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Biografia familiar

10ª Parte: A casa das rosas (e dos espinhos)

Cícero da Mata

       O casamento e a conseqüente saída de Zezé provocou um abalo na vida da Mãe, devido ao apego que ela mantinha por ele. Mas a situação foi mitigada por alguns fatores, tais como o fato de José se encontrar residindo na Vila Paiva, próximo da Vila Guilherme, e visitá-la diariamente, e pelo fato de o próprio Zezé residir não muito longe dali e trabalhar (na compra e venda de sucata) tendo a casa da Mãe como sede do negócio.
      Cabe destacar nesse período que Luiza, residindo em Garanhuns, vinha à São Paulo duas a três vezes por ano, passando um mês em cada estadia na casa da Mãe. Assim, juntando com as visitas esporádicas dos outros filhos, a Mãe ficava sozinha por pouco tempo. Certa vez, por volta de 1994, José e Zezé estavam fazendo o costumeiro “happy-hour” no bar da esquina juntos com os amigos da vila. Bar é força de expressão porque ali faltava quase tudo que se vende num bar, particularmente o principal: cachaça, cerveja, cigarros etc. Quando tinha cachaça faltava limão, e quando tinha cigarros faltava fósforo.
        Ao fim da tarde de uma sexta-feira, os dois irmãos conversavam com os agentes (negociadores de bar) que ali “faziam ponto” na esperança de vendê-lo, pois o proprietário já havia abandonado o estabelecimento há algumas semanas. A conversa girava em torno das dificuldades de se vender um bar naquelas condições. José tinha estacionado seu Corcel (Trovão azul) 1976 na porta, o qual vinha dando muito trabalho e causando muita raiva devido a problemas mecânicos de todos os tipos. No meio da conversa, José perguntou se eles topariam trocar o bar pelo Corcel. Um dos agentes respondeu com outra pergunta:

        - O carro está funcionando? Quero dizer, ele “anda”?

       José titubeou na resposta, mas disse que sim. “Porém, se não funcionar, o Raimundo (vizinho mecânico que ali se encontrava), dá um jeito de fazê-lo ‘andar’”. O agente se animou com o negócio e se propôs a realizá-lo, caso o carro funcionasse. José trocou três ou quatro palavras com Zezé no sentido de ele ficar com o bar; Raimundo mexeu, remexeu e soprou as velas; esticou a correia; apertou uns parafusos, desapertou outros; deu partida e o motor “pegou”. Fecharam o negócio. José já ficou instalado no balcão enquanto Zezé e os agentes montaram no carro e foram para o escritório na Av. São João lavrar o contrato. O carro saiu do lugar a muito custo, aos pulos, fazendo o maior barulho e soltando um fumaceiro enorme, que encheu toda a esquina. O pessoal que ficou na porta do bar aplaudiu, e só faltou soltar fogos de artifício comemorando o feito.
        Aos poucos, Zezé foi levantando o bar com a ajuda de Chico, um amigo de José, como funcionário “contratado” e de Juliano, filho de José, que atendia no período da tarde. Na sexta-feira, à tardinha, José também ajudava no setor de bebidas, enquanto bebia junto. O costumeiro happy-hour, que ali era feito semanalmente, ficou mais animado e menos dispendioso. O negócio durou um ano e pouco e não se sabe até hoje porque acabou. O fato é que Zezé vendeu-o ao preço de mercado, pagou o Corcel à José, ficou com alguns trocos, e voltou para o ramo da sucata.

          Poucos anos depois, a grande família teve sua primeira baixa. Em 5 de setembro de 1997 em vez de comemorarmos o aniversário de João, que faria 49 anos, choramos sua morte. Algumas semanas antes ele fora internado com o diagnóstico de cirrose. Pouco depois ele teve alta, e nós achávamos, e a família dele confirmava, que o caso não era tão grave, que ele estava se recuperando bem, parou com a bebida e estava melhor. Mas, sem que soubessemos, ele voltou ao hospital e não saiu vivo. Sua mulher só nos avisou quando o fato já estava consumado. José deu-lhe a maior bronca por não ter deixado que os irmãos fossem ao menos visitá-lo no hospital para uma última despedida.

          A segunda baixa ocorreu  três anos depois com o falecimento de Maria. Em 28 de março de 2000, pela manhã, seu marido Darquinho saiu para comprar uns pãezinhos e quando voltou, encontrou-a caída no banheiro. Nada pode ser feito: foi um enfarto fulminante. Desde alguns anos, ela vinha com a saúde abalada e tomando muitos remédios. Sua filha Marisa, que morava em Campinas, veio imediatamente e passamos a providenciar um médico que pudesse dar um atestado de óbito, pois caso contrário teríamos que passar por toda a burocracia para expedir um laudo pericial atestando a causa-mortis.
       Passado esses infortúnios, voltamos à normalidade naquela casa que a família vivia há mais de 20 anos, até que o dono pediu o imóvel. E agora? A Mãe dizia alto - para os vizinhos ouvirem – que não saía da Vila Guilherme de jeito nenhum; que ali havia se acostumado e que ninguém a tiraria de lá. Na busca de uma nova casa ali por perto, tiveram a sorte de encontrar uma bela casinha na rua Ida da Silva. Tinha um quarto, sala, cozinha e lavanderia amplas, ladeadas por uma área livre e um quintal na frente, onde ao centro se impunha uma majestosa roseira florida. Vale dizer que rosa era a flor preferida da Mãe.
         Na “casa das rosas”, e no início, a mãe passou por bons momentos na vida. Um dos que vale registrar se deu num sábado pela manhã, em janeiro de 2004, quando seu neto Juliano voltou de Manaus, na condição de médico-tenente da Marinha. Entrou na casa uniformizado, todo de branco, trajando um “dólmen” e quepe, acompanhado de seus pais. Ela ficou não se contendo na maior alegria. Juliano havia passado um ano prestando serviços na Amazônia. Na porta da casa tinha feira aos sábados, e do portão mesmo ela podia comprar umas frutas e verduras, que os feirantes levavam até o portão.
         Os feirantes faziam isso porque nessa época ela já não andava bem das pernas, e caminhava com dificuldades. Afinal, já contava com 89 anos. A partir daí, nessa mesma casa das rosas é que começa a surgir os espinhos na vida da mãe. A locomoção vai ficando cada vez mais difícil, exigindo a contratação de uma pessoa para lhe fazer companhia em tempo integral. José chegou a convocar mais de uma reunião com todos os filhos para viabilizar uma melhoria na qualidade de vida da Mãe. Havia o pressuposto de que com tantos filhos e filhas, se houvesse uma programação no revezamento das visitas, o problema seria drasticamente reduzido.
         Mas, infelizmente, nas grandes famílias com os filhos cada qual com a sua própria, esse problema de manutenção dos pais idosos nem sempre é bem resolvido. É por isso que não pára de crescer o mercado de casas de repouso. Tal possibilidade chegou a ser cogitada, mas sempre repudiada por um ou outro filho e nem sequer imaginada pela Mãe. Ela esbravejava sempre que alguém tocava no assunto. No entanto, a maior dificuldade era encontrar uma moça ou senhora que ela gostasse e pudesse ficar pelo menos um mês. A empregada chegava e nos dois primeiros dias era uma beleza. No terceiro dia já se tornava parente e começava, segundo a Mãe, a abusar da sua boa vontade. Nos dias seguintes era só reclamação, que “eu não agüento mais essa fulana”, etc. e tal.
         Desse modo, a Mãe passou a exercitar um “esporte” que aborrecia muito os filhos: contratar e despedir empregadas. Muitas delas não duravam um mês no emprego. Esse foi um período difícil tanto para ela como para os filhos, que tinham que encontrar um lugar para ela dormir ou algum deles ir dormir na casa dela. Na maior parte das vezes, Zezé deixava sua casa e ia dormir na casa dela. Pouco depois, o proprietário pediu a casa e tiveram que se mudar para outra na mesma rua. Uma casa mais perto do reduto onde ela estava habituada a morar. Perto da mercearia e de algumas colegas vizinhas.

         Para melhorar, encontrou uma pessoa para trabalhar e morar com ela, com quem se deu melhor do que com algmas das filhas. Rosa era uma senhora moça, morena e sertaneja como a Mãe. Até nos traços físicos guardavam alguma semelhança e se deram tão bem ou ainda melhor do que com algumas das filhas. Pouco depois Rosa disse que só poderia ficar se pudesse trazer o marido. A Mãe, não querendo perde-la, aceitou e assim dividiram a casa ao meio, com uma porta sanfona que ligava os dois cômodos.
        À medida em que o tempo vai passando, os problemas de locomoção vão se agravando ao ponto de ela encontrar dificuldade até mesmo para ir à cozinha. Mas ia segurando-se pelas cadeiras, mesa e o que houvesse. Cozinhava com uma mão apoiada na pia e outra na panela. Uma vez José chegou lá e pegou-a junto ao fogão se debatendo contra uma labareda de fogo. Se ela estivesse sozinha por mais um minuto poderia ter acontecido uma tragédia. Mesmo assim, não perdeu o gosto de andar. Para ir na feira, na porta da casa, pedia à Zezé para levá-la de braço
dado.
       Nesse estado, as viagens de Luiza de Garanhuns à São Paulo se intensificaram junto com a permanência, de modo que se fossem contabilizados os dias, Luiza passava mais tempo com a Mãe do que algumas irmãs residentes em São Paulo. Com isso surgiu a idéia de sua mudança para Garanhuns e morar definitivamente com Luiza, que vivia só numa casa grande. Assim surge a possibilidade de uma nova viagem. Mas para isso havia uma barreira quase intransponível: como viver sem Zezé por perto? Será possível isso? Ela vai ser capaz, a esta altura da vida, de encarar este sacrifício? É o que veremos no próximo capítulo.

1ª - Cerimônia de um casamento

2ª - Peripécias do tio pastor

3ª - A gande família

4ª - Primeira diáspora

5ª - Segunda diáspora

6ª - Segunda dispersão

7ª - Terceira diáspora

8ª - Terceira dispersão

- A era do matriarcado

11ª - ùltima diáspora

12ª - Última viagem

13ª - Epílogo