Biografia familiar
4ª parte: Primeira diáspora
Cícero da Mata
A diáspora da família se dá em etapas. Primeiro o pai e o filho mais velho, aos 16 anos, embarcam num pau-de-arara para São Paulo em princípios de 1954. A finalidade da viagem é verificar se tudo aquilo que falavam de São Paulo era realmente verdade. Caso fosse, iriam preparando o terreno para trazerem toda a família. As cartas, que logo começaram a chegar, confirmavam: sim, aqui há muito trabalho; e avisava: dentro de pouco tempo, vocês poderão vir também. A notícia animou Albérico, marido de Erotildes, a se mudar, também, do mesmo modo, e pouco depois ele se juntou ao sogro e ao cunhado. Realmente, naquela época a Cidade de São Paulo passava por fase de progresso industrial, dando inicio às correntes migratórias de nordestinos, que se prolongou até a década de 1970. Pai, filho e genro passaram a morar juntos em quartos de pensão, levando uma vida bem regrada e juntando algum dinheiro para poderem trazer o restante da família.
Em outubro de 1954, as duas famílias - Erotildes já contava com Alba, de dois anos, e Paulo, com menos de um ano – tomaram o pau-de-arara e foram para São Paulo. Tomaram é o termo exato, porque somando todos eram 11 pessoas, o que dá quase metade da lotação do veículo. Só ficou Eurides, já casada com José Amorim, morando em Serra Grande, na divisa de Pernambuco com Alagoas. O caminhão saiu de Jupi com previsão de chegada em São Paulo 15 dias depois. Naquela época esse era o prazo regulamentar de uma viagem desse porte e nestas condições. O caminhão parava para almoço, para as necessidades fisiológicas dos passageiros, ou por um motivo qualquer e não viajava à noite. Por volta das 18hs. O motorista encostava na entrada ou saída de uma cidade ou vilarejo qualquer para todo mundo dormir ali mesmo em volta do caminhão, em redes, nas tábuas que serviam de assento, embaixo do veículo, onde pudessem.
No entanto, a viagem durou 16 dias devido a um imprevisto. Em Vitória de Conquista, pela manhã e quase prontos para partir, Zé Galego, com quatro anos, se afastou do rebanho; saiu para ver a cidade e não soube mais voltar ao caminhão. Foi um alvoroço: não podiam prosseguir a viagem sem encontrar o menino perdido. O motorista ficou possesso, deu umas broncas na mãe e, junto com todos os passageiros, se espalharam pela cidade procurando o menino, que só foi encontrado no final da tarde. Estava sentado num balcão de uma bodega bem distante do caminhão; chorando e chupando um pirulito ao mesmo tempo; rodeado de gente tentando acalmá-lo. A mãe e as irmãs chegaram atirando as mãos para cima e dando graças à Deus. Com isso, tiveram que dormir na mesma cidade, atrasando a viagem em um dia. À noite, foram dormir mais tarde porque não se cansavam de falar da tristeza da procura e da alegria de encontrar o menino. De certo modo aquilo até que foi bom para quebrar a monotonia da viagem.
Tirante esse imprevisto, a viagem ocorreu sem problemas ou dificuldades que pudesse se notar, exceto a vacinação obrigatória de todos os passageiros em Feira Santana, Bahia. Forma-se uma fila enorme com pessoas de vários caminhões, que termina numa barraca, onde umas pessoas de jaleco branco vão aplicando as vacinas no braço direito de todos. Trata-se de um procedimento oficial para evitar que o pessoal do norte – propenso a contrair verminoses – contaminasse os sulistas, supostamente mais saudáveis. A vacinação era vista como mais uma parada para descanso, e todos gostavam, pois ninguém agüentava aquele catabilo do caminhão sacolejando pela estrada esburacada por muito tempo.
Ao chegar em São Paulo, a família foi morar num cortiço nas proximidades do centro de São Caetano. Pouco depois a família de Erotildes tomou seu rumo e a outra foi morar na favela de Vila Prudente. Dizem que a memória da gente é seletiva e é verdade, pois poucos na família guardam alguma lembrança desse período. Mas também durou pouco o tempo de residência na favela, coisa de um mês. A própria polícia, que estava sempre por lá, recomendou ao pai que mudasse daquele local. Com tantas crianças, algumas já mocinhas, ele iria passar por muitos problemas caso insistisse em morar ali. Vendo sua aparência de padre holandês, as crianças todas branquinhas, o guarda dizia:
- Isso aqui não é lugar para o senhor não, seu João. Procure outro lugar para sua família.
Encontraram outro lugar bem longe dali. Foram morar um bairro chamado Vila Palmeiras, nas redondezas da Freguesia do Ó. Hoje não, mas naquela época era uma periferia muito distante do centro da cidade. Para completar o sacrifício, o pai encontrou trabalho noutro bairro ainda mais distante em direção oposta: Brooklin Paulista. Mas não era periferia porque naquela época já era um bairro bom, perto de Santo Amaro, com bonde ligando ao centro. Acredita-se que era chamado assim para diferenciar de outro Brooklyn, existente na cidade de Nova Iorque. Vendo assim, parece que naquela época os paulistas eram mais americanizados do que hoje.
Para chegar no trabalho o pai gastava quase duas horas de viagem em dois ônibus ou três, caso não quisesse andar mais um bocado a pé. Logo começou a procurar lugar para morar perto do trabalho. Não foi fácil encontrar porque, como já vimos, o Brooklin não era lugar para gente com aquelas posses. Mas, com alguma insistência, foi encontrado uns sobrados antigos na Av. Rodrigues Alves (hoje, Ibirapuera), quase de frente para a Contact, uma fábrica de ventiladores, onde o pai encontrou emprego. Cada sobradão era repartido entre duas ou três famílias, constituindo, talvez, o primeiro cortiço naquele bairro.
O lugar era muito bom de se morar: perto de tudo, o bonde passando na porta, feira toda semana, padaria, e até igreja onde as crianças que fossem à missa aos domingos pela manhã ganhavam um ingresso para o cinema à tarde. Em 1955 a família se instalou aí e permaneceu até 1958, sendo o lugar onde mais se demorou em São Paulo. Por esta época Maria já contava com 19 anos e Luiza com 15, e administrar a família num lugar cheio de modernidades como aquele não foi fácil para um pai zeloso e muito conservador. Ele achava que a mãe não cuidava direito das moças, que as deixava muito à vontade e aquilo era um perigo numa cidade como São Paulo. “Todo cuidado era pouco” era o que costumava falar para a mãe e para todos ouvirem.
Maria se enamorou com um negro simpático, de família conhecida, mais ou menos posto na vida (era da Guarda Civil), mas tinha dois defeitos que não agradavam ao pai: era paulista e negro. O primeiro defeito não era tão grave, dava perfeitamente para ser superado. Mas o segundo não dava para agüentar de jeito nenhum. Um negro na família era inadmissível. Como amor proibido é o que progride mais, Maria logo passou a falar em casamento, mas toda vez que falava nisso, era exterminada com o olhar fulminante do pai. A mãe também recriminava o namoro só para não discordar do pai. Ela mesma, uma cabocla morena de traços indígenas, não tinha condições de manter preconceito com negro. Mesmo assim, o namoro prosseguia às escondidas do pai e um certo dia Maria não voltou do trabalho. Só tarde da noite souberam que ela estava na casa do namorado, e que por lá ia ficar até o outro dia. O pai teve que engolir seco o casamento que foi consumado em seguida.
Luiza com 16/17 anos, bonita e vaidosa, era vigiada ostensivamente. O pai dizia que paulista não era brincadeira e repetia que “todo cuidado era pouco” com essas meninas. Um dia soube através do genro mais velho que viu Luiza se encontrando com um rapaz numa esquina perto de casa. O homem ficou uma fera: a mãe levou umas broncas por não saber cuidar da filha, e esta ganhou um colar de corrente grossa presa por um cadeado no pescoço. Como ele era guarda-noturno da fábrica, durante o dia ela podia ficar sem a corrente no pescoço. Mas a noitinha, quando saía para o trabalho, o cadeado era fechado levando a chave consigo. Só no outro dia pela manhã, quando chegava do trabalho, a corrente era solta. A mãe implorava para ele deixar a chave, que a menina não podia dormir com aquilo, mas não teve jeito. Por mais de uma semana Luiza não podia sair à noite e dormia com a corrente pendurada no pescoço.
Tal situação não agradava à mãe e ela não parava de falar: “É por essa e por outras que eu não gosto desse lugar”. Iniciado o ano de 1956, “essas outras” começaram a se intensificar até manifestar na mãe o desejo de voltar para Pernambuco. Quando ela soube que o pai estava querendo comprar um terreno nas redondezas, o desejo se agigantou. Na tentativa de convencê-la a ficar, o pai levou-a para ver o terreno onde poderiam fazer uma casa. Mas o intento só fez piorar a situação. Ela voltou para casa dizendo que não ia morar numa “pirambeira” daquelas de maneira nenhuma. Era um lugar distante da linha do bonde, da padaria, da igreja, e, segundo ela, de tudo. Com isso a família perdeu a chance de ter uma casa num dos melhores bairros de São Paulo.
As reclamações e choros da mãe querendo voltar só aumentavam, até que em setembro de 1956 o pai não aguentou mais e decidiu: “tudo bem, você pode ir embora se quiser, mas eu vou ficar por mais um tempo”. E assim a família sem o Pai e Maria, que já estava casada, embarca de volta à Jupi. A viagem de volta durou menos tempo e foi muito mais confortável. Pau-de-arara só existia no percurso Pernambuco-São Paulo. De modo que a volta foi de ônibus e deve ter sido feita nuns dez dias. Uma vez em Jupi, a vida familiar retoma sua rotina; o pai mandando dinheiro pelo correio; a mãe com a barriga crescendo, anunciando o nascimento de mais uma criança. Ninguém esperava que a mãe aos 46 anos ainda pudesse ter neném, mas em maio de 1957 nasceu o temporão Zezé.
(continua)
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