 graus, o pai dele se rendeu, e então começaram a fazer o poema enterrado. Um belo dia de domingo, o "Estado-maior" neo-concreto, em que estava [estavam reunidos os maiores artistas do neo-concreto]: Pedrosa, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim, eu, [Theon] Spanúdis e nós fomos inaugurar o poema. Tinha chovido na véspera, então abrimos a porta do poema e o poema estava inundado [risos]. Poema concreto e inundado. E o cubo flutuava. Era a intervenção divina ou, talvez, da natureza. Foi uma decepção geral.
Ester Góes: Foi um poema naufragado.
Aracy Amaral: Mas vou dizer que esse poema está em São Paulo. Esse poema de Ferreira Gullar foi adquirido pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Reinaldo Azevedo: Ferreira, você diz aí: “O suplemento era nosso, a gente escrevia o que queria”, e claro que tem uma coisa de alta ironia [risos].
Aracy Amaral: E o Ferreira Gullar fez um projeto para ser construído na frente do Museu de Arte Moderna, em São Paulo, no parque Ibirapuera. O Gullar conseguiu até uma carta do Niemayer dando a permissão...
Ferreira Gullar: É porque o Ibirapuera é tombado, né.
Reinaldo Azevedo: A minha pergunta é se havia uma teoria que corria atrás do experimentalismo, quer dizer, havia essa experiência, esse acerto e erro e depois um pouco a teoria e um pouco a prática? Como é que a diferença funcionava?
Ferreira Gullar: A diferença... Uma coisa que caracteriza o movimento neoconcreto, do qual eu era teórico, é o seguinte: a teoria era a posteriori. Eu sempre teorizei em cima do que estava feito. É natural que, ao você teorizar sobre uma coisa experimental como era aquilo, que abre a perspectiva para outras coisas... Porque você reflete sobre o que está sendo feito. São coisas que estão sendo feitas, são coisas nascentes, que ainda estão em embrião, então resulta nisso. Mas nunca a idéia de que... Porque eu não acredito nisso, eu acho que a renovação da arte, das coisas, na literatura é o trabalho criador, é aqui que a coisa se renova. A teoria não renova nada.
Manuel da Costa Pinto: Como que você avaliaria o momento concretista, já que havia uma oposição entre o concretismo e o neoconcretismo. Sei que é uma questão polêmica, mas inevitável ao mesmo tempo. De alguma forma, o neoconcretismo teve uma continuidade maior, talvez nas artes plásticas do que na poesia, mas o concretismo em si teve uma grande linhagem de epílogos, nem todos de valor talvez, mas ela ainda hoje conserva o vigor dela em muitos autores. Tem vários escritores, como é o caso, por exemplo, o Arnaldo Antunes. Ele faz um trabalho que está dentro da linhagem do concretismo, é um trabalho muito interessante. Como é que você avaliaria o concretismo?
Ferreira Gullar: Já mudou, né? Quer dizer, na época, o que caracterizava o movimento concreto, não só na poesia, mas na pintura, com o Valdemar Cordeiro [artista visual, designer paisagista e crítico de arte. Um dos precursores da arte concreta no Brasil], era um rigor teórico, um dogmatismo duma racionalidade estrita, ao ponto que, naquela época, na época de 1956, quando foi lançada a primeira exposição de arte concreta, o texto do Valdemar Cordeiro era dizendo que a própria cor devia ser excluída, porque ela perturbava a estrutura do quadro, você está compreendendo? Eu jamais podia concordar com isso. Eu escrevi no Jornal do Brasil um artigo descordando disso. Ai já começou o rolo, a partir daí. Na poesia concreta tinha um plano piloto. Eu sei que não é bem isso, mas não pode fazer plano piloto com poesia, não pode. Plano piloto é arquitetura e olhe lá, porque o Brasil não seguiu plano piloto, quer dizer, não pode. Então, essas coisas que nos diferenciava. Eu sempre fui uma pessoa muito intuitiva, não tenho cultura, não tenho memória. Eu leio e esqueço tudo. Então, eu sou uma pessoa intuitiva, uma pessoa que está sempre começando, sempre começando. Então, na medida em que eu influí sobre um movimento, foi nesse sentido. Claro que os artistas todos, Lygia [Lygia Clark] nunca foi teórica, sempre pessoas muito inteligentes e muito lúcidas, como o Hélio [Oiticica], todos, mas ligado ao seu trabalho, fazendo o seu trabalho. Era no trabalho que o Amílcar [Amílcar de Castro (1920-2002), escultor, artista plástico e designer] resolvia os problemas que ele, naturalmente, discutia consigo mesmo, conosco e tal, mas era no trabalho. Eu, naquele caso, era teórico porque era poeta, não era o pintor nem o escultor. Eu procurava, eu ficava fascinado com que era descoberto. A Lygia, um dia, nos chamou na casa dela para jantar, ela sempre chamava a gente para jantar. Estava lá o Spanúdis, Pedrosa e tal, o nosso grupo lá. Ela tinha feito um trabalho que ia mostrar para a gente. Era uma coisa no chão, com umas placas de madeira, verde, um verde meio mate e cinza, as placas. Sabe como era fogueira de São João, assim? Duas assim: uma em cima da outra cruzando. Aí olhamos aquilo, fomos ver todos aquele troço no chão. Eu disse assim: “o que é isso?” “Não sei, não é escultura, não é pintura, o que é isso?” Ai, o Mário falou: “Talvez seja um relevo”. Eu disse: “Mário, não é relevo porque não tem superfície. Para ser relevo, tem que ser sobre uma superfície, não tem superfície, não é relevo”. Foram todos jantar e eu fiquei lá olhando aquele troço: “o que será que é isso?” Voltei para a mesa e disse: “descobri o nome daquele negócio”. “O que é?” "não objeto” [risos]. “Não objeto não é cara, o objeto é objeto do conhecimento. Não objeto não é coisa alguma”. Aí eu falei: “não sei, não entendo desse negócio de filosofia. Não objeto porque é um objeto, mas não é útil”. Bom, nasceu a teoria do não objeto a partir disso.
Paulo Markun: Estamos de volta com Roda Viva entrevistando o poeta Ferreira Gullar. Gullar, temos duas perguntas aqui dos telespectadores que, de alguma forma, tem a ver com o que estava sendo dito. Adriana Duzileque, de Assis, São Paulo, faz a seguinte pergunta: inspiração ou transpiração?
Ferreira Gullar: Posso responder agora? Escute, a palavra inspiração, ela tem uma conotação antiquada, pressupõe inspiração divina ou de deuses. Isso, realmente, não é o caso. Mas transpiração é trabalho. Sem transpiração não há arte, sem trabalho, sem o apuro dos meios, da forma, não há arte. Mas também sem essa outra coisa que se chama inspiração também não há. Porque do contrário, se saber fazer fosse suficiente para se fazer arte, então todo poeta, depois que ele ganhasse o domínio da sua técnica, ele passaria a produzir em série obras-primas, coisa que a história mostra que não é verdade.
Paulo Markun: Pergunta de Ricardo Medeiros, professor, de Recife. Como é que o cidadão que não é escritor pode reinventar a vida, ou inventar a vida? Você falou sobre inventar vida, de que alguma forma a vida teria que ser inventada.
Ferreira Gullar: A gente inventa todo dia. Todo mundo inventa sua vida. O homem, ele é uma invenção dele mesmo. Ele está permanente inventando. Para inventar, não é que tenha que ter coisas complicadas. Você inventa a sua vida fazendo seu trabalho, plantando lá no seu campo, fazendo, você está criando sua vida, você está aprendendo. Todo trabalho nos ensina também. Nós estamos construindo a vida, construindo em tudo, no que a gente pensa. As explicações que a gente dá não precisam estar nos livros de filosofia. Mas todo mundo tem uma explicação para a vida, a sua própria lá, mesmo a pessoa que nunca abriu um livro de filosofia, mas tem. A religião está ai, inclusive para ajudar as pessoas a explicar o mundo. É outra invenção do homem.
Ester Góes: Aproveitando este gancho aí agora. Você falou que se surpreendeu como comunista. Como isso aconteceu com você?
Ferreira Gullar: É que, de fato, eu nunca me disse assim: eu vou entrar para um partido. Eu nunca me disse isso, estava em Brasília trabalhando, e um amigo meu me entrega um livro: [...] de Karl Marx, me empresta. Eu começo a ler, é um livro de um padre católico, Jean Lins, filósofo e padre, explicando o que é o comunismo na primeira parte do livro, para na segunda dizer que padre não pode ser comunista. Eu li a primeira, fiquei comunista; e não li a segunda, não era padre [risos]. Então virei isso, quer dizer, nem por isso eu pensei em entrar para o partido. Aí estou lá, todo mundo à minha volta, presidente do centro cultural, todo mundo comunista em minha volta, eu participando, trabalhando e tal. Chega no dia do golpe [Golpe militar de 1964], eu disse: bom, vou entrar para o partido. Primeiro porque eu simpatizo com quem está levando cacete, quer dizer... então, agora vai começar o diabo, eu tenho que estar com eles. Eu não posso ser companheiro deles enquanto está tudo bem e depois na hora da coisa falar: “até logo”. Não, agora é hora de estar junto. Então, entrei para o partido assim, jamais imaginei que fosse acontecer assim. Nem saí de casa naquela reunião, na casa do Carlinhos Lyra [poeta e músico], no dia 1o de abril de 1964, jamais imaginei que eu fosse para lá para virar comunista, virar membro do partido, jamais. Eu fui para lá para uma reunião em pânico: “o que é que está acontecendo?”. Cheguei lá: “sabe de uma coisa, eu tenho que entrar”. Entrei.
Ivan Marques: Gullar, queria falar sobre o seu último livro, um dos seus livros mais recentes de poesia que é Muitas vozes [publicado em 1999]. Para o leitor fica evidente que a sua compreensão da morte, que sempre foi uma presença obsessiva desde o começo da sua obra, que nesse livro, Muitas vozes, essa visão mudou. Você, como você já declarou nos jornais, deixou de ver a morte como uma coisa heróica, uma coisa ética até, para ver como experiência próxima, experiência real. Agora, esse aprendizado da resignação, esse aprendizado da morte, significou, no seu caso, essa serenidade, uma diminuição do espanto que sempre moveu a sua poesia? Minha pergunta é no sentido de entender a fase atual da tua poesia, se ela é diferente, se ela é de fato menos espantada. O que sobrou daquele espanto que sempre te moveu?
Ferreira Gullar: Eu acho que é menos espantada. Porque você, de tanto se espantar, termina mais não se espantando mais [risos]. Isso é natural, quer dizer, na experiência da vida, você vai se espantando com as coisas e vai respondendo, vai tentando entender e, daqui a pouco, se espanta menos, vai mudando, né? E, de fato, esse livro, quer dizer... Depois que o livro saiu e as pessoas começaram a escrever sobre o livro, eu comecei a entender sobre o livro, porque eu sinceramente não penso nisso. Eu vi que, realmente, o livro é diferente, ele é mais reflexivo. Ele não é mais reflexivo? Então, ele tem menos alquimia. Nos livros anteriores há uma alquimia verbal forte, muito tensa, quer dizer, é uma coisa que sempre me fascinou muito na poesia. Eu sempre procurei ter isso na minha poesia a tal ponto que o livro Barulhos [publicado em 1987], quando ele termina, termina com o poema chamado "Nasce um poema". Porque, de uma certa altura em diante eu comecei a entender que a poesia tem a linguagem de todos. A poesia nasce dessa linguagem de todo mundo. Então, a poesia é um acontecimento na prosa. É o lugar onde a prosa vira poesia.
Paulo Markun: Há trechos do seu livro, se não me engano em Barulhos, que são trechos do Rabo de foguete [publicado em 1998] praticamente, quer dizer, a mesma história contada de outro jeito, não é? Indo comprar leite em Santiago do Chile, quando o golpe estava acontecendo? Quer dizer, a mesma cena, de um lado é prosa e do outro lado é poesia.
Ester Góes: E o teatro, como é que se situa teatro dentro dessa...
Ferreira Gullar: [interrompendo] É uma outra arte. É evidente que tem afinidade com a poesia, sobretudo porque a palavra é fundamental no teatro, como é na poesia, e a síntese é fundamental no teatro como é na poesia. Mas a linguagem do teatro é a linguagem da dramaturgia, é uma, é outra. A função da palavra no teatro é diferente da função que tem na poesia, é uma função ligada à ação dramática. Tanto que eu, quando faço teatro, as vezes que fiz, eu não sou nunca um teatrólogo poético, eu busco ser um teatrólogo dramaturgo ligado à ação e à palavra da ação, nunca à palavra poética, como grandes dramaturgos foram. O Lorca é um poeta que tem a dramaturgia do dramaturgo mas tem a linguagem do poeta.
Ester Góes: E, no entanto, o Poema sujo resultou numa linguagem cênica.
Ferreira Gullar: Pois é e você foi a atriz quando nós fizemos o Poema sujo no teatro.
Reinaldo Azevedo: Quando saiu o Rabo de foguete [Rabo de foguete: os anos de exílio, livro de memórias], dos livros que saíram no Brasil sobre experiências do exílio, vivência do exílio, acho que o seu, talvez, seja o mais... eu definiria o mais anti-utópico, quer dizer, ele é magnificamente escrito, porém não sinto ali nenhuma utopia política, nada. As coisas são ditas com uma crueza que, às vezes, a mim, quando lia, talvez me espantava um pouco pessoalmente, no que diz respeito à experiência da sua família com o exílio, sofrimento. Eu queria te perguntar o seguinte: você reconhece uma dimensão, digamos, como importante, uma dimensão psicanalítica da sua atuação política como pai, por exemplo? Você acha que a sua família sofreu excessivamente? Estou perguntando porque isso está expresso nas suas memórias. Que relação você tem com isso hoje, nessa altura da vida?
Ferreira Gullar: Sim, é uma coisa difícil de lidar, mas eu reconheço que [a família] sofreu. De fato, eu coloquei minha família numa situação difícil e precipitei sofrimento. Não digo que eu tenha feito o Paulo e o Marcos [filhos de Ferreira Gullar] enlouquecerem. Isso é realmente uma coisa genética que tem outras explicações e tal, mas que a minha opção política influiu de maneira dramática na minha família, influiu. Disso não há dúvida.
Alcides Villaça: Gullar, pela suas respostas aqui já ficou claro de quantas linguagens você já se valeu na sua poesia, do Poema enterrado ao neoconcreto, ao soneto. Todo leitor que percorra a tua obra vai encontrar alí um arco de estilos, perspectivas consideráveis, né? Eu diria que haveria várias possibilidades históricas da poesia contemporânea realizadas, apontadas e algumas inauguradas ali no conjunto. Eu vejo que há duas linhas fundamentais em intenção, dentro desse grande arco que a sua poesia é. Eu não queria batizar com muita facilidade, só para dar uma orientação dessas linhas, parece que há uma linha militante, seja do ponto de vista da estética, uma estética combativa, revolucionária, de vanguarda, digamos assim, ou de uma militância política. E uma linha, que fica também preservada, de confissão lírica, de maior elaboração interior. Eu acho que há dois limites na sua obra que eu resumiria em duas citações suas, que são duas citações que apontam para essa polaridade maior. Uma é: “O poema, senhores, não fede nem cheira”. E no outro, quando você diz que: “A arte pode ser uma questão de vida ou morte”, quer dizer, entre não fede nem cheira e vida ou morte há duas verdades. Eu não sei como é que você trabalhou e trabalha até hoje. Como é que você vê esses dois casos-limite em que sua poesia parece que se divide?
Ferreira Gullar: Eu digo para você que eu, sinceramente, não tenho muita consciência disso, não. Quando eu escrevi o poema "Não fede nem cheira", eu estava clamando por um poema participante, quer dizer, eu estava ironizando. A poesia não comprometida e propondo uma poesia comprometida que fedesse e cheirasse, enfim, que participasse das coisas que estivesse ligada. Mas, ao mesmo tempo que era política era também ligada à vida, ao concreto da vida. Não era uma poesia feita por anjos ou para anjos, que não é a minha. Eu, aliás, aquele livrinho que eu publiquei com alguns textos sobre a minha poesia, se titula Uma luz do chão, que é essa coisa sem transcendência. Eu digo: a minha transcendência é horizontal. Na realidade, a transcendência do real, na sua multiplicidade. Então, de fato existe este comprometimento. Agora, eu digo com sinceridade quando escrevo a poesia: a poesia para mim é um entender o mundo. Porque, de fato existe... eu tenho uma compreensão do mundo como todo mundo tem. É impossível viver sem conceituar as coisas, não é verdade? Tem que explicar o mundo para poder viver. Você não pode viver na perplexidade permanentemente, tem que dar uma explicação, aceitar uma explicação. Então, essa explicação provisória e conveniente, todo mundo tem que ter. E eu tenho. Mas, no fundo, eu sei que nada está explicado. Então, há algo fundamental para qual não há resposta, e eu não tenho resposta. Então, em geral, quando eu faço a poesia, é quando o espanto acontece. Quando esse espanto acontece, esse tecido conceitual se rompe e o mundo se mostra atrás deste tecido que é o inexplicável, seja da alegria, do sofrimento. Mas é uma coisa que não tem explicação, que transcende qualquer explicação. Aí começa a poesia. Então, não tem teoria, não tem nada. É um começar, é ouvir aquela voz que está ali, tentar captar e transformar aquilo num intermediário, numa coisa audível, compreensível.
Reinaldo Azevedo: Depois de feito você se espanta também com o resultado? Quer dizer, você, como leitor da sua própria obra, você descobre coisa nova depois de ter feito o poema? O objeto feito, terminado, você também se espanta na leitura posterior?
Ferreira Gullar: Não, eu... Olha, quando eu trabalho um poema, em geral, estou sempre falando em termos especiais. A vida nunca é como a gente conta, mas nos melhores momentos é uma alegria muito grande da descoberta daquela palavra, de ter uma espessura. O que mais me fascina com ela é quando eu sinto que eu estou dando a expressão numa espessura maior, que aquilo não é só palavra, que tem alguma coisa que está atravessando aquilo ali. Então, esse prazer de fazer se ascende em mim como uma outra lucidez, em mim ou em qualquer poeta, não só em mim. Eu acho que nasce uma outra lucidez que não é a lucidez usual, é uma outra lucidez que solta as palavras. Elas ficam livres e accessíveis a apelos que normalmente não tem. Eu sei porque quando eu estou tranqüilo, eu não consigo escrever o poema, porque eu falo: "pão, pedra...". Fica na pedra, não sai daí, não tem eco, não desperta nada, não chama. Quando você está nesse outro estado, a palavra tem eco, ela ressoa, outras vozes respondem, então é um estalo que, mais com o rigor de buscar no meio daquilo, você tem uma lucidez.
Reinaldo Azevedo: É uma mágica esse estado que você chama de inspiração?
Ferreira Gullar: Sim, porque eu digo, um poeta como João Cabral disse que não tem inspiração. Eu brincava com ele, eu dizia: é mentira, se você fizesse a poesia que você diz que faz não prestaria, mas como você é um grande poeta, você diz uma coisa e faz outra.
Ester Góes: Gullar, eu queria que você contasse um pouco como foi o trabalho com o Grupo Opinião [grupo carioca que centralizou, nos anos de 1960, o teatro de protesto e resistência, centros de estudos e difusão da dramaturgia nacional e popular], o que você acha de hoje do teatro engajado? Você tem saudade disso, que crítica que você faz?
Ferreira Gullar: Olha, o grupo Opinião... na verdade, havia o CPC da UNE [Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes], são as mesmas pessoas, que era uma entidade subversiva. Veio o golpe, queimou a UNE e saiu de atrás de pegar a gente. Então, nós nos escondemos e assim que pudemos começamos a organizar um grupo que não podia aparecer com a sua cara. Pedimos ao Teatro de Arena, que nos desse o nome dele. O Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho, parceiro de Gullar na época], o Paulo [Paulo Pontes] e o Armando [Armando Costa] escreveram o "Opinião", montamos o show "Opinião" num teatro que a gente fez com as nossas mãos mesmo. Compramos umas cadeiras velhas aqui de São Paulo que o Vianna veio comprar, estava tudo cheio de lodo e limo. Nós limpamos tudo, lavamos tudo pela madrugada adentro e, no dia seguinte, chamamos dois marceneiros para parafusar tudo. As cadeiras lavadas e secas começaram a ranger durante o espetáculo. De qualquer maneira tinha um teatro ali. Nós fizemos com o nome só de Arena, para não aparecer quem era, quais eram as pessoas. Então, depois do êxito que foi o Grupo Opinião... foi o primeiro comício na verdade, a primeira manifestação pública contra a ditadura em dezembro de 1964. Nós éramos um grupo de pessoas muito unidas, muito decididas, determinadas. Nossa luta era contra a ditadura. Mas na experiência do CPC nós aprendemos o seguinte: o engajamento, no nível que nós tínhamos colocado a coisa, nós tínhamos feito mau teatro, má poesia e não tínhamos alcançado o grande público, o camponês, o suburbano, o povão, não tínhamos. Então, era mau teatro sem o resultado político. Então, nós já antes de acabar o CPC, antes do golpe, já tínhamos consciência disso. Quando nós fomos para o Opinião, nós resolvemos fazer o melhor possível, tanto que o Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come [peça lançada em 1966 em parceria com Oduvaldo Viana Filho], foi uma peça bolada: “Vamos fazer uma obra literária, uma obra de teatro de alto nível literário”, por isso o poema é rimado, é feito em versos e é elaborado. Fizemos primeiro um brainstorm para criar a história, depois o Vianinha escreveu a primeira versão. Eu escrevi a versão final caprichado na literatura, nos versos, para ficar uma obra de arte. Tinha que ser engraçado também para a censura rir e não levar a sério o nosso espetáculo. Eles riram e liberaram o espetáculo. Então, foi a grande experiência. A peça Se correr o bicho pega ganhou todos os prêmios naquele [ano de] 1966, depois veio para São Paulo e fracassou.
Aracy Amaral: Gullar, a Cultura posta em questão [livro publicado em 1964] nasce junto com essas experiências do CPC? É simultaneamente?
Ferreira Gullar: O Cultura posta em questão foi publicado em 1964, dois meses antes do golpe. Tanto que a primeira edição, como eu costumo dizer, foi esgotada pela polícia [risos].
Paulo Markun: Mas tem saudades desse tempo? Você tem saudades desse tempo?
Ferreira Gullar: Eu tenho saudades dos amigos.
Alcides Villaça: Gullar, você talvez não tenha atingido o povão naquela época, os poemas de teatro faziam acho que alguns equívocos de natureza estética e política. Eu sei que hoje, por exemplo, quando você vai conversar com os jovens, e isso acontece com muita freqüência em vários auditórios, há uma recepção muito forte em tua poesia. Eu queria saber se você já teve este retorno do que exatamente, na sua poesia, toca esse público mais jovem que se identifica tanto com os seus poemas? Qual é a poesia que você está dando para eles que eles não encontraram especificamente em outro poeta?
Ferreira Gullar: Eu não sei. Será que é porque... Eu acho que mesmo entre os jovens há razões diferentes. Há jovens que são chamados pela coisa política, eu observo isso em alguns debates em que participo ou leituras de poema. Há outros que se identificam com o existencial, pela coisa vital, assim, né? Eu confesso a você, não sei direito, mas eu fico muito contente, foi para mim uma surpresa, uma coisa que me surpreende, porque há essa receptividade dos jovens com relação a minha poesia.
Augusto Massi: Eu queria comentar justamente, ou complementando o Alcides, um pouco o chamado da sua poesia. Para mim, ela sempre me comoveu. A gente escutou aqui vários depoimentos, desde uma perspectiva de artes plásticas, uma expectativa de teatro, um militante... a gente percebe que é um grande desejo teu em participação de vida, quer dizer, um desejo coletivo, um desejo de estar inserido nas coisas e de falar uma língua comum. Eu sinto, particularmente, que uma das coisas mais comoventes na sua poesia, o que a singulariza, é um estranhamento, é um não estar participando das coisas. Muitas vezes eu penso que a sua poesia nasce em momentos que você está indo ao banheiro, vai lavar o rosto e vê a água correndo, jorrando, e aquilo vem para a vida.
Ferreira Gullar: Aí é em aspecto que morreu.
Augusto Massi: Acho que têm muito isso. Você está andando de um lado da cidade, aí você lembra de seus amigos mortos que estão enterrados no cemitério, do outro lado da cidade, o avião. Tudo que faz parte do mundo, mas que você vê com estranhamento. Parece que, neste momento, as pessoas não participam daquela tua existência, é você que está ali. Um pouco de uma luta corporal interna com seus barulhos, muitas vozes do Gullar, em que aquilo, vamos dizer, é mal acabado, tem algo inclusive na sua maneira de falar. As suas mãos parecem que têm mais dedos do que uma mão normal. O jeito de passar a mão no cabelo, tem um estranhamento, e de se colocar no mundo, que é querer participar e estar deslocado. Então, eu diria que, para mim, tem sempre uma mistura de se reconhecer no que não é reconhecível. Isso, muitas vezes, eu pensei que talvez explique essa compreensão, esse gosto de falar da poesia que todo mundo tem, e que há muito tempo se perdeu. As pessoas acham a poesia hoje uma coisa hermética sem utilidade. Eu acho a sua poesia útil no sentido, vamos dizer, de explicar ou tentar explicar... ou pelo menos quando ela não explica fala: “Não estou explicando, ela é narrativa, ela coloca o problema numa narrativa”. Se eu tenho muitos poemas narrativos... mas eu acho que tem algo assim, até esse horizontal que você falou, do poema se espalhar. O Poema sujo, a primeira impressão dele, ele vem realmente quase na horizontal, de pegar as coisas num nível mais próximo do chão, e que é compreensível, que é palatável, que as pessoas registram. E nesse último livro, eu acho, no Muitas vozes [lançado em 1969], eu diria que a sensação, em muitos momentos, você nem fez o poema, ele estava feito. Você fala do seu pai, quer dizer, você está contando um caso para gente. O poema tem algo narrativo, de anedótico, aparentemente prosaico, prosaico no sentido que onde há mais poesia as pessoas falam: “Não, isso não é poesia”. Esse limite é claro para você?
Ferreira Gullar: Quando eu terminei o livro Barulhos, o último poema do livro Barulho chama-se, "Nasce um poema". Essa idéia que eu estou falando, que a poesia nasce da prosa, que o poema é o lugar aonde a prosa vira para a poesia, essa idéia da coisa, portanto, da linguagem coloquial, da linguagem banal que se transforma, que se ascende, que vira o poema, essa coisa... Quando eu escrevi esse poema, "Nasce um poema", ele chega a um nível de prosaísmo, em alguns momentos, que quando eu terminei de escrevê-lo, eu falei: "mais uma vez acabou". Além disso não é mais poema, é prosa. Então, eu fiquei lá não sei quanto tempo, anos, sem escrever depois de Barulhos. Eu achei que estivesse num impasse de novo, porque eu vivo num impasse, sempre impasses. Aí eu falei: estou num impasse. Então, ali, de repente, eu estou em Nova Iorque, e fui lá fazer uma viagem de turismo e tal, ver o Metropolitan, estou num hotel sozinho e aí vem na minha cabeça esse poema do meu pai que é prosaico. Eu não achei que eu podia ser mais prosaico do que eu tinha sido em "Nasce o poema", e por isso que eu digo, que a teoria não resolve coisa nenhuma. Dentro da minha compreensão, ser mais prosaico do que isso é impossível, porque não é mais poesia. Aí eu disse: "eu fui mais prosaico do que nunca fui". Isso é que é a poesia, está entendendo? Então, não foi uma coisa... o problema está ali, trabalhando dentro de mim, a resposta, não fui eu que arquitetei, veio. E aí tem uma série de poemas que estão no livro juntos, uma seqüência. São todos os poemas assim, que são poemas sem alquimia, sem nenhum esforço da linguagem, a elaboração da linguagem.
Paulo Markun: E, teorizando, depois de feito o serviço, o que faz disso um poema e não prosa?
Ferreira Gullar: É porque aí é que está o negócio, ele é um poema porque ele comove as pessoas, ele comove, ele passa alguma coisa, ele revela alguma coisa e ele é banal. Esse poema, "Meu pai", é um poema, é uma...
Paulo Markun: [interrompendo] Talvez o melhor retrato do seu pai na...
Ferreira Gullar: [interrompendo] Quando meu pai veio ao Rio de Janeiro para tratar de um câncer de que ele morreria, perdeu os óculos na viagem. Quando eu levei os óculos novos, comprados na Ótica Fluminense, ele guardou, ele viu a nota, leu e falou: “Quero ver quem é o sacana, que eu nunca estive no Rio de Janeiro”. Eu fiquei comovido quando ele me viu e voltou essa emoção, quer dizer, é uma banalidade, agora...
Reinaldo Azevedo: Gullar, vou chatear um pouco aqui, o teórico. Eu vou insistir na pergunta do Markun: o que há nesse fragmento que o faz ficar, quer dizer, de um lado da fronteira, que ainda é poema, e não ultrapassar para o outro lado e ser a prosa, quer dizer, que é o impasse que você diz: “Além disso, é prosa”. Você, como leitor desse poema, o que você diria, intuiria, como quem elabora o conceito, como quem pensa arte, o que há aí que faz ser poema, que é reconhecidamente aqui por todos como poema?
Ferreira Gullar: Eu não sei. A única coisa que eu acho é que ele é dito com o mínimo de palavras, com muita economia. Ele sintetiza, essa história contada é muito sintética e guarda emoção. E uma emoção irônica, uma emoção... porque aí vem o filho, o pai, meu pai que ia morrer, então tem todo um componente aí. Eu, que estou contando essa história, contando, mostrando ele, provinciano, então é uma coisa comovente: “Quero ver quem é o sacana, que eu não estive no Rio de Janeiro”.
Reinaldo Azevedo: Você acha que isso, num corpo de uma crônica maior, ou num capítulo de um romance, se você estivesse falando eventualmente de suas memórias, você acha que perderia o impacto?
Ferreira Gullar: Não sei, quer dizer, não queria porque tem também isso. Quando você isola e você mostra, você já está valorizando, você já está acrescentando expressão naquilo. Até o objeto. O que é você mostrar uma roda de bicicleta? Uma bicicleta todo mundo sabe, mas quando eu pego e mostro, tirada da função, é só forma. Ela é uma forma estranha porque ela não [tem] tal função. É a frase do Lautréamont: “Nada mais casual do que uma máquina de costura com um guarda-chuva sob uma mesa de necrotério” [A frase do Conde de Lautréamont (1846-1870), poeta franco-uruguaio é: "Belo como o encontro casual de uma máquina de costura com um guarda-chuva numa mesa de dissecar cadáveres"]. Porque não é o lugar nem da máquina de costura nem do guarda-chuva no necrotério. Então, ali, o que você vê é a estranheza da forma. Então, de algum modo quando eu isolo... porque não tem aquele negócio: “Poemas desentranhados de uma notícia de jornal?”, não tem? Do Bandeira ? Estava lá no jornal, mas era poesia, ele percebeu que era.
Paulo Markun: Nós estamos de volta com o programa Roda Viva entrevistando hoje o poeta Ferreira Gullar. Simone Paulino, aqui de São Paulo, Gullar, diz o seguinte: “Publicar qualquer tipo de literatura no Brasil atual, ainda é muito difícil. Publicar poesia mais ainda. Quando você lançou o seu primeiro livro, as condições eram diferentes das atuais? O que você sugeriria para quem tem o objetivo de publicar um livro no Brasil de hoje?”
Ferreira Gullar: Escute, o meu primeiro livro foi financiado por minha mãe. O meu segundo livro, A luta corporal, foi financiado por mim. E eu só publiquei um livro com uma editora em 1966 [A luta corporal e os novos poemas]. Quer dizer, 16 ou 12 anos depois de eu estrear, eu publiquei um livro em uma editora, não pago por mim, mas por conta da editora. Mas isso não aconteceu só comigo, aconteceu com Drummond, aconteceu com Bandeira, aconteceu com todo mundo. O Bandeira, eu estava falando agora isso, a Lira dos 50 anos foi feito cota [para ser publicado]. Amigos se cotizaram para publicar a Lira dos 50 anos do grande poeta, Manoel Bandeira. Quando eu fiz 50 anos, fizeram uma edição aí Toda poesia [1980] e tal. Se bem que era o [...] era o meu amigo, mas enfim, mudou um pouco. Mas a dificuldade é a mesma. Agora, eu acho que a dificuldade não é ruim não, quer dizer, melhor que não tivesse, mas tudo bem. Faça o seu poema, demore a publicar, vá fazendo... quer dizer, é um apuro que não prejudica ninguém. Ninguém nunca deixou de ser poeta por ter dificuldades de publicar seus poemas.
Ivan Marques: Gullar,o Rabo de foguete, que é o seu livro de memórias, ele foi definido ainda agora, como um livro anti-utópico, né? E impressiona a última frase dele que é o seguinte: “A vida não é o que deveria ter sido e sim o que foi”. E, dentro de Muitas vozes, eu encontro um verso que aponta em sentido contrário na hora de definir a poesia. A gente falou, agora há pouco, o que define um poema, né? Esse verso diz o seguinte: “O poema diz o que a coisa não quer ser”. Eu gostaria que você comentasse essas duas frases, quer dizer, parece que poesia e experiência histórica de fato estão divorciadas e cabe ao poeta imaginar essa outra história de fato, construir esse outro destino, não é isso?
Ferreira Gullar: A frase do livro diz: “A vida não é o que deveria ter sido e sim o que foi”. Quer dizer, eu acabo de contar uma história, a história da minha vida. Ela não foi melhor, poderia ter sido? Mas a vida é assim. O Bandeira tem aquilo lá: “A vida que poderia ter sido e que não foi”. Eu estou fora dessa. A vida para mim é o que foi. O que poderia ter sido não é a minha vida, estou fora. Mas a poesia, é a invenção da vida, é o que a coisa quer ser, é a invenção da vida, é outra coisa. Na poesia, eu faço o que a vida não permite fazer, certo? A poesia é a tentativa de ultrapassar o limite da vida. Transcender a vida não no sentido religioso, mas aquilo que não cabe na vida... porque o sonho é imprescindível para viver, porque a realidade, ela tem as sua leis, o seu peso, a sua resistência, sua espessura. Então, quer dizer, você tem que tomar conhecimento da realidade para não virar terrorista, saber a densidade e a complexidade do fato político, do fato social e da vida. A vida é complexa e não é um ato maluco que vai resolver problema algum. Essa consciência tem que ter para poder desenvolver um trabalho consistente que pode mudar. Mas a poesia não é isso, a poesia é a tentativa, exatamente, de você, pela fantasia, criar o outro mundo, criar a possibilidade da contingente, daqui agora. Porque ninguém pode viver da revolução que não vem nunca.
Ivan Marques: Isso talvez explique a diferença do Poema sujo para o Rabo de foguete, que é um livro de memórias.
Ferreira Gullar: Uma vez eu li um livro de uma psicanalista contando uma história de uma moça que era louca e que ela tratou e tal. Depois a moça melhorou e ficou capaz de viver e tal. Quando a médica a levou para a sua casa, na rua na frente da casa tinha uma árvore com uma porção de frutos, grandes frutos, não sei que frutos que eram. Aí ela queria pegar os frutos, a pirada lá, queria pegar os frutos e levar os frutos com ela: “Não, deixa os frutos aí”. Depois pensou assim: “Deixa ela levar os frutos”. Ai ela pegou os frutos, levou os frutos e ficou na cama com os frutos. Ai percebeu, depois de conversa, [que os frutos representavam a menina] nos seios da mãe dela, para ela. Entendeu? Então, veja bem, o que se chama loucura é pura... o cara sai arrastando o braço na parede, arrastando, vai andando pelo corredor arrastando. Esse cara está louco? Mas isto não é a loucura, está tentando sentir o real que está fugindo, arrastando o braço na parede fica mais concreto. Então, tem que sonhar. A imaginação, a fantasia é uma coisa necessária para você sobreviver.
Paulo Markun: Inclusive fantasia sobre a morte? Acho que também há, sem querer fazer interpretação poética, que não é o meu forte, mas eu acho que a morte nos teus poemas, ela começa com uma coisa que está subterrânea, alguma coisa que está dentro da vida e que pulsa tão fortemente quanto a vida. À medida em que vai avançando isso e vai chegando nos últimos poemas, ela não é mais exatamente isso. Aí fica difícil entender o que ela é, ela ainda é uma interrogação.
Ferreira Gullar: Ela é o inevitável, né, ela é o inevitável. Porque, como eu dizia antigamente, quando a gente é jovem, tem da morte uma visão pouco teórica. Ainda não morreram as pessoas que você ama e tal, é uma coisa meio assim de leitura ou de poema. Aí, quando começam a morrer as pessoas, aí ela começa ganhar um outro significado. Então quer dizer, eu fui aprendendo, ao longo da vida, que a morte é uma coisa... é difícil de a gente achar que as coisas são realmente irreversíveis. Perder uma pessoa, não há explicação, é impossível aceitar isso. É difícil aceitar que a pessoa querida morra e desapareça para sempre. Eu não aceito.
Paulo Markun: Você não acredita ?
Ferreira Gullar: Não, eu não acredito, eu não aceito. É verdade, mas eu não aceito.
Ester Góes: E o tempo, o que você acha desse tema, o tempo? Mudou para você? Porque o Poema sujo é sobre o tempo. Eu sinto diferenças desse tipo de tempo que tem o Poema sujo com o tempo do Rabo de foguete, o tempo agora.
Aracy Amaral: De um tempo de vanguarda do seu desenvolvimento, que é uma coisa mais acelerada, demente, de agente mobilizando todo mundo, numa época da década de 1960, meu Deus, uma época de Che Guevara. Você tem idéia da influência que esse livro Vanguarda e subdesenvolvimento [1969], deu a dimensão, de quanto ele foi importante para toda uma geração dos anos 1960? Como foi, assim, influente no meio do Brasil?
Ferreira Gullar: Não tenho a maior idéia [risos].
Aracy Amaral: Foi assim uma coisa terrível, era uma voz daqui de dentro. Porque o Gullar deixa a gente num estado assim, um pouco de hipnotismo, né? Porque do jeito que ele fala, a gente vai ficando assim fascinada. A gente até esquece as coisas que a gente ia perguntar para ele. Você fica, como ele falou, mexendo com as mãos. A gente fica... realmente esse problema do tempo, que você mencionou, que é o tempo também que o Gullar fez referência, quando ele falou das pessoas. As pessoas perguntam o que o Markun perguntou, as pessoas querem saber como se publica, como se faz para avançar êxito, como se faz para poder encontrar uma editora. Daí você mesmo lembrou que só foi ter uma editora, não sei, super amadurecido. De repente, toda essa vivência que você exala, que você passa a transpirar da sua fala, de seus livros, de suas memórias. A gente lembra também de um artista como o Alfredo Volpi [(1896 – 1988), pintor ítalo-brasileiro considerado, pela crítica, como um dos artistas mais importantes da segunda geração do modernismo], meu Deus do céu, que fez a sua primeira individual com 48 anos, em 1944 ele tinha 48 anos. Porque hoje as coisas são muito mais sérias, as pessoas querem o sucesso, o resultado imediato, muito rápido.
Ferreira Gullar: Quando você fala de tempo, então, eu fico imaginando. Eu tenho mais saudades da época em que eu escrevi A luta corporal. Quando eu era um rapaz trabalhando, ganhando um salário insignificante, comendo no China e com cartão falso, no restaurante do Calabouço [restaurante do Rio de Janeiro que era palco de várias manifestações por melhorias na educação e contra a ditadura. Foi inaugurado em 1951. Durante uma manifestação, em 1968, foi palco do primeiro homicídio de um estudante durante o regime militar], no restaurante dos estudantes, com uma gravata vermelha pendurada no pescoço. E então, quer dizer, a lembrança daquela coisa feérica, daquele mundo, daquelas épocas de tanta dificuldade, e ao mesmo tempo fascinante. E Luiz Cardoso, meu amigo, Décio Vitório, Luci Teixeira, a gente por ali, naquelas ruas, indo sem rumo. Então, eu vivi isso daí, essa intensidade, essa coisa fascinante. Quer dizer, eu tenho saudade disso, dessa época.
Reinaldo Azevedo: Você disse que acata a morte, evidentemente, mas não aceita. Pelo conjunto das coisas que você fala, você não alimenta nenhuma crença, pelo menos organizada, numa religião ou coisa parecida? Não obstante, pode parecer uma pergunta jocosa, mas é que eu quero saber mesmo como é que você organiza a sua coisa. No Rabo de foguete, mais uma vez, você recorre a uma vidente, em Buenos Aires, às vezes por uma questão muito pessoal, mas até teve umas questões política em que você recorreu. Como é que é esse negócio?
Ferreira Gullar: Veja bem, veja bem. Eu não tenho nada contra religião, eu só não acredito, mas eu não tenho nada contra. Eu acho que religião é uma coisa importantíssima, eu acho que sem a religião a humanidade não existiria. A civilização, ela nasce com a religião. A religião cria os primeiros valores, comportamento, não tenho dúvida disso. E subsiste e, em função da religião constrói-se catedrais formidáveis, a música de uns e de outros, pinturas, poesias, entende? Porque o homem, se sentindo rato, não constrói catedral. Ele tem que se sentir filho de Deus ou alguma coisa grande, senão ele não constrói. Se não ele fica aí degolando com o machado na cabeça do outro aí no Carandiru. Então, o homem tem que ter alguma dignidade, uma grandeza, uma coisa qualquer. Se ele se julga filho de Deus, ele tem uma grandeza. Isso aí é importante.
Paulo Markun: E se ele for parte de um coletivo, ele também tem essa grandeza?
Ferreira Gullar: Essa grandeza... ele tem que acreditar em alguma coisa, que seja mais que o bichinho que ele é.
Paulo Markun: Quando, hoje em dia, esses dois caminhos parecem ser tão conturbados, a religião virou uma coisa que, basicamente, é para vender espaço na televisão, e o sonho coletivo foi para o espaço, o que é que sobra?
Ferreira Gullar: A poesia, a arte, a música. A arte é o que sobra. O teatro, é arte o que sobra. Sobra outra coisa, porque o mundo é complicado, gente.
Ester Góes: Você acha por exemplo, desculpe, mas é uma coisa [com a qual] eu estou muito me preocupando, assim, no sentido de que... eu sinto que o teatro volta a ocupar um lugar muito importante agora.
Ferreira Gullar: Mas Ester, a pouca experiência que eu tenho da vida é que as coisas são reversíveis. Parece que vai tudo junto e de repente começa a mudar, começam a surgir outras coisas com outras respostas porque somos nós mesmos que fazemos as coisas. Há uma hora que sente necessidade. Um de nós sente necessidade, vai mexer e vai fazer nascer de novo.
Ester Góes: Esse teatro engajado que você viveu, que era um teatro que procurava responder o momento, que procurava discutir idéias através do palco e tal, que depois a gente achou meio careta, meio ultrapassado, uma porção de coisas. Mas de uma outra maneira, o teatro agora voltou a ocupar esse lugar da discussão primeira de idéia, porque ele pode, porque ele é mais ágil para isso, que não depende...
Ferreira Gullar: A realidade é tão complexa, que nós não conseguimos abrangê-la. Nós fazemos um esforço, mas não podemos abrangê-la. Então, parece que as coisas estão se encaminhando num rumo, mas as coisas são tão ricas e complexas que, quando você nem bem espera, lá não sei onde, tem um cara que está começando a abrir um outro caminho que é o revés do que aparentemente é o curso das coisas, entendeu? Porque veja bem, nós temos uma imagem assim: o mundo está tomado pela mídia, a indústria cultural tomou conta de tudo. Tudo bem, tem a verdade, mas isso não impede... exatamente porque isso existe, contraditoriamente, começa a surgir grupos de gente que quer saber de poesia, são poucos, mas eles querem saber sobre a poesia. É gente como os outros. Aí: "eles não são dez milhões” Mas o mundo tem 6 bilhões, cara. Para mim, tanto faz se são dez milhões, como um milhão, como cem. É sempre pequeno, mas são eles, de modo que essa possibilidade de recriação, de renovação, de reinvenção da vida é uma coisa que está presente. Agora, se o cara quer resolver todos os problemas do mundo e o cara está disputando com a mídia, o cara diz: “Eu quero ser um poeta que esteja em todas as televisões e tal, porque que eu não vendo tantos livros quanto o Roberto Carlos?” Se o cara entrar nessa, aí ele está ferrado, porque esse não é o caminho correto das coisas. Uma pessoa que leia o teu poema e ame o teu poema já justifica a coisa ter sido feita, cara. Porque que eu estou disputando com milhões, não tem nada a ver com os milhões do mundo.
Ester Góes: Mas você acha que, por exemplo... Eu acho que a proximidade que as pessoas sentem na sua obra é por causa da sua franqueza que você tem. Você é absolutamente direto com uma tendência até... Quando eu perguntei do tempo, é porque eu percebo, no decorrer da obra, que tem uma tendência a mostrar-se como cada vez mais, menos problemas de mostrar, fazer como uma profissão de fé na vida, de aceitá-la como é, de mostrar-se do jeito que for.
Ferreira Gullar: Outro dia fui assistir um espetáculo que é: Crime e castigo. Num quarto. Levaram-me para dentro de uma casa, num sobradinho, ali no centro do Rio de Janeiro, ou perto da Urca, não me lembro, e é um quarto. Entrei no quarto, estava lá o quarto e os personagens. Eram só quatro pessoas assistindo. Tinha, eu acho, mais personagens do que gente assistindo. Mas, beleza de coisa, que coisa comovente, que coisa intensa. Para quatro pessoas, e daí? Teatro para quatro pessoas, você está entendendo? Quem é que inventou isso? As pessoas vão encontrando. Claro, não há possibilidade, se eu for ficar esperando o dia que eu vou ter o teatro, o João Caetano na minha coisa, eu não vou fazer nunca.
Ester Góes: O motivo desse que faz em um quarto assim, é porque o que ele precisa mostrar não tem nada que ocupar todos os espaços, é uma outra coisa. E é essa que é realmente a boa, que dá frutos mesmo, é muito por aí.
Manuel da Costa Pinto: Mas, por outro lado, pegando essa relação da arte com o mercado da indústria cultural, quer dizer você está valorizando, agora, algumas iniciativas inovadoras, esteticamente falando, mas eu sei que você é muito crítico em relação a certos artistas que fazem as instalações. Eu já vi, mais de uma vez, em depoimentos seus, críticas àquele artista plástico, não me lembro agora se ele é britânico, ou norte-americano, que fez aquela exposição com carneiro morto, com pedaços de tubarão etc [Damien Hirst, britânico]. É possível uma leitura que não coloque esse artista como oportunista, mas o coloque como herdeiro de Duchamp [Marcel Duchamp (1887-1968), artista francês muito influente no pós-Primeira Guerra Mundial. Bastante associado ao dadaismo e ao surrealismo] que era quem você estava citando no seu livro anterior, para justificar o isolamento, por exemplo, da narrativa, no caso do poema sobre o pai. Aquilo está expondo uma coisa fora de um contexto, fora de um lugar, então está mostrando a estrutura. O ato de expor é aquilo que dá à arte o caráter estético, o caráter artístico, àquele objeto. Por que você está advogando uma postura de valorização da ousadia estética [mas] no caso dele ou das instalações que acontecem nas Bienais, tem sido tão crítico?
Ferreira Gullar: A diferença é que eu vou ver o espetáculo, porque eu não tenho teoria assim. É inovador, é vanguardista, não tem... eu fui ver o espetáculo, gostei, me emocionei e gostei, aí defendo. Aí eu vou ver a exposição do cara com o tubarão cortado no meio, realmente não me diz nada, aí não gosto. O problema é só esse.
Manuel da Costa Filho: No caso das artes plásticas não é porque você é pintor?
Ferreira Gullar: Eu acabei de fazer um debate lá no Itaú Cultural. O que é que eu disse a respeito da minha pintura lá?
Aracy Amaral: Você falou que você se considera... que pintura para você é tudo, menos aquilo que se faz.
Ferreira Gullar: Eu falei: eu sou crítico de arte e não posso fazer do que eu faço, não presta. Foi isso que eu falei [todos falam ao mesmo tempo].
Aracy Amaral: O grupo de 1969, digamos assim, ou de Londres, que fiz nos anos de 1960, não há nenhuma ligação direta, digamos assim entre Duchamp e Hirst...
Ferreira Gullar: Eu acho que o Duchamp, inclusive, precisa se interpretar direito. Porque o que eu disse aqui, por exemplo, nem ele diz, ele não diz que a obra tenha expressão por causa do que eu disse. A interpretação dele é outra, não é essa. Essa é do Lautréamont.
Reinaldo Azevedo: Eu vou pegar aqui uma carona no meu amigo Manuel. É o seguinte: as artes plásticas, e de certo modo como disse o Umberto Eco, num texto muito engraçado, você deve conhecer, que nada é mais engraçado que um catálogo de artes plásticas. Porque, no mais das vezes, claro que o difícil e o incompreensível geralmente é difícil e incompreensível para a gente, né? Quem compreendeu entendeu, não achou nem difícil nem incompreensível. Agora, me parece que há, não sei, uma percepção, não sou um especialista na história, me parece que o discurso das artes plásticas vive um pouco da auto-justificação e da auto-referência. Especialmente arte contemporânea. De modo que um pouco o jornalista que divulga, faz parte do mesmo grupo que o artista expõe, que por sua vez, expõe pensando no texto do jornalista, que por sua vez vai dizer que o artista que expõe é genial, e vira um pouco... não obstante essa dos ramos artísticos, são feitas as artes de massa, música e não sei o quê, é aquela que movimenta mais dinheiro. De modo que a gente vive uma contradição até para o modelo capitalista que, quanto mais restritiva, quanto mais de elite ela é [a arte], quanto mais presa um nicho ela é, mais dinheiro ela movimenta, quer dizer, as artes plásticas, perto das poesias, certamente um movimento muito mais de gente, muito mais de dinheiro. A essa altura já está se confundindo com moda, costureiro. Perdeu-se um pouco o parâmetro. Te pergunto: você não acha que é um discurso excessivo de auto-justificação? Ela não ficou excessivamente metalingüística falando só de si mesma?
Ferreira Gullar: É verdade. Uma coisa que eu gostaria que vocês me ajudassem a compreender é o seguinte: a vanguarda, a partir do começo do século, ocorreu em todas as artes, na pintura, na escultura, no teatro, na música, na literatura, na poesia e no romance, não é verdade? No começo do século você tem aí desde o [...] no teatro, você tem os poemas dos dadaístas, tudo bem. No curso do século, essas experiências diferentes foram absolvidas, assimiladas e se retomou a linguagem, do cinema, teatro, da poesia. Agora, vamos parar no seguinte: o limite da linguagem narrativa. Você imaginou se a literatura entendesse que tinha que seguir ali e não recuar um passo? Como as artes plásticas entenderiam, o que ia dar? Porque não teria nascido simplesmente, Faulkner [William Faulkner (1897-1962) estadunidense, autor de O som e a fúria] não teria nascido nenhum dos ficcionistas italianos, nem franceses, nem ninguém. Porque que nas outras artes todas houve a assimilação das grandes conquistas da vanguarda e uma retomada da linguagem possível de comunicação e nas artes plásticas não? Isso é uma coisa que eu não entendo, gostaria de saber a resposta.
Paulo Markun: Gullar, nós vamos ficar sem essa resposta, tenho certeza, não só porque o programa está acabando, e a pergunta é complicada [risos]. Para encerrar, William Alves de Brasília pergunta: "O que é o reconhecimento para o poeta?"
Ferreira Gullar: É bom. É melhor ser reconhecido do que não. Eu nunca nasci para ser maldito, eu sempre dizia para os meus amigos: "não pense que eu vou cortar a minha orelha. Não vou." [risos]
Paulo Markun: Promessa é dívida.
Ferreira Gullar: É claro.
Paulo Markun: Obrigado pela sua entrevista Gullar. Boa noite vocês que participaram do programa, você que está em casa. Na próxima segunda-feira às 10:30h da noite, nós estaremos aqui de novo, de orelhas em pé, para mais um Roda Viva [risos]. Uma boa noite e uma boa semana. Até lá.
x.x.x.
Ferreira Gullar
por Vanessa Rodrigues, Publicado em 12 de Agosto de 2010 no http://www1.ionline.pt/conteudo/73453-ferreira-gullar-o-acordo-ortografico-e-uma-perda-tempo
Seguir o raciocínio do poeta Ferreira Gullar, de 80 anos, é um exercício simultâneo de pensamento-linguagem-pensamento. Tem o discurso marcado pelas perguntas retóricas e troca, recorrentemente, o sentido das palavras numa voz pausada e carregada pelo chiado da típica sonoridade carioca. Tal como fez com o título do seu novo livro na última Festa Literária Internacional de Paraty: "Parte alguma significa em nenhum lugar; alguma parte significa algum lugar." O público ficou baralhado.
Este pensador da língua fala gesticulando as mãos, enquanto os alvos cabelos médios descaem para a frente e para trás, acompanhando o movimento do corpo esguio. É vivaz como um adolescente e de palavras sempre afiadas para a resposta.
Na última FLIP disse que "a arte existe porque a vida não basta". Qual é a função dela na sua?
Nós inventamo-nos e inventamos a nossa própria vida. Somos seres culturais, então a função da arte é ajudar a inventar a vida e contribuir para a criação desse mundo fictício, desse mundo imaginário que é o nosso mundo. Vivemos na cidade que nós inventámos e construímos. A poesia é parte disso. Quando digo que a arte existe porque a vida não basta é porque nós queremos sempre mais. O ser humano está sempre inventando e reinventado a sua própria vida, os valores. Isso mostra que a vida pode ser mudada. Como os valores que nos suportam são por nós criados, eles também podem ser transformados. Abre a perspectiva de que a sociedade pode mudar. E essa é a visão que um artista tem dentro da sua função de criar uma mentira, como diz o Picasso. Uma mentira que é mais verdadeira do que a verdade.
Se inventasse alguma coisa, o que inventaria?
Eu não sou de inventar muitas coisas. O que eu faço mesmo é a minha poesia e isso é uma coisa que não depende de mim inteiramente. O poema não pode ser feito por decisão minha. Eu digo que a minha poesia nasce do espanto, de alguma coisa que me tira do equilíbrio do quotidiano. Se isso não ocorre, o poema não nasce. Se pudesse, escreveria poesia dia e noite, mas isso não é possível. As pessoas também sonhariam viver o amor a vida inteira, apaixonados, mas tudo são maravilhas que não acontecem como a gente quer. E a poesia também, o sonho a cada momento. Tomara eu estar naquele estado para escrever um novo poema, mas nunca sei qual é, porque é uma coisa que surge inesperadamente.
Qual é a importância que o tempo tem na sua vida?
Na minha poesia essa questão do tempo é frequentemente colocada. Eu sou bastante impressionado com essa relação tempo-espaço, o passar do tempo e a mudança qualitativa do próprio tempo. Nisso eu adopto um pouco a visão científica. O tempo como uma relação tempo- -espaço é, ao mesmo tempo, o passar, é o movimento da matéria. É o apodrecimento da pêra que é o tempo. E o tempo na pêra é uma coisa, o tempo em mim é outra coisa, o tempo do avião que voa é outra coisa, então há muitos tempos num só tempo. Aliás, no meu "Poema Sujo" eu toco nesse assunto ao dizer que a cidade tem muitas velocidades e ela é mais lenta num mel que se verte num copo e mais rápida no voar do pássaro que cruza a janela. O tempo é muitas coisas. Em cada coisa um tempo diferente. A cidade tem muitos núcleos, tem velocidades diferentes. Nós temos um tempo subjectivo também, temos também um tempo externo, que é o nosso caminhar pela rua, e dentro de nós está-se passando outra coisa, que pode ser a memória, que pode ser um outro poema que está nascendo. É uma coisa de enorme complexidade.
Que legado percebe que já deixou para a língua portuguesa?
De uma maneira ou de outra, os poetas, como são artesãos das palavras e reinventores da linguagem, lidam com a língua de uma maneira muito especial. Cada poeta tem, pelo menos, um dialecto e eles contribuem, de algum modo, para o enriquecimento da língua. Eles criam formas inesperadas de dizer as coisas. Sou um poeta que lida especialmente com essa questão da linguagem. Cheguei até a violentá-la de uma maneira tal. Acredito e é possível que a minha poesia tenha alguma influência sobre a língua que nós brasileiros usamos. Nem sei se na língua portuguesa em geral.
E o acordo ortográfico contribui para enriquecê-la?
Eu acho que o Brasil e Portugal, com os outros países de língua portuguesa, têm de parar com essa coisa de ficar mudando as regras ortográficas. Eu acho que é uma coisa que não ajuda em nada. É uma perda de tempo. Cria confusão, inclusive dá prejuízos. Já imaginou o que vai acontecer? Colecções de livros vão ter que ser jogadas fora e reimpressas, para obedecer a uma nova ortografia porque uma ou duas pessoas resolveram mudar a maneira de escrever a língua. Isso é uma arbitrariedade. Quem é que outorgou a essas pessoas o direito de fazer isso? A língua é património do país, da população, não é propriedade de ninguém. Não pode haver uma entidade que decide mudar a língua de todo o mundo. Isso é um absurdo. É uma coisa precária, que cria confusões, porque é impossível você encontrar uma forma de colocar todos os países de língua portuguesa em que não se crie ambiguidade nenhuma. É um sonho vão. A ortografia tem de ser uma representação da linguagem falada. Então é uma bobagem. Uma perda de tempo.
E que Brasil é este hoje?
O Brasil está atravessando um momento crucial. A América Latina, de maneira geral, está vivendo uma experiência que pode ter como consequência grave um renascimento do populismo. Num momento em que, no mundo, o socialismo real acabou e a visão socialista deixou de ser a grande utopia, de repente, aqui na América Latina surge um pseudo-socialismo que, na verdade, muda a relação que havia entre o socialismo que era um conflito entre a classe operária e a burguesia. Agora é entre pobres e ricos. E isso resulta na criação de governos populistas que, na verdade, enganam a opinião pública e que cerceiam as liberdades. E uma das tendências é reduzir ao máximo a liberdade de opinião, como se está vendo na Venezuela. Aqui no Brasil não aconteceu, pelo menos por enquanto, mas houve tentativas de controlo da opinião pública, de criar conselhos de imprensa sobre controlo do governo. O Lula sonhou em fazer, mas não consegue porque o Brasil é um país muito mais complexo e muito mais avançado. Mas não se sabe o que vai acontecer se a Dilma [Rousseff] for eleita, porque eles já se estão apropriando de muitos sectores.
Por exemplo.
A Petrobrás é uma empresa do povo brasileiro e virou propriedade dele. Agora mesmo, na FLIP, pelo facto de terem chamado o Fernando Henrique Cardoso para fazer uma palestra retiraram o patrocínio. Só se patrocina se a FLIP não aceitar figuras que sejam adversários do governo? Estamos onde, na ditadura? Aliás a ditadura sobre esse aspecto é muito mais tolerante do que o governo Lula. Todo o mundo que se opõe a ele vira inimigo. Agora, usar o dinheiro público da Petrobrás para fazer política é uma coisa ameaçadora. Eu tenho pavor que a Dilma ganhe essa eleição porque ela é uma invenção do Lula. Ela não é política, não entende de nada; é simplesmente uma marioneta que Lula quer eleger valendo-se da sua popularidade, que vem do populismo, que vem de fazer bolsa-família: de dar dinheiro público para 40 milhões de brasileiros, pobres, então isso é uma coisa muito grave, é um retrocesso muito grande. Eu vejo com muita preocupação o que está acontecendo aqui.
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