"Estou trabalhando em um musical de Ulysses. Estou muito mais inclinado a voltar para a música. Fui convidado a escrever um concerto para clarineta e a música que fiz para Cyrano foi bem recebida... Aprende-se bastante (no planejamento de romances) com formas musicais. Estou planejando um romance no estilo de uma sinfonia clássica - minueto e tudo. As motivações serão puramente formais, de modo que uma parte do desenvolvimento em que são representadas fantasias sexuais poderá seguir-se a um exposição realista, sem explicação nem estratagema intermediário, voltando a ela (agora como recapitulação) com a mesma ausência de justificativa psicológica ou artifício formal... Creio que a música ensina a profissionais de outras artes estratagemas formais úteis; mas o leitor não precisa conhecer sua procedência. Eis um exemplo: um compositor modula de uma clave a outra com o uso do acorde 'ambiguo', o sexto aumentado (ambíguo porque é também o sétimo dominante). Em um romance, pode-se mudar de uma cena para outra usando uma frase ou uma afirmação comum a ambas - isso é muito frequente. Se a frase ou afirmação significa coisas diferentes nos diferentes contextos, fica mais musical ainda... Concordo que as analogias musico-literárias podem ser tênues, no mais amplo sentido formal possível - formas como sonata, ópera e assim por diante -; mal começamos a explorar as possibilidades. O romance que estou escrevendo sobre Napoleão imita formalmente a Heróica - suscetível, viva, rapidamente transicional no primeiro movimento (até a coroação de Napoleão); lenta, muito calma, com cadência que sugere uma marcha fúnebre para o segundo. Isso não é pura fantasia: é um tentativa de unificar uma grande quantidade de material histórico no espaço relativamente curto de cerca de cento e cinquenta mil palavras. Quanto ao leitor ter de conhecer música, isso realmente não é muito importante. Em um romance escrevi: 'A orquestra atacou um ruidoso acorde de doze notas, todas diferentes'. Os músicos ouvem a dissonância, os que não são músicos não ouvem, mas não há nada aí que os impeça de continuar a ler. Não entendo de termos de beisebol, mas mesmo assim aprecio The natural, de Malamud. Não jogo bridge, mas acho empolgante o jogo de bridge em Moonraker, de Fleming - o que importa são as emoções transmitidas, não o que os jogadores fazem com as mãos".
Fonte: Os escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
"São artes diferentes, é certo. Mas tenho de confessar que a minha não era uma família literária. Era uma família musical. É algo interessante, sob o ponto de vista social, porque não nos era permitido ser outra coisa. Nossa família era católica num país protestante. Católicos não tinham permissão para freqüentar universidades na Inglaterra. Não podiam se tornar médicos, advogados ou professores. A única coisa que podiam fazer até 1829, quando veio o ato de emancipação, era se tornar 'entertainers'. É um traço que permaneceu. Minha mãe, como você bem lembrou, dançava e cantava. Meu pai tocava piano. E eu via minha vida como um músico, até que descobri que tinha de escrever livros (Burgess sublinha com a voz o "tinha de escrever", como se estivesse falando de um destino inevitável e irrecorrível). Tornei-me, então, o primeiro literato da família. E o último. Porque, comigo, minha família termina... Principalmente porque eu precisava sobreviver! E você não pode ganhar a vida fazendo música séria. Escrever uma sinfonia é algo trabalhoso, toma um tempo enorme. Se você compõe, é preciso, depois, copiar as partituras - o que custa dinheiro - e organizar uma performance. O público vai ou não vai. E é tudo. Não se ganha a vida assim. Se você faz música pop, como os Beatles, você pode ganhar, pelo contrário, um bocado de dinheiro. Já na literatura há um pouco de dinheiro, sim. Mas não muito! Um pouco só! Ora, este é um problema para artistas de várias áreas. É difícil, bem difícil. Antigamente, havia os mecenas, grandes nobres e aristocratas que podiam financiar os escritores e músicos... A gente tem de viver! Não se pode viver de música. Ainda escrevo música. Venho planejando uma ópera baseada na vida de Sigmund Freud. Quem vai apresentá-la? Não sei. O que sei é que ela tem de ser feita (de novo, Burgess empresta um tom dramático às palavras, como se estivesse se rendendo ao destino).
Fonte: www.geneton.com.br/archives/000150.html (18/10/2009)
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