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Biografia familiar

1ª parte: Cerimônia de um casamento

             Cícero da Mata

 

        O avô não era coronel de fato nem de direito. De fato porque não tinha tantas posses para sustentar a distinção do cargo. De direito porque não recebeu a patente outorgada pelo poder constituido na época, resquício do poder imperial. Mas, as quadras de terra, algumas cabeças de gado, uns poucos moradores trabalhando de meia - porém descalços - lhe permitia consideração e respeito que sombreavam o poder de um coronel em Jucati. um povoado encravado no agreste pernambucano, nas proximidades de Garanhuns .

       Foi nessa condição que conseguiu escapar da enrascada em que se meteu ao "fazer mal" à filha de um meeiro, menina de 15 ou 16 anos. A gravidez e a gravidade do fato aborreceram o pai da moça. O caso era grave  porque toda a cidade já estava sabendo e, pior, comentando nas bodegas e feira de sábado.

        O pai da moça procurou o delegado e apresentou queixa. O delegado acolheu a contragosto, pois não podia fugir de sua obrigação. Em seguida, procurou o avô para ver o que poderia ser feito. Homem justo e cumpridor de seus deveres, disse-lhe para fazer o que tinha que ser feito e, se precisasse de alguma coisa, estaria à disposição de sua autoridade.

        O delegado respondeu que já havia pensado no caso e que a única coisa a ser feita era ele se casar com a jovem que esperava um filho seu. Mas, isso não era saída, visto que ele já era casado. Diante do fato, do falatório na cidade e da indignação do pai da moça não querendo arredar pé da justiça que precisava ser feita, o melhor era prendê-lo por um dia e ver com o juiz outra solução que agradasse a todos.

        Esta saída tinha a conveniência de acalmar o pai da moça e ganhar tempo para resolver a "situação". O delegado, de modo algum, queria usar a palavra questão. Essa conversa amistosa ocorreu na sala da casa, com café, bolacha "regalia" e manteiga na presença da esposa, que a tudo assistia  e em tudo concordava que assim era melhor e que assim devia ser feito.

         Com isso ela aproveitava a oportunidade de castigar o velho de um modo legal, alí na presença do Delegado, já que essa era a única maneira dela se vingar daquela extravagância e dos aperreios que já passou na vida por causa daquele velho "enxerido". Mas o velho  não se convencia com a solução apresentada. O Delegado prometeu-lhe que não iria sofrer nenhum desconforto nem constrangimento algum nesse dia de cadeia.

        Aproveitariam para jogar umas partidas de dama, colocar em dia as discussões que eles costumavam ter, etc. Porém, o argumento final que o convenceu foi que agindo assim, ele estaria  reforçando sua imagem de homem sério e cumpridor da lei. Dessa forma, ele consentiu em passar um dia - nem mais nem menos - na cadeia, desde que procurassem logo o juiz e, se precisasse, o padre para resolver a questão. Já admitia que tratava-se de uma questão. O delegado retirou-se satisfeito por ter encaminhado o caso nos termos da boa civilidade, sem brigas e mortes como costumava acontecer em casos menos graves do que este naquelas redondezas.

 

        Assim, foi "preso" e a honra da moça, melhor dito, do seu pai, ficou preservada por mais uns dias. O juiz ponderou e decidiu por uma saída honrosa para todos. Bastaria que o padre fizesse vista grossa para que o casamento fosse feito com o filho mais velho, no lugar do seu pai, o tio Davi, de uns 18 anos. O avô gostou dessa solução e sequer consultou o filho Davi para saber se ele queria ou não casar. Disse-lhe apenas para arrumar uma roupa nova para se casar sábado no Cartório.

        Claro que o casamento seria só no civil, pois na igreja era impossível. A cidade inteira não podia testemunhar um sacrilégio desse porte. Com isso se resolveria tudo: a avó foi convencida de imediato a aceitar sem muita explicação; o tio não viu inconveniência, pois aquilo era apenas um acordo para que o pai não sofresse conseqüências maiores. E o pai da moça ficou satisfeito em ver a filha casada com o patrão. E a moça? Bem, a noiva, tal como o noivo, não foi consultada. Supõe-se ter gostado, pois de alguma forma ela poderia ser chamada de patroa, pelos vizinhos.

        Assim, foi feito o casamento no Cartório, numa cerimônia feita às pressas, com a presença do padre (para dar um mínimo de credibilidade à cerimônia), das famílias e puxa-sacos. Após a "cerimônia", a vida na cidade e em casa transcorreu numa aparente tranquilidade: meu tio mal chegou a ver a moça no cartório e depois não mais se viram; o velho botou-a dentro de casa com a desculpa de ajudar a mulher e passou a transar com ela habitualmente; a moça se contentou com a vida de empregada-amante e passou a viver de qualquer jeito com a esposa dando-lhe ordens, broncas e sopapos, se precisasse.

Links relacionados:

2ª - Peripécias do Tio Pastor

3ª - A Grande Família

4ª - Primeira diáspora

5ª - Segunda diáspora

6ª - Segunda dispersão

7ª - Terceira diáspora

8ª - Terceira dispersão

9ª - A era do matriarcado

10ª - A casa das rosas (e dos espinhos)

11ª - Última diáspora

12ª - Última viagem

13ª - Epílogo