"Acho que já disse que os contos do Bestiário, ou vários dos textos desse meu primeiro livro de contos, foram, sem que eu soubesse, auto-terapias, do tipo psicanalítico... Escrevi esses contos sentindo sintomas neuróticos que me incomodavam, mas que jamais me fizeram ou me obrigaram a procurar psicanalistas. Aliás, nunca fui a um psicanalista em toda a minha vida. Então, eram sintomas que me incomodavem não a ponto de buscar um psicanalista, mas que sem dúvida me incomodavam. Eu percebia que eram sintomas neuróticos pela simples razão de que as minhas longas horas de ócio, enquanto era professor em Chivilcoy, li as obras completas de Frued na tradução de Torrres Ballestero, na edição espanhola. E fiquei fascinado. Então, comecei, de maneira muito priimária, a auto-analisar meus sonhos. Dos meus sonhos saiu boa parte de meus contos. Comecei a analisar os atos falhos, os lapsos, que na verdade são bloqueios. Tudo isso para dizer que quando comecei a escrever os contos que me pareciam publicáveis - os de Bestiário e, no caso concreto de um deles , 'Circe' - estava esgotado pelos estudos que fazia para me diplomar como tradutor público em seis meses... Mas, à custa, evidentemente, de um desiquilibrio psicológico, que se traduzia em neuroses muito estranhas. como a que deu origem a esse conto. Lembre-se que todo mundo se diplomava em três meses, e eu queria me formar em seis meses... Mas, voltando ao conto: eu vivia, naquela época, com minha mãe. Ela cozinhava, e sempre gostei da comida que ela fazia, Merecia minha mais competa confiança. De repente, comecei a reparar que, ao comer, antes de levar a porção à boca, examinava cuidadosamente, porque tinha medo de que uma mosca tivesse caido na comida. Isso me incomodava profundamente, porque se repetia de maneira doentia. Mas, como sair daquilo? Claro, toda vez que ia comer num restaurante, a coisa piorava. De repemte, um belo dia, lembro-me muito bem alías que era de noite. voltei do trabalho e caiu em cima de mim a sensação de que uma coisa acontecia em Buenos Aires, no bairro de Medrano, de Almagro. Uma mulher muito linda e muito jovem, mas da qual todo mundo desconfiva e odiava porque achava que fosse um espécie de bruxa, pois dois de seus noivos tinha se matado... Bem, comecei a escrever o conto sem saber o final, como sempre. Avancei e terminei, e passaram-se quatro ou cinco dias e de repente me peguei comendo um cozido em minha casa e cortando um omelete e comendo como sempre, sem a menor desconfiança. Então, pelas minhas leituras de Freud, me perguntei porque até quatro ou cinco dias antes examinava cada bocado e, de repente, não fazia mais isso. E pensava: bom, se tiver uma mosca, tem uma mosca e pronto! Quantas vezes na vida não terei comido uma mosca? Qual a importância? E pensei que devia ter um explicação: Não aceitei o fato de saída, Isso é típico em mim, sempre foi, desde menino: não aceitar os fatos. De repente, estabeleceu-se o final: aquele final do conto, no qual a moça fabricava bombons com baratas, e os noivos anteriores se suicidaram porque comeram esses bombons. O narrador se salva porque tem uma suspeita, abre o bombom, vê a barata e, claro, escapa. Acho que é um dos contos mais horrorosos que escrevi. Mas foi um exorcismo, porque me curou do temor de encontrar uma barata na minha comida. Agora, o que é estranho - há outro mistério subsidiário - é como a psique uma inteligência que trabalha em todos os níveis, é incapaz de estabelecer uma relação entre a neurose, escrever um conto, curar essa neurose e não perceber que esse conto era a terapia... Só descobri isso depois..."
Fonte: PREGO, Omar. O fascínio das palavras: entrevistas com Julio Cortázar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 171.