Biografia familiar
6ª parte : Segunda dispersão
Cícero da Mata
O leitor há de perguntar: “Mas dispersão e diáspora não são a mesma coisa? Diáspora é uma debandada geral motivada por alguma situação adversa. Já dispersão é apenas uma separação dentro do mesmo grupo. Há de perguntar também, e com justa razão: “Por que segunda dispersão se não tem primeira? Vimos que as duas filhas mais velhas (Erotildes e Eurides) se casaram no início dos anos 50, e com isso se dá a primeira dispersão. Se não foi relatado em título é porque foi uma pequena dispersão, diferente desta onde quatro filhos saem de casa num espaço de três anos.
E assim foi que em meados de 1959 a família se estabeleceu em Garanhuns. Com algumas pessoas conhecidas desde Jupi e alguns parentes residindo na cidade, não foi difícil encontrar uma boa casa para morar na Av. Rui Barbosa. Com os recursos poupados em São Paulo, o pai logo monta uma mercearia na paralela Rua Julio Brasileiro. A “venda”, como chamávamos, vendia de quase tudo: secos & molhados, latarias, bebidas e cachaça no balcão, pães e bolachas etc., além de uma seção de armarinhos.
Para tocar a mercearia, o pai escolheu João (12 anos), o filho que aparentava mais esperteza para lhe ajudar no negócio. João sempre foi o mais despachado de todos os filhos. E porque não escolheu Euclides já adulto? Bem, esse poderia arrumar emprego fora de casa, pois a mercearia não dava para manter toda a família. Assim, Euclides arrumou emprego de balconista nas Lojas Paulista (atual Casas Pernambucanas). Depois conheceu Lourdes, casaram-se em 1961 e no ano seguinte foram morar em São Paulo.
Das filhas, Luiza era costureira e bordadeira de mão cheia. Progrediu nesse trabalho e chegou manter seu próprio negócio na confecção de roupas e bordados. Em pouco tempo montou uma barraca na feira de sábado e virou “empresária” bem sucedida. Não fosse o casamento com Miguel em 1963, a famíia podería ter hoje uma filha destacada no ramo têxtil. Miguel tinha um jipe na praça; era uma pessoa muito desenvolta; valente e mulherengo demais. Poucos meses após o casamento, Luiza apareceu em casa dizendo que não queria mais morar com ele; haviam brigado e o casamento estava desfeito. O pai não aceitou o argumento e convocou Miguel para uma conversa de homem para homem:
- “Veja bem, Miguel! Luiza disse que vocês brigaram, que você bateu nela e por isso não quer mais viver com você. E eu lhe digo com toda certeza que prefiro ter duas viúvas em casa do que ser corno”.
Ele se retorceu na cadeira, explicou que foi uma briguinha à-toa, que ela era muito nervosa, etc e que além do mais ele era uma das pessoas com quem jamais brigaria naquela cidade. O pai aceitou suas palavras como uma desculpa, e ordenou que Luiza voltasse para sua casa, advertindo os dois para acabarem com as brigas. Infelizmente não acabaram. No ano seguinte a família volta a morar em São Paulo, e Luiza continuou a viver com Miguel entre uma briga e outra até se separarem definitivamente anos mais tarde.
Durante o namoro, Zé Galego serviu de guarda-costa de Luiza, e sempre que o casal saía o menino ia junto. Claro que esta vigilância era sempre relaxada com alguns trocados que Miguel dava ao menino. Assim, os dois desenvolveram uma amizade que foi mantida até depois do casamento. De vez em quando Miguel passava na casa dele à noitinha com um passageiro, e pedia à sua mãe para levá-lo junto. O menino adorava estas viagens, e quase todas eram para Palmeiras dos Índios, divisa com o estado de Alagoas. O passageiro era muito esquisito; viajava no banco de trás; vestia um capote daqueles usado por “Antonio das Mortes”, nos filmes de Glauber Rocha. Na época ninguém desconfiava de nada, mas uns 15 anos depois Zé Galego, em São Paulo, viu a notícia estampada n’ O Estadão: “Sindicato do crime, em Garanhuns tem motorista particular”.
Voltando à família, Nininha e Elza ajudavam a mãe nos afazeres domésticos. Nininha era a mais vaidosa, a mais arrumada e pelo visto, também, a que caminhava de modo mais elegante. Pois em 1960 ganhou um concurso realizado pela Radio Difusora de Garanhuns para eleger a moça que caminhava com mais charme. Com tais predicados e doida para sair de casa, começou a namorar com Everaldo e logo se casaram em fins do mesmo ano. Foram morar em Serra Grande, onde já vivia Eurides com sua família. Passaram pouco mais de um ano por lá e depois seguiram os passos de Euclides: foram morar em São Paulo.
Luiz e Zé Galego, com nove anos, logo em idade de trabalhar, tornaram-se mascates na feira com a venda de caixas de fósforos adquiridas na própria mercearia do pai. Pela manhã saiam com alguns pacotes em consignação. Na hora do almoço era feito o acerto de contas com o pai, que as cediam ao preço de custo. Com o lucro obtido compravam mais alguns pacotes e voltavam para a feira. De modo que ao fim do dia também já eram donos do negócio.
O único que não trabalhava era Zezé, pois tinha apenas 5/6 anos, mas dava muito trabalho á sua mãe. A rua em que moravam já era movimentada naquela época, e ele foi atropelado diversas vezes em pouco tempo. De vez em quando vinha a notícia: “Dona Dina, Zezé foi atropelado de novo por um carro e está no hospital”. Anos antes, em Jupi, Zé Galego e João costumavam serem atropelados por carros-de-boi e carroças. Mas, agora os atropelos eram causados por automóvel. É o progresso chegando ao agreste pernambucano.
O negócio de mascate mantido por Luiz e Zé galego também progrediu: em pouco tempo eles montaram um “carrinho” para vender doces, chocolates, balas e drops “Dulcora” no centro da cidade. As mercadorias eram adquiridas pelo pai diretamente da “Sultana” e “Bandeirantes”, empresas de São Paulo, e repassada aos meninos ao preço de atacado. Era um negócio bem lucrativo, porém muito cansativo. Empurrar aquele carrinho na subida da Rua do Recife, que liga o centro ao Arraial, não era mole. Pouco tempo depois, encontraram um lugar para guardar o “carrinho” no centro e acabou-se aquele martírio de levar e trazê-lo todo santo dia.
Por essa época o Natal em Garanhuns acontecia no centro da cidade e consistia numa mistura de grande quermesse, parque de diversões e feira permanente durante 7 dias. O “carrinho” de doces era colocado estrategicamente num local onde o movimento era maior. Para se ter uma idéia do negócio, chegava-se a apurar 400 mil-réis num único dia. Nas vésperas de ano novo de 1959, Zé Galego deixou Luiz cuidando do carrinho, e foi pedir benção ao seu padrinho Lila, que tinha um bar-restaurante ali por perto. Era a maneira que ele encontrou para ganhar algum trocado. Ao chegar no restaurante lotado de gente nas mesas da calçada, ficou esperando o momento adequado para pedir o trocado, digo a benção.
Enquanto esperava, já quase meia-noite, um grupo de rapazes, bebendo numa mesa e se preparando para o apagar das luzes, começou a entoar uma paródia de “Pisa na fulô”, de Luiz Gonzaga:
“Pisa na fulô, pisa no buraco
sessenta vem aí, nego vai
virar macaco”
O costume na época era apagar todas as luzes do centro da cidade por um minuto, comemorando a chegada do ano novo. Ao acender as luzes, outro grupo de rapazes, negros e mulatos, sentados num canto do restaurante logo entoaram outra paródia da mesma música:
“Sessenta já passou,
sessenta ninguém viu,
quem vai virar macaco
é a puta que o pariu”
Em 1960 a cidade parou para receber um visitante ilustre: o presidente Juscelino Kubitscheck. Houve uma convocação pelo rádio e quase toda a população atendeu o pedido do prefeito. Foi um Deus nos acuda nas imediações do precário aeroporto. Zé Galego também foi junto com uma turma de moleques. Naquele alvoroço de gente as barreiras de segurança não funcionavam, e o menino conseguiu furá-la e chegar até o hangar onde o presidente estava sendo recepcionado pelas autoridades. Lá, entre as pernas dos jornalistas e políticos, começou a perguntar num tom audível por todos: “Cadê o presidente? Eu quero ver o presidente!” e foi repetindo até que um senhor alto, sorriso largo, passou-lhe a mão na cabeça e levantou-o nos braços: “Sou eu meu filho”. O menino ficou por um segundo ali suspenso, cara-a-cara com o presidente, pasmo e sem falar uma palavra.
Outro acontecimento que abalou a cidade foi a Copa do Mundo, em 1962, quando o Brasil foi bi-campeão. Foi uma festa comparada ao carnaval na animação e na duração. Durante três dias não se falava em outra coisa. Era carro cheio de gente passando de um lado e de outro da rua buzinando; as moças e rapazes pendurados fazendo a maior algazarra. Em toda a família ninguém se destacou por gostar de futebol, mas na quadra onde moravam, vivia a família de Mestre Amaro, um dono de oficina mecânica e de um time de futebol, o “Sete de Setembro”, com uns 10 filhos, sendo que 5 dos quais jogavam no time. Na época o “Sete” chegou a jogar com “Santa Cruz”, vindo do Recife, e ganhou de 1 a 0 com um gol de bicicleta feito por Nelson, o artilheiro do time. Contando hoje ninguém acredita, mas o goleiro do “Santa” chutou o tiro de meta bem alto. Nelson, lá no meio do campo, foi acompanhando a bola com o olhar, procurou posição, e quando a bola se aproximou ele virou o corpo e pimba! A bola voltou direto para o gol.
Em outubro de 1963 Maria, Darquinho e a filha Mariza foram visitar a família e passaram um mês na cidade. O bom dessas visitas prolongadas é que todo dia era um almoço diferente, comia-se melhor, além dos passeios que se faziam pelo Pau Pombo, e pelas sete colinas que a cidade ainda mantém como pontos turísticos. Enquanto se aproximava o dia de voltarem à São Paulo, Luiz, com 18 anos, manifestou interesse em viajar com eles. Consultaram o pai, que concordou prontamente. E assim a família sofreu mais uma dispersão.
Já foi dito que o pai não era uma pessoa talhada para o comércio. Mas ele insistia no ramo comercial porque também não gostava de ser empregado. De modo que em 1964 a “venda” não estava dando o resultado esperado e ele tratou de “fechar” o negócio apenas junto aos órgãos fiscais. Manteve o negócio aberto por uns meses sem pagar impostos e, tendo em vista que boa parte dos filhos já residiam em São Paulo, passou a alimentar a idéia de uma terceira diáspora, que veio ocorrer em junho de 1964.
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