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Grandes entrevistas

  

       JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Entrevistado por Geneton Moraes Neto, em 1986, e postado em seu site em 10/06/2007 (www.geneton.com.br)

João Cabral de Melo Neto abre fogo contra os poetas que só sabem provocar “saudade, melancolia e tristeza”! – Por que ele é inimigo da emoção fácil – O autor de ‘Morte e Vida Severina’ garante: “A popularidade é uma coisa terrível!” – Por que ficou traumatizado com a música – O Hino Nacional e o Hino de Pernambuco são as duas únicas músicas que ele consegue distinguir de ouvido! – Um julgamento rigoroso: “Morte e Vida Severina não me sattreisfaz...” As memórias do jogador de futebol: a diretoria do Santa Cruz foi pedir à mãe de João Cabral a liberação do passe do craque! O titular da cadeira número 37 da Academia Brasileira de Letras é um caso único de jogador de futebol que deu certo como diplomata e se consagrou como poeta e, seguramente, o único acadêmico que pode ostentar glórias tão díspares - como a de ter sido campeão pelo Santa Cruz Futebol Clube e autor dos versos de um clássico da literatura brasileira, o poema "Morte e Vida Severina". João Cabral de Melo Neto é um exemplo em carne e osso de que a força física do futebol pode conviver sem grandes traumas, em uma só pessoa, com um extremo apuro intelectual. O jogador já se aposentou, é claro. Mas o poeta continua entregue a uma difícil, suada e elegante batalha com as palavras. João Cabral de Meio Neto (Recife, 06 de janeiro de 1920) é, acima de tudo, rigoroso com o que escreve. Trabalha as palavras com a precisão de um médico na mesa de cirurgia. Despreza as emoções fáceis. Não quer nem ouvir falar de poetas e escritores que não tenham "interesse intelectual'. E fala da própria obra com uma frieza que chocaria os não iniciados. A longa carreira diplomática - com passagens pela Espanha, Inglaterra, França, Suíça, Paraguai, Senegal, Equador, Honduras e, finalmente, Portugal - deixou, no comportamento do poeta, traços de uma solenidade que ele mantém em qualquer situação. De férias, em casa, ele dá entrevista metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola. Uma vez, na casa de um irmão, na praia, combinou com um repórter uma entrevista para as dez e meia da manhã. A circunstância de estar de férias de frente para o mar não lhe alterou o gosto de cumprir os horários com rigor. O repórter chegou vinte minutos depois da hora marcada. João Cabral não perdeu a chance: "Você chegou com uma pontualidade nada britânica... " - foi a primeira saudação que ele pronunciou. Faz tempo que a cena ocorreu. Mas João Cabral não mudou.

Abatido por uma hemorragia gástrica que o obrigou a uma temporada num hospital no Rio de Janeiro e ainda profundamente tocado pela viuvez recente, o poeta não perde a elegância do diplomata nem o rigor do intelectual vigilante quando começa a falar diante do gravador ligado.


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Geneton: O fato de conviver com outros idiomas durante anos a fio, como é o caso do senhor, traz alguma dificuldade para o ato de escrever?

João Cabral: "É uma das desvantagens do escritor que é diplomata e vive no estrangeiro. É difícil viver vinte e quatro horas falando uma língua e escrever em outra. Quando Vinícius de Moraes era cônsul em Los Angeles, Gabriela Mistral era cônsul do Chile : ela disse ao Vinícius que ia voltar para o Chile porque estava perdendo o espanho. Veja só: ela encontrava dificuldades para escrever em espanhol vivendo em Los Angeles. É uma desvantagem que o diplomata tem. O diplomata de carreira - não o diplomata ocasional - ou pára de escrever ou tem uma obra pequena. O caso de Aloísio de Azevedo é típico. Deptonois que foi nomeado cônsul, não publicou mais nenhum romance!".

Geneton: O senhor se lembra de algum caso em que a palavra em português tenha fugido durante esse período todo no exterior?

João Cabral: "Ah, claro! e comum, inclusive, a pessoa abrasileirar uma palavra estrangeira, coisas que, às vezes, enriquece o vocabulário do autor, mas, outras vezes, você tem de substituir, porque não dá...".

Geneton: Por que o senhor tem tanta prevenção contra a subjetividade? Há um conceito mais ou menos generalizado de que a poesia é uma manifestação extremada da subjetividade...

João Cabral: "Há uma diferença. Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras pedra ou faca ou maçg, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que tristeza, melancolia ou saudade. Mas é impossível não expressar a subjetividade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade mas não diretamente. Ele não tem que dizer "eu estou triste". Ele tem é que encontrar uma imagem que dê idéia de tristeza ou do estado de espírito - seja ele qual for - por meio de palavras concretas e não simplesmente se confessando na base do "eu estou triste".

Geneton: Qual é a relação do senhor com a escrita, no dia-a-dia? O senhor diz que tem horror a trocar cartas. Quer dizer, então, que o senhor evita escrever?

João Cabral: "O negócio da carta é o seguinte: eu não gosto - realmente - de escrever carta. É um resultado de minha vida de diplomata. Sou diplomata desde fins de 45. Já faz quarenta anos. Quando vive no exterior, você tem de fazer tudo por meio de carta. É uma das coisas que leva o sujeito a acabar escrevendo cartas, porque em todos negócios e todas as coisas que ele tem para fazer, ele precisa escrever - para a família, para um amigo, o que seja. Em segundo lugar, não gosto de carta. E tem tanta gente que escreve até diário... Para mim, escrever o meu diário é uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio. É como num diário. Se você está lá fora, isolado, e escreve uma carta para um amigo, é inevitável que você fale de seus estados de espírito - e dessa maneira errada que é falar do estado de espírito descrevendo-o. Agora, quanto a escrever, eu estou, permanentemente, tomando notas para poemas. Não tenho nenhum poema acabado depois do meu último livro ("Agrestes", 1985). Tenho notas para poemas. Um dia trabalharei nelas. Ou não. Se estou numa fase com menos trabalho e menos preocupação, começo, então, a trabalhar aquelas notas que tenho".

Geneton: Parece que o senhor não tem nenhuma ânsia de escrever, esta é que é a verdade...

João Cabral:" Ah, não tenho..."

Geneton: O senhor pode anotar um poema e guardar durante anos, esperar...

João Cabral: "E nunca escrever, também. Outras vezes, descubro uma nota anterior, elaboro e faço um poema, naturalmente".

Geneton: O senhor diz que a poesia que faz não é para ser amada. Não é porque o senhor não quer ou o senhor gostaria que suas poesias fossem amadas?

João Cabral: "Não gostaria. O escritor corre o grande risco de se baratear. A popularidade é uma coisa terrível, nesse sentido. A popularidade acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito. Eu lembro de quando Manuel Bandeira fez oitenta anos. Havia quase manifestações populares, nas homenagens que fizeram a ele. Mas você acha que aquele pessoal algum dia leu Manuel Bandeira?".

Geneton: O senhor se considera, então, o quê? Um poeta popular ou um poeta conhecido? O senhor é conhecidíssimo, mas deve achar que só conhecem o nome João Cabral, não a obra ...

João Cabral: "É difícil dizer. O êxito teatral de "Morte e Vida Severina" é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular".

Geneton: O senhor sempre diz que não gosta de fazer poesia dada a emoções porque o que se chama comumente de emoção é algo feito à base de um sentimentalismo fácil e barato. O senhor diz, pelo contrário, que "emoção é outra coisa". Mas nunca ficou exatamente clara a definição que o senhor tem de "emoção". Dá para explicar - de uma vez por todas?

João Cabral: "Minha definição de emoção não é nada de especial. É o que todos chamam de "emoção". O que acontece é que me recuso a explorar essa coisa diretamente. O interesse do poeta não é descrever suas emoções e criar emoções, é criar um objeto - se é poeta, um poema; se é pintor, um quadro - que provoque - emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou contra emoção é exatamente neste sentido: o de usar a minha emoção para fazer com ela uma obra, descrevê-Ia primariamente e construir, com ela, um poema".

Geneton: Quer dizer, afinal, que o senhor não é exatamente contra a emoção: é contra a exploração da emoção...


João Cabral: "Exatamente! (Faz ar de alívio, como se a charada estivesse resol vida). Quanto a esse descrever da emoção e da sentimentalidade, a grande maioria da poesia que se escreve no mundo é assim. A obrigação do poeta, repito, é criar um objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor".


Geneton: O que é que o senhor chama de "emoção intelectual"? Já vi o senhor usando esta expressão..:

João Cabral: "Um grande crítico americano uma vez disse o seguinte de uma poetisa americana, Edna Miller: que ele não gostava da poesia que ela fazia porque não tinha interesse intelectual. É nesse sentido que eu digo. Você pode ver perfeitamente quais são os escritores que têm um interesse intelectual e quais são os que não têm. Confesso que o escritor que não tem interesse intelectual não me interessa. A mim, me interessa enormemente a poesia de Joaquim Cardozo, mas nunca me interessou a poesia de Emílio Moura - de Minas Gerais. Eu sinto que não tinha interesse intelectual. Não só a poesia de Emílio Moura, mas a grande maioria dos poetas brasileiros. Aliás, dos poetas brasileiros, não, mas do que se chama no mundo todo de poesia. Um homem de mediana inteligência não vê interesse intelectual naquilo. Tenho a impressão de que pode ser um defeito meu. Mas confesso. A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa. Ora, se tenho minhas emoções, para que vou buscar emoções semelhantes numa outra coisa?".


Geneton: Quando o senhor se auto-intitula um "poeta artificial", o senhor se refere ao trabalho quase artesanal que tem com a poesia?

João Cabral: "Não apenas. Os assuntos que uso na poesia são "tirados pelos cabelos", como se diz. Fiz um poema sobre o ato de catar feijão. Você não imagina Alfonso de Guimarães, o pai, grande simbolista, fazendo um poema sobre o ato de catar feijão..."

Geneton: O resultado poético do trabalho do senhor é obviamente sofisticado, sob o ponto de vista intelectual. Isso contradiz a intenção de fazer uma coisa simples? A que é que o senhor atribui esta defasagem entre a intenção de fazer uma coisa simples e o resultado - que é indiscutivelmente sofisticado?


João Cabral: "A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. e difícil traduzir as coisas de que falo de uma maneira acessível a todo mundo. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso".


"Minha luta é tentar botar coisas complexas numa linguagem simples. Geralmente, fracasso"

Geneton: Além de dizer que é um poeta artificial, o senhor também se considera um poeta não espontâneo. Acontece que estes dois conceitos se chocam de novo com o conceito generalizado de que a poesia é algo não artificial e espontâneo...

João Cabral: "Exatamente. Valerie dizia que tudo que vinha a ele espontaneamente era eco de outra pessoa! Ele só acreditava numa coisa que ele fizesse com rigor intelectual, porque durante este trabalho rigoroso ele eliminava tudo o que, nele, era dos outros. O homem acha, em geral, que tudo o que se faz artificialmente é falso e não diz nada dele. Vejo exatamente o contrário: o que você faz espontaneamente é eco de alguma coisa que você leu, ouviu ou percebeu de qualquer maneira".

Geneton: A popularidade - é o que o senhor diz - pode prejudicar o poeta. A popularidade prejudicou Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira?

João Cabral: "Não. Vinícius, no fim da vida, dedicou-se inteiramente à poesia popular, à música popular. Agora, Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável..."

Geneton: O poema que é tido como marca registrada do João Cabral de Melo Neto é o 'Morte e Vida Severina'. E é justamente este que o senhor chama de "poema fracassado". Por que um julgamento tão cruel?

João Cabral: "Nunca chamei de fracassado. "Morte e Vida Severina" foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado e não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão. Ficou popular. Mas sinto: é um poema que não trabalhei, porque eu tinha um prazo para escrevê-lo".

Geneton: O 'Morte e Vida Severina' é considerado uma obra-prima. O senhor, então, não assina embaixo desse julgamento...

João Cabral: "Não! Dentro de minhas coisas, acho "Morte e Vida Severina" a menos realizada. E a mais escrita na perna...

Geneton: É frustrante saber que os Severinos e as Severinas da vida real não vão ler o 'Morte e Vida Severina'?

João Cabral: "Quando escrevi "Morte e Vida Severina", tinha a impressão de que seria uma coisa tão popular quanto os romances do Nordeste, os romances de cordel. Quando o livro saiu, vi que quem me elogiava eram os intelectuais. Eu lembro do entusiasmo de Vinícius de Moraes. Eu disse: "Vinícius, não escrevi para você! Para você, escrevi outras  coisas!". Eu tinha a impressão de que estava escrevendo aquele poema para o povo. Quase me danei...".

Geneton: A condição de intelectual e poeta num país como este - em que a grande maioria da população não tem acesso à produção intelectual - é frustrante?

João Cabral: "Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário".

Geneton: Um intelectual deve falar em nome do povo?

João Cabral: "O que é que você quer dizer?"

Geneton: O senhor acha que o intelectual deve ser porta-voz dos anseios populares?

João Cabral: "Se ele está identificado com os anseios populares e se ele acha que é capaz de expressar os anseios populares, claro. Mas é preciso que ele esteja identificado com os anseios populares - e não com o programa de um partido político - que dura dois anos! Eis o negócio. Você fala em povo. Mas o que é povo? O que é o povo brasileiro? O que é o povo de qualquer país? É uma quantidade enorme de pessoas, com interesses contraditórios. Como falar em nome do povo? Você fala em nome de uma classe, em  nome de uma idéia - que pode estar no povo".

Geneton: Quando o senhor estava em Barcelona, leu numa revista que a expectativa de vida no Recife era menor do que na Índia e se sentiu profundamente chocado. Depois, o senhor disse que deveria escrever algo denunciando...

João Cabral: "Eu escrevi Cão Sem Plumas, já disposto a não escrever mais nada na minha vida".

Geneton: O senhor acha, então, que o poeta deve reagir a estas agressões da realidade?

João Cabral: "Não sei se deve reagir. Eu reagi. Agora, se todo mundo é capaz de reagir ou se todo mundo deve reagir, é um problema que deixo a cada um".

Geneton: Paul Eluard dizia que a função do artista é "dar a ver". Qual é a diferença entre o "dar a ver" e a denúncia?

João Cabral: "Eluard chamou de "Dar a Ver" um livro de poemas que ele fez sobre os pintores. Quando digo "dar a ver" é porque a minha poesia, em primeiro lugar, é mais visual do que musical. Em segundo lugar, digo "dar a ver" porque o poeta deve mostrar realidades sem tomar partido. Você mostra a realidade. Cada pessoa que veja como quiser. Depois de "Morte e Vida Severina", eu não botei no fim algo como "Façam assim!". Não apresentei solução, porque esta não é função do artista. A função do artista é expressar a realidade. Os administradores, os políticos, quem seja, que resolvam o que há de injustiça nessa realidade. Não é obrigação do artista".


Geneton: O Brasil, hoje, como país, satisfaz o senhor? O país melhorou?

João Cabral: "Durante o ano de 1986 foram tomadas boas medidas. Tenho esperanças nelas. O negócio é que o mundo é complicado. Você pergunta a um francês... Ele votou no Partido Socialista na eleição de François Miterrand e imaginou que a França fosse melhorar. Depois, os socialistas perderam a maioria no Congresso. Isso não é uma coisa permanente. O Brasil está numa boa fase. Acredito que os políticos, os administradores estão querendo resolver certos problemas. Não quer dizer, no entanto, que daqui até o fim do mundo o Brasil tenha resolvido os seus problemas. Em primeiro lugar, porque estes homens podem mudar mas, depois, pode vir uma orientação diferente".

Geneton: O senhor tem aversão total à música; só conhece de ouvido o Hino Nacional e o Hino de Pernambuco. De onde é que vem, afinal, esta aversão à música? Qual é a lembrança mais remota que o senhor tem desse horror à música?

João Cabral: "Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado.  Você pode não ter ouvido musical, não saber cantar e, no entanto, gostar de música, a chamada música clássica. Mas vou dizer uma coisa que aconteceu comigo. Tive minha infância e adolescência no Colégio Marista. Nós éramos obrigados a uma missa semanal. Era uma missa cantada. Nós éramos obrigados a ir diversos dias à Igreja, para ouvir canto sacro. O que estragou um possível gosto meu pela música foi a música religiosa que me era imposta, quando eu era menino e adolescente. A música significava, para mim, tédio. Eu ficava naquele banco de colégio ouvindo aquela música de órgão, aqueles sujeitos cantando... E era incapaz de me concentrar naquilo. Ficava pensando em outra coisa. A música religiosa extinguiu em mim qualquer possível futuro em música".

Geneton: Depois desse trauma de infância, o senhor, então, não conseguiu ter interesse em música...

João Cabral: "Isso estragou até a minha capacidade de atenção. Se há uma coisa que me dá sofrimento é um concerto. De vez em quando, sou obrigado a ouvir um. Ir a um concerto é um inferno para mim. Você pode dizer o seguinte: "Eu estou impondo a este infeliz duas horas de sofrimento"... E essa coisa estragou minha capacidade de atenção auditiva. Quando estou conversando, sigo o que a pessoa diz. Mas essa coisa de rezar tantas vezes por dia e a música no colégio estragaram a minha capacidade de ter atenção para uma coisa que me entra pelo ouvido. Outro sofrimento é ir a uma conferência e ouvir um discurso. Sou incapaz de compreender. Fico pensando noutras coisas e não no que o conferencista diz. De repente, volto para o que ele está dizendo; sou até capaz de entender uma ou duas frases, mas minha atenção se perde outra vez. Fico como uma pessoa que está nadando debaixo do mar e de vez em quando sobe para respirar. Tenho a impressão de que estragaram a minha capacidade. Quando quero entender alguma coisa, leio".

Geneton: O pior de tudo é que o senhor, como cônsul e embaixador, é obrigado, por dever de ofício, a ouvir discurso...

João Cabral: "Claro! De concerto eu fujo. Mas, numa solenidade, você não pode fugir. Eu confesso: o sujeito está falando e eu pensando noutra coisa... Sou incapaz de me concentrar numa conferência ou num discurso".

Geneton: Naquele tempo das rezas no Colégio Marista que idade o senhor tinha, exatamente?

João Cabral: "Dos oito aos quinze anos. Era no Recife. Primeiro, no Colégio São Luís - que é Marista também -, em Ponto Uchoa. Depois passamos para o Colégio Marista, na avenida Conde da Boa Vista, no centro da cidade".


Geneton: Que relação o senhor tem com Pernambuco, hoje? A presença de Pernambuco na poesia que o senhor escreve ainda é forte. Há, no livro "Agreste", várias passagens sobre Pernambuco - e particularmente a Zona da Mata.

João Cabral: "Eu saí de Pernambuco com vinte e dois anos, na véspera de fazer vinte e três. Da primeira vez que saí de Pernambuco, passei onze anos sem ir até lá. Eu saí em 1942 e voltei em 1953. Mas nunca superei o fato de ser obrigado a viver fora de Pernambuco. Sempre dou um pulo lá, embora Pernambuco seja bem diferente do que eu conheci. O Recife, então, está inteiramente mudado. Em todo caso, volto sempre. Toda oportunidade que tenho vou por lá. A gente não pode dizer o que é que vai falar no futuro. Mas tenho a impressão de que a gente escreve sempre sobre as impressões da infância e da adolescência. Nesta época, o homem é mais sensível. Grava mais as coisas. Então, forçosamente, nunca poderei me livrar dessa impressão de Pernambuco sobre mim. Imagino que ela continuará".

Geneton: Onde é que o João Cabral poeta estará no futuro? O senhor deve abandonar a carreira de diplomata em 1990...

João Cabral: "Com a nova lei, tenho a impressão de que já devo me aposentar em 1987. Não creio que vá viver em Pernambuco. Gostaria, mas acontece que - dos meus cinco fIlhos - quatro moram no Rio e uma filha em Honduras. Quando me aposentar, irei morar em Petrópolis, porque estarei perto deles e ao mesmo tempo não estarei no Rio. É uma cidade que não me agrada nada. Nunca me agradou".

Geneton: O que é que assusta o senhor no Rio de Janeiro?

João Cabral: "As distâncias, o movimento, o tráfego e o calor. É aquele calor desagradável... O calor aqui no Rio é abafado. O de Pernambuco é um calor ao ar livre. Até há um poema de Manuel Bandeira: "Vamos viver de brisa”. Faz calor no Nordeste, mas lá existe brisa. O calor do Rio é um calor sem brisa".

Geneton: O senhor acha que, quando se aposentar e se dedicar somente à poesia e à literatura, essa relação acidentada que o senhor tem com o ato de escrever vai ser, afinal, pacificada?

João Cabral: "Eu estou com sessenta e seis anos. Escrever poesia me é difícil. Não sei se, nessa idade, ainda terei coragem de enfrentar o trabalho de um novo livro de poemas. Imagino, em minha aposentadoria, ter uma casa agradável em Petrópolis. Eu me imagino lá fazendo aquilo que gosto de fazer: não sair de casa. Detesto sair de casa. Em segundo lugar, ler. Neste negócio, sou caseiro. É um traço que, talvez, eu tenha puxado de minha mãe. Quase não vi minha mãe sair de casa. Ela ficava meses e meses e meses sem sair de casa. Não visitava nem os filhos. Os filhos é que iam visitá-Ia, porque ela não gostava de sair de casa. Eu sempre fui de ficar em casa. Com a idade, este traço vem se agravando cada vez mais".

Geneton: O fato de levar uma vida mais descansada, sem compromissos sociais, vai acalmar esta relação do senhor com o ato de escrever - que é algo torturante...?

João Cabral: "Não. Eu escrevo com dificuldade. Mas, a mim, não me irrita só escrever com dificuldade. Se, um dia, eu escrever com facilidade deixarei de escrever de vez. A facilidade não leva a nada. Você vê, por exemplo, em matéria de futebol. A seleção brasileira jogou mal mas jogou melhor contra a Espanha. Por quê? Porque tinha um adversário forte pela frente. E estava acostumada a jogar com juvenis, contra os juvenis. Em jogos fáceis, a seleção não se revelava. A seleção, então, começou a jogar direito (N: João Cabral se refere ao jogo Brasil 1 x 0 Espanha, na Copa do México). A facilidade não conduz ninguém a nada. Ainda que, de repente, baixar o Espírito Santo e eu começar a escrever com facilidade, espero ter a coragem de deixar".

Geneton: O senhor seria capaz de escrever uma coluna diária num jornal?

João Cabral: Acredito que não. Para mim, seria difícil. É uma atividade que não me seduz. Para mim, seria difícil escrever uma crônica diária. Não me seduz.  É como escrever carta. Quem escreve uma crônica acaba falando de si".

Geneton: Nesses quarenta anos de vida diplomática, o senhor conheceu centenas de grandes personalidades da área intelectual e política. Qual foi a que mais marcou o senhor?

João Cabral: "Miró me impressionou enormemente. Eu o conheci da primeira vez que estive em Barcelona. Quando fui embaixador no Senegal, o presidente Senghor me impressionou enormemente, porque é um homem extraordinário".

Geneton: Como ex-jogador de futebol, o senhor acha que o futebol faz bem à saúde mental do povo brasileiro?

João Cabral: "Ah, eu gosto de futebol! Mas, agora, como não vivo no Brasil, não vou a futebol. A grande vantagem do futebol brasileiro é que é o único futebol que você assiste sem estar interessado na vitória de um clube. Você assiste porque é um espetáculo bonito. Com futebol europeu não acontece. Você não vê uma jogada maliciosa, não vê um gesto harmônico, não vê elegância. Só aquela correria. E correria não me interessa. Só consigo me interessar pelo futebol brasileiro. Há os que gostam de ver futebol porque gostam de ver o time predileto ganhar. Mas acontece que meu clube é o América. Ganha tão pouco... Então, gosto de futebol não para ganhar. Gosto pelo espetáculo. Eu era América no Recife. Quando voltei para o Rio, era normal que fosse América também. Joguei um campeonato pelo América, no Recife. O Santa Cruz tinha chegado ao fim do campeonato empatado com o Torre, um clube que nem existe mais. O Santa Cruz não tinha center-half. Então, descobriram que a minha mãe era fanática pelo Santa Cruz, embora nunca tenha ido a um jogo de futebol. A diretoria do Santa Cruz, então, foi pedir à minha mãe que me fizesse jogar pelo Santa Cruz. Joguei. Disputei o campeonato com o Torre e fui campeão juvenil pelo Santa Cruz, em 1935".

Geneton: Daí é que surgiu a famosa dor de cabeça que o acompanhou durante décadas?

João Cabral: "Não. Minha dor de cabeça começou quando eu tinha dezesseis anos e foi uma das coisas que me fez largar o futebol. Naquele tempo, eu não podia correr, porque vinha a dor de cabeça...".

Geneton: Já passou?

João Cabral: "Não. Hoje, talvez esteja um pouco melhor. Com a idade, talvez ela doa menos. Mas ainda sou obrigado a tomar remédios..."

Geneton: Quantas aspirinas o senhor toma por dia?

João Cabral: "Não posso mais tomar aspirina. Depois dessa hemorragia gástrica que tive, em novembro de 85, os médicos me proibiram de tomar aspirina. Agora, tomo outros calmantes".

Geneton: Que informação o senhor tem sobre a poesia que se faz hoje no Brasil?

João Cabral: "Não conheço bem a poesia brasileira posterior a mim. Só conheço os livros dos poetas que me mandam livro. Poucos são os que me mandam. Lá fora, não encontro estes livros para comprar. É difícil, para um escritor, julgar o pessoal que vem depois. Um sujeito pode julgar bem os anteriores a ele. Mas julgar uma geração mais nova é difícil, porque essa geração vem com uma experiência que o mais velho já não tem. Eles  escrevem sobre as experiências que eles têm e eu não tenho. Não vivo aquelas coisas. Sou de uma outra geração. Minha sensibilidade estava mais aguda em determinadas fases de minha vida. O Brasil de minha mocidade não é o Brasil da mocidade desse pessoal. A vida que eu levava como jovem não é a vida que eles levam. Eu seria injusto se julgasse, porque eles falam de uma experiência e de uma visão de vida que não são as minhas. Em geral, não gosto de julgar os autores mais jovens do que eu. Viveram num tempo que não vivi, foram jovens num tempo em que eu já não era jovem e levam um tipo de vida que não é a que eu levei".

Geneton: Desses poetas posteriores ao senhor, a poesia de um Afonso Romano de Santana, por exemplo, lhe agrada?

João Cabral: "Conheço. É um poeta interessante. Afonso Romano é um desses sujeitos que escrevem poesia sabendo que é poesia. Não escreve poesia de oitiva. É um homem culto, um professor. A.gente vê que ele leu um bocado. A poesia que ele escreve não é improvisação nem uma coisa gratuita. Não é o resultado de bossa. É o fruto de uma consciência intelectual".

 

João Cabral de Melo Neto


Entrevista conduzida por Claudiney Ferreira e Jorge Vasconcellos, do programa Certas Palavras, da Rádio Eldorado, com a participação de Augusto de Campos e Lêdo Ivo, apresentada em julho de 1988 e republicada no livro: FERREIRA, Claudiney; VASCONCELLOS, Jorge (orgs.) Certas Palavras. São Paulo: Estação Liberdade: Secretaria de Estado da Cultura, 1990, de onde foi extraída.

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- Augusto de Campos:
Dos poetas que antecederam a minha geração, aquele com quem eu tenho mais afinidade, aquele que para mim sempre foi o mais importante é o João Cabral, não só pelas características de rigor compositivo da sua obra, como pela sua aversão ao sentimentalismo e à facilidade. O João Cabral desenvolveu ao longo dos anos uma obra extremamente coerente, que para nós, de geração posterior, constituiu uma lição de poesia. Eu me lembro de que numa carta, uma das raras cartas que tenho do João Cabral, de cerca de 20 anos atrás, ele me falava da dificuldade que sentia para escrever - João devia ter, àquela altura, uns 40 e poucos anos. Ele escreveu uma coisa que me impressionou muito naquela ocasião: "Será que o costume, ao invés de ensinar a escrever, desensina?" Isso me impressionou muito porque é um tema que me acompanha no desenvolvimento do meu próprio trabalho. Então eu gostaria de perguntar ao João, passados tantos anos, como ele convive com essa circunstância, ou com esse tema, com essa espécie de obsessão.

Augusto, muito obrigado pelo que você diz da minha poesia. Não me lembrava de ter dito isso a você, mas 20 anos depois continuo a achar a mesma coisa de poemas prontos - eles publicam aquilo como se fosse um depósito. Esse cansaço de estruturar um poema longo me veio com a idade, a incapacidade de estruturar um livro como acho que deva ser estruturado me veio com a idade, e também de fazer poemas mais complexos, como fiz nessa fase de Quaderna até A educação pela pedra. Meus poemas, desde Museu de tudo, são poemas mais ou menos soltos e que depois eu reúno em livro. A unidade é mínima. A Escola das facas tem uma unidade fora, apenas porque todos os poemas são sobre Pernambuco; em Museu de tudo, é porque dá idéia de museu, fala de pintor, de paisagem, fala de gente; a mesma coisa em Agreste. Agora, escrever um poema não ensina, não facilita a você escrever outro. Acho, aliás, que é uma coisa que a gente deve evitar, cair no automatismo de si mesmo. Sempre pensei que à medida que eu fosse aprendendo a fazer poesia, quer dizer, à medida que eu fosse controlando a minha maneira de fazer, começaria a fazer mais facilmente, ou seja, a pessoa encontra a sua forma e então deita-se na cama e põe aquilo a multiplicar. Acontece que isso é um grande engano. Para cada poema novo eu saio como se fosse para uma aventura nova. Tenho a impressão de que um poema não ensina a gente a fazer o poema seguinte. No poema seguinte a gente quer fazer uma outra coisa, ou melhorando ou fazendo diferente. Uma outra coisa que eu disse também é o seguinte: quando escrevi essa carta eu devia ter 40 e poucos anos - isso é uma confissão que quero lhe fazer - e ainda era capaz de fazer um livro estruturado, de Quaderna até A educação pela pedra; mas agora, com a idade, eu me sinto cansado para estruturar um livro como tal. De forma que os meus últimos livros, com exceção do Auto do frade, que é um auto, portanto tem uma certa unidade, são como em geral todos os poetas fazem. O poeta deve sair para cada poema como se fosse para uma aventura, como se fosse o primeiro que está escrevendo.

- Augusto de Campos:
Muitos anos atrás, também, o João publicou na Revista Brasileira de Poesia traduções muito bonitas do catalão, e uma delas, que me impressionou muito e até hoje eu me recordo, é do Josep Palau, em que ele se dirige a uma mulher e diz assim: "Eu quero desnascer em ti". Quero saber se o João pretende algum dia reunir essas traduções que ele publicou em revistas.

Aqueles poemas que saíram na Revista Brasileira de Poesia são de poetas catalães de minha geração e foram traduzidos da primeira vez em que estive lá. Em 1954 houve o Centenário de São Paulo, e uma sociedade catalã abriu um concurso para poemas traduzidos do catalão e Domingos Carvalho da Silva me convidou para participar. Aqueles 17 poemas já não eram inéditos e eram poucos para participar de um concurso assim, de forma que eu acabei outras traduções dos poetas que eu tinha começado na Catalunha e de poetas mais antigos que esses da minha geração. Há gente interessada em publicar isso, mas acontece que eu cheguei de Portugal e ainda não arrumei todo o meu arquivo e todos os meus livros. É uma coisa de tanto tempo, de 54 para cá, que eu quero reler para ver se vale a pena publicar. Agora, os poetas posteriores eu não conheço bem, porque da segunda vez que servi em Barcelona como cônsul-geral, confesso que estava interessado em outras coisas e não me pus a par do que o pessoal mais jovem estava fazendo, de forma que eu acho que vai sair uma antologia um pouco datada, com poetas até a minha geração.

- Ledo Ivo:
Conheci João Cabral de Melo Neto no Recife, em 1940. Eu tinha 16 anos e ele tinha 20, de modo que é a minha amizade mais antiga, de quase meio século. Somos amigos precisamente há 48 anos. Não tenho visto João há dois anos, embora ele esteja no Rio de Janeiro, então eu pergunto: por que esse sumiço, João? Por que você não aparece na Academia Brasileira de Letras?

Não há sumiço nenhum, e aliás não estou no Rio há dois anos, mas exatamente há um ano. O que acontece é que em Lisboa, ultimamente, eu tinha passado bastante mal de saúde. Sofri duas operações muito complicadas, numa das quais eu quase ia batendo as botas. Desde que voltei tenho me sentido bastante deprimido. Um amigo meu disse que é a síndrome do aposentado... Eu não sei, talvez seja. Não tenho ido à Academia apenas porque ando meio deprimido, e acho que minha companhia não deve ser muito agradável para os amigos, por isso praticamente não tenho visto ninguém. Você sabe que um dos grandes amigos meus é o Lauro Escorel, que eu quase não vejo, não o vi nenhuma vez depois que cheguei. Você diz que eu sou o seu mais antigo amigo, e eu digo a mesma coisa: você é o mais antigo amigo meu. Muitas vezes tenho vontade de ir à sua casa bater um papo, ou coisa assim, mas a verdade é que me sinto inteiramente incapaz de tomar a iniciativa, de dar um telefonema. Eu atendo ao telefone, mas para me mexer, pegar o telefone e ligar para o amigo, me é difíciL...

- Certas Palavras:
João Cabral, você falou nessa resposta ao Ledo Ivo sobre a síndrome do aposentado e citou o esforço que é para você, hoje, atender telefone. Isso tudo não seria, digamos, uma introspecção sua em busca de um tempo perdido? E talvez porque não valha a pena atender ao telefone?

Não. O difícil para mim é tomar a iniciativa de telefonar. Quanto à síndrome do aposentado, é uma coisa terrível porque sou um sujeito que precisa de muita disciplina. Fui diplomata por 45 anos. Você vive fora, mas tem aquela obrigação, a hora certa, tem de ir ao trabalho, tem obrigações sociais, ao passo que com o aposentado é uma coisa terrível, porque ele acorda de manhã e vê o dia vazio na frente dele, tem a disponibilidade absoluta de fazer o que quer. E isso, a falta de obrigação de fazer alguma coisa, me angustia muito. Quando estou livre para fazer o que quiser, acabo não fazendo nada, acabo sentado numa cadeira, lendo, incapaz de fazer qualquer coisa. Tanto que estou, agora, procurando ver se aproveito esses meus anos de Rio para pesquisar, na Biblioteca do Arquivo Histórico do Itamaraty, documentos de interesse para a história de Pemambuco. Isso vai me obrigar a cada dia a sair de casa como se fosse um emprego, embora não me renda nada, pois eu vou fazer esse trabalho por amor a Pernambuco e por simpatia ao Instituto Histórico de Pernambuco.

- Certas Palavras:
João Cabral, e a poesia? A poesia não exige essa disciplina, não seria uma forma de ocupar o tempo, trabalhar mais a palavra?

Bem, imaginei sempre que no dia em que me aposentasse eu poderia escrever mais livremente, mas acontece o seguinte: eu escrevia sempre nas horas vagas, e agora que todas as minhas horas são vagas não tenho estímulo. Outra coisa, a gente não pode escrever permanentemente poesia porque os nervos não resistem, de forma que eu trabalho muito, e escrever poesia é um trabalho esgotante. Se eu me entregar inteiramente a escrever poesia, meus nervos não terão resistência para trabalhar diariamente no extremo de mim mesmo. Para trabalhar eu preciso passar épocas de concentração, quando só faço aquilo, só vivo aquilo - e no meu atual estado de espírito estou incapaz dessa concentração.

- Certas Palavras:
Nossa questão agora abrange a influência que você já proclamou ter recebido do Drummond, e diz respeito também a sua relação com o Brasil. Numa entrevista você disse que não era um poeta brasileiro, e a explicação era lógica, ao aceitar a idéia de ser um poeta pernambucano, mas não um poeta brasileiro. Agora, com a morte de Drummond, há um certo desejo de adotar você como o primeiro poeta da sociedade. Como seria o fato de encarar a possibilidade desse reconhecimento, de ser o primeiro poeta de um país?

Não acredito nessa coisa de primeiro poeta. Penso que Carlos Drummond tivesse sido o primeiro poeta enquanto era vivo, pelo seguinte: se você pensar bem, o Carlos sobreviveu a todos os poetas da mesma categoria e da mesma geração dele. Sobreviveu ao Murilo Mendes, sobreviveu ao Joaquim Cardozo, ao Vinícius, ao Augusto Frederico Schmidt, ao Cassiano, de forma que ficou isolado. Então, naturalmente, todos se voltaram para ele como o grande poeta nacional que era. A qualidade da poesia de Carlos Drummond tinha tudo para fazê-lo um grande poeta nacional - a minha não tem, e aí é que está a coisa. Sou um poeta brasileiro na medida em que sou um poeta pernambucano. Nesse momento, o Sindicato do Açúcar de Pernambuco quer publicar esses livros-brindes de fim de ano, e foram escolhidos os meus poemas pernambucanos. Com isso fui fazer um levantamento e concluí que metade do que escrevi foi sobre Pernambuco. Fora esses poemas, escrevi um tipo de poema-crítica sobre autores, sobre pintores, de forma que tenho a impressão de que não reflito o sentimento nacional no sentido do Brasil como um todo. Como diplomata, vivendo no estrangeiro, está claro que teria de haver infiltração de muitos temas estrangeiros no material da minha poesia, sobretudo da Espanha, o país onde eu mais vivi - vivi lá 13 anos, em seis postos diferentes - e com o qual me identifiquei inteiramente, com todas as suas coisas populares. Não acredito que eu trate de temas amplamente brasileiros, porque vivi no Sul do Brasil muito pouco tempo. Eu vim de Pernambuco para o Rio de Janeiro aos 23 anos, fiz concurso para o Itamaraty e aos 27 anos fui para Barcelona. Desde então tenho vivido no estrangeiro, de forma que é um pouco difícil eu ser um poeta nacional. Sobretudo porque para ser um poeta nacional é preciso ser épico, o que Carlos Drummond de Andrade era e eu confesso que não sou. E não acredito absolutamente nesse negócio de eu ser o primeiro poeta. Na minha geração e nas gerações posteriores há poetas a quem caberia melhor esse título. Eu sei e me resigno, com muito orgulho, de vir a ser na poesia uma espécie de Augusto dos Anjos, um poeta meio marginal, que interessa, mas interessa de maneira especial. Não estou na corrente geral da tradição da poesia brasileira. Eu sou um sujeito que ficou um pouquinho de lado, não só por ter vivido no estrangeiro, como também porque não conheço o Sul do Brasil nem me identifiquei com os seus problemas, ao passo que com os problemas de Pernambuco eu me identifiquei. Saí de lá aos 23 anos, de forma que a memória é que é a grande reserva de poesia.

- Certas Palavras:
João Cabral, como é que você vê a relação do brasileiro com o livro?

Acho que é uma relação muito triste, porque o brasileiro não tem hábito de ler. Isto é uma das coisas mais tristes que eu vejo. Em segundo lugar, acho que seria de um grande bem para o brasileiro conhecer a boa literatura estrangeira. Em geral, o que traduzem são best-sellers. Recentemente, por exemplo, no aeroporto do Rio, eu estava esperando o avião ao lado da vitrine da livraria, e quase todos os livros eram traduções de best-sellers. Até parece que a tradução dos grandes romancistas, dos grandes poetas, dos grandes ensaístas não tem público no Brasil. Se você não sabe francês, espanhol, inglês, alemão, você fica cortado. E mais: quando traduzem aqui, traduzem muito tempo depois. O brasileiro não tem hábito de leitura, mas acho que deve haver uma solução para que passe a ler mais, não sei como - não sou político, não sou administrador, não sou o salvador do mundo -, mas que passe a ler não esses livros de escritores de best-sellers americanos que traduzem aí às pamparras. Tenho a impressão de que é preciso traduzir, porque nem todo brasileiro tem o dom de línguas; são poucos, a começar por mim. Eu tenho o dom de línguas no sentido de que aprendo uma língua com muita facilidade, mas minha pronúncia em todas elas é pernambucana

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